Mais devastador do que a própria Aids tem sido um poderoso coquetel que combina a um só tempo ignorância, preconceito e indiferença. Embora há muito a moléstia tenha deixado de ser uma condenação reservada aos drogados e homossexuais, como muitos chegaram ao ponto de insinuar, existe ainda quem pense estar completamente imune ou distante desta miséria. Isso acaba criando condições que favorecem ainda mais a proliferação do vírus, apesar das revelações científicas já nem tão recentes, que dão conta das formas exatas de contágio – entre as quais, as principais são as relações sexuais e o contato com o sangue contaminado. No entanto, é preciso que todos saibam que a Aids não é um problema dos aidéticos ou portadores. É um problema social que diz respeito a todos e a cada um individualmente. Senão por solidariedade, pelo menos porque todos estão expostos aos riscos e apresentam algum grau de vulnerabilidade. Por isso mesmo é impressionante que espaços de convivência social como a escola não levem em conta a necessidade de prevenção e esclarecimento sobre a doença que, inclusive, evitaria, outras moléstias contagiosas. As medidas adotadas pelas escolas sucederam a casos concretos e, assim como as campanhas oficiais, ainda não alcançaram uma adequação capaz de fazer frente à epidemia. Mas a Aids está na lista de chamada. Para preservar da segregação, alguns dos pais, responsáveis, professores, crianças e adolescentes citados nesta reportagem são designados por nomes fictícios ou pelas iniciais do nome.
“Crianças aidéticas não precisam estudar, pois já nascem com o atestado de óbito assinado”. Em 1992, o então presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo (Sieeesp), José Aurélio de Camargo, justificou assim sua orientação para que as 17,5 mil escolas paulistas evitassem a presença de alunos soropositivos em sala de aula. Desta forma, ele apoiava decisão da escola paulista Ursa Maior que, naquele ano letivo, recusara a matrícula da menina Sheila Carolina de Oliveira, de cinco anos, por ser portadora do vírus da Aids, o HIV. Camargo e a direção da escola feriram a Constituição Federal, que garante para todos o direito à educação. O caso tornou-se público e a postura de Camargo foi repudiada por representantes de entidades como a Associação Médica Brasileira (AMB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), militantes dos Direitos Humanos e psicólogos, que alertaram para os danos da discriminação.
Em 1994, uma professora da rede estadual, em Porto Alegre, ameaçou sair da escola se a direção não fizesse um remanejo de turma. Soubera que um aluno seu era portador do vírus HIV. Assustada, acreditava até já estar contaminada. A situação foi contornada porque os próprios responsáveis pelo menino levaram ao colégio informações sobre Aids. Semelhante situação se repetiu em outros colégios de Porto Alegre.
No início deste ano, o advogado Marcelo Turra entrou na justiça com duas ações: uma para garantir o acesso à escola de um menino de três anos e, outra, para a reparação de danos morais, contra a direção do Jardim Escola Sonho Feliz, na zona Oeste do Rio de Janeiro. A escola recusou a matrícula do garoto soropositivo. A diretora da creche alegou que não poderia perder as matrículas de várias outras crianças, cujos pais ameaçaram retirá-las da escola. Era a terceira vez que a mãe do menino tentava matricula-lo numa escola.
A literatura mundial especializada não registra nenhum caso de transmissão do vírus por contato casual na escola. “É remota a contaminação por acidente no colégio”, garante o pediatra Luiz Alberto Vanni, do Grupo de Atendimento à Aids Pediátrica (Gaap), do Hospital da Criança Conceição.
Há cerca de 15 anos a epidemia do HIV/Aids prolifera no Brasil, mas continua desconhecida por muitos professores, pais e alunos. O mapa da omissão e ignorância emergiu em uma pesquisa realizada pela Apta, uma organização não-governamental de São Paulo que trabalha com a prevenção e informações sobre a Aids, em parceria com o Unicef, órgão das Nações Unidas para a infância. Segundo o levantamento, quase todas as escolas públicas do país ainda ignoram a existência da Aids.
O estudo, entregue em fevereiro deste ano, ao ministro da Educação Paulo Renato de Souza, tem um dado alarmante: 10, 2 milhões de crianças e adolescentes das redes municipais de ensino do país passaram pela escola sem ouvir falar de sexualidade ou Aids. Cerca de 80% das cidades com mais de 100 mil habitantes e mais de 70% dos estados não têm nenhum programa de informação ou prevenção da doença. Dos 208 secretários municipais de educação questionados, 194 responderam à pesquisa e do total dos estados, apenas um secretário de educação não respondeu.
O estudo considerou que um município ou estado tem projeto de prevenção quando desenvolve ou desenvolveu ações continuadas por pelo menos três meses em pelo menos três escolas. A rede municipal de ensino conta com pelo menos uma criança com Aids em 65 cidades, embora menos de 75% tenha algum programa de prevenção. Do mesmo universo de 208 cidades, apenas 25% dos programas incluem palestras e preparação de multiplicadores. Em 15% dos municípios, o projeto se limitava a palestras e cerca de 80% das redes estaduais e municipais têm o professor como público-alvo.
Teresinha Reis Pinto, uma das coordenadoras da pesquisa, diz que é necessário o professor dispor de mais tempo fora da sala de aula. “Professores, pais e comunidade devem trabalhar juntos o conceito de vulnerabilidade, porque tratar a Aids em apenas uma disciplina não resolve mais”, ressalta.
SEXO – “Enquanto as pessoas insistirem em supor formas de contágio do vírus, o campo real de contaminação, que é a atividade sexual, ficará aberto”, adverte a psicóloga Karla Nyland, 36 anos, conselheira do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids do Rio Grande do Sul (Gapa/RS), uma ONG com sede em Porto Alegre. “Não adianta fazer de conta que o problema não é teu, é de todos”, assinala. Para ela, a única maneira de refrear a epidemia é capacitar os professores e funcionários das escolas para trabalhar a prevenção. “Não vejo outra saída, a não ser que descubram a vacina contra a Aids. Mas isso não parece estar tão próximo”, enfatiza. Karla assegura que a desinformação e o preconceito continuam sendo os grandes entraves à prevenção da Aids. “Os professores têm de ser preparados para falar sobre sexualidade. A escola tem de redimensionar a estrutura educacional e não só o método”, acrescenta.
O primeiro caso de Aids entre menores de 13 anos no Brasil foi identificado em 1983. O último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde informa que, desde o início da epidemia, 3.845 crianças desenvolveram a doença no país. No Rio Grande do Sul, até junho do ano passado, foram notificados à Secretaria Estadual da Saúde e do Meio Ambiente (SSMA) 401 casos de contaminação. Só no primeiro semestre de 1997 foram registrados 59 casos de crianças infectadas pela mãe na gestação ou parto. Epidemiologistas acreditam que este número pode ser até 30% maior, porque nem todos os casos são detectados ou comunicados aos órgãos de saúde.
A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que a cada dia cerca de mil crianças são infectadas pelo HIV no mundo. Até o final do ano passado, 1 milhão de crianças foram contaminadas. Especialistas do Programa da ONU para a Aids (Unaids) afirmam que ensinar sobre sexualidade não encoraja ou estimula a atividade sexual, mas adia a primeira relação e ajuda a proteger os jovens da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis, inclusive da Aids. Recomendam que essa conduta seja assumida por pais, professores, meios de comunicação, órgãos do governo e comunidade. Apesar disso, o que se verifica no cotidiano de espaços de convivência social como a escola é um quadro lamentável de ignorância, despreparo e indiferença, assim como a ineficiência dos programas públicos de prevenção à Aids.
Resistência sem trégua
A vendedora D, 45 anos, de Cachoeirinha, destaca-se entre as mães, avós e parentes de crianças portadoras do HIV que freqüentam as reuniões mensais do Grupo de Atendimento a Aids Pediátrica (Gaap), do Hospital da Criança Conceição, em Porto Alegre. Decidida a defender com unhas e dentes os direitos do filho adotivo, portador do vírus da Aids, D está sempre encorajando os demais para que não percam as esperanças e não se rebaixem com a discriminação. Nestes casos, diz que devem, sem culpa ou vergonha, orientar e informar sobre o assunto. “Ouvi uma vizinha dizendo para a filha que não era para tomar banho de piscina com o V porque poderia se contaminar”, contou. “Deixei passar um tempo, sentei com ela e expliquei como se dá realmente o contágio, que não se pega o vírus num banho de piscina”.
Uma vez por mês, um profissional da equipe do Gaap recebe os familiares de crianças portadoras do vírus HIV para orientar sobre alimentação, higiene, saúde, direitos humanos e esclarece as dúvidas sobre a doença e a epidemia. É através do grupo também que cada família recebe uma cesta básica, doada pela comunidade.
O grupo foi criado em março de 1996, quando passou a acompanhar 250 crianças infectadas. Mas a equipe já atendia aos casos que procuravam ajuda no Hospital Conceição desde o surgimento da epidemia. “No início, eram crianças que adquiriram o vírus via transfusão de sangue”, relata o pediatra Luiz Alberto Vanni, da equipe do Gaap. “Depois começaram a surgir crianças soropositivas, filhos de mães infectadas”.
D freqüenta as reuniões do Gaap desde que descobriu que V estava infectado pelo vírus. “Adotei ele com seis horas de vida”, lembra. “A mãe era uma moça de fora do estado e queria dar o filho porque não tinha condições de criar”. No mesmo dia, D pediu para a médica encaminhar todos os exames necessários para avaliar a saúde do menino. A pediatra encaminhou quase todos, menos o do HIV. “Estranhei que meu pequeno vivia doente, fraco, mas jamais imaginei o que pudesse ser”. Numa conversa de ônibus soube de uma criança com sintomas parecidos com os de V. “A mulher falou que a tal criança estava com Aids. Fiquei com aquilo na cabeça”.
Em abril do ano passado, aos três anos de idade, V foi levado ao Hospital da Criança Conceição queimando em febre, com uma pneumonia. “Foi feito o exame e meu mundo desmoronou”, recorda a vendedora. “Sabia da doença, já tinha orientado meus três filhos sobre os cuidados, o uso de camisinha. Mas, parecia que eu ia perder o menino naquele dia”.
Passado o susto, D arregaçou as mangas com o apoio da família. Buscou todas as informações sobre o assunto. “Quando dá alguma coisa na TV sobre a Aids, corremos para ver se tem alguma novidade no tratamento”, conta. V começou a tomar os remédios necessários. “Descobri muita solidariedade. Pessoas que eu nem conhecia vieram nos dar apoio”, conta. “Não escondo a situação do menino”. Ele não é inferior a ninguém por estar infectado pelo vírus e as pessoas precisam aprender sobre a doença para não discriminar e para saber que também podem pegar se não tomarem os devidos cuidados”.
ESTIGMA – A dona de casa S, 25 anos, não quer que ninguém saiba que ela e a filha, de quatro anos, são portadoras do vírus da Aids. “As pessoas têm muito preconceito. Não quero ser taxada como HIV”, explica. “Tive vontade de bater em uma prima que ficou espalhando que tínhamos o vírus. Disse para ela parar, que isso é muito sério”. Natural de Lajeado, S está morando em Gravataí. “Quero sair daqui, ir para um lugar aonde ninguém saiba sobre nossa situação”. Eventualmente, S trabalha como faxineira. “Só quando posso levar a menina junto”, determina. “Ninguém cuida dela melhor do que eu”, acredita.
S foi infectada pelo marido antes de engravidar. Diz que o parceiro já estava começando a ficar doente e até desconfiava que poderia estar com o vírus da Aids, mas não a alertou e nem usou camisinha nas relações sexuais. “Se ele tivesse sido honesto comigo, minha filha poderia ter recebido tratamento ainda durante a gravidez e teria chance de negativar”, diz revoltada. Segundo estudos médicos, com um pré-natal eficiente e um parto adequado, o bebê corre menos risco de ser infectado pelo HIV. As gestantes soropositivos devem fazer cesariana e tomar AZT injetável durante a operação. O nenê também deve tomar AZT infantil.
Adolescentes não temem
Os adolescentes não receiam conviver com os portadores do vírus HIV. Dos 2.495 estudantes com idade entre 12 a 19 anos de 15 escolas de Pelotas, ouvidos em uma pesquisa realizada pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), 90% dizem que deve ser permitido ao portador freqüentar normalmente a escola. Do total dos entrevistados, 1.457 eram mulheres e 1.038 homens. O questionário também abordou conhecimento sobre a doença, formas de contágio, prevenção, comportamento sexual, uso de drogas.
Coordenado pelo psicoterapeuta e infectologista Jorge Umberto Béria, 48, o estudo buscava dados para a criação de um pacote educativo para a prevenção do HIV. A pesquisa foi realizada de 1993 a 1995, com recursos do programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde.
O estudo revelou que as mulheres estão mais expostas ao sexo sem segurança. Segundo Béria, elas estão mais preocupadas em prevenir a gravidez do que a Aids. O índice de mulheres que afirmaram já ter engravidado foi de 11%. A pesquisa indicou que 64% dos homens e 42% das mulheres usaram preservativo na última relação sexual.
Além do questionário, o trabalho contou com um pacote educativo – reunindo um álbum seriado, uma revista em quadrinhos e uma oficina de camisinha – que foi aplicado no grupo pesquisado. Também foi feito um estudo antropológico para avaliar o impacto da intervenção. Resultados preliminares foram apresentados no 1º Congresso Pan-americano de DST/Aids e o artigo Epidemiologia das relações sexuais e do uso de preservativo em adolescentes escolares conquistou o prêmio Walter Belda 1996, de melhor trabalho na área de epidemiologia, conferido pela União Brasileira Contra as Doenças Sexualmente Transmissíveis. Dois bolsistas de iniciação científica que participaram do estudo ganharam o Prêmio Jovem Pesquisador no 5º e 6º Congressos de Iniciação Científica UFPel/ Fundação Universitário de Rio Grande (Furg)/Universidade Católica de Pelotas. O trabalho foi publicado sob o título Ficar, transar… A sexualidade adolescente em tempos de Aids, pela Tomo Editorial.
“Chato”, pouco explícito, “feio” e confuso foram os adjetivos usados pelos adolescentes nas questões de avaliação do material utilizado nas campanhas de prevenção da Aids em âmbito nacional. A parte antropológica constou de grupos focais e entrevistas abertas com estudantes, realizadas pelas antropólogas Flávia Rieth (UFPel) e Ondina Faches Leal (UFRGS). “Sugeriram que um filme como Philadelfia e A vida continua e discussões em grupos posteriores poderiam ser muito mais informativos”,conta Jorge Béria. Para a garotada, vídeo e material gráfico têm de ser o mais explícito possível, erótico, bonito e com humor para não virar dramalhão.
Até o ano 2000, 26 mil órfãos
O número de crianças infectadas no ventre da mãe ou nos primeiros dias de vida tem crescido na mesma proporção do aumento de casos em mulheres. No Estado, há dez anos havia 19 homens para cada mulher soropositiva. Hoje, a relação é de dois homens para cada mulher.
O Programa da ONU para a Aids (Unaids) calcula que até o ano 2.000, perto de 26 mil crianças brasileiras poderão estar órfãs porque suas mães morrerão de Aids. O Unaids aponta também que o abuso sexual praticado nas próprias casas e a prostituição infantil contribui para a proliferação da doença. Dados da ONG Instituto Promundo indicam que, de 1994 a 1997, o número de bebês com menos de um ano infectados cresceu 205%. A expansão média da doença neste período foi de 125%. Os números coincidem com o aumento de 202% da Aids entre mulheres de 15 a 49 anos, justamente a idade fértil da mulher. Entre os homens da mesma idade a taxa foi de 111% .
A mãe pode transmitir o vírus da Aids ao bebê durante a gestação (pelo sangue), no momento do parto (pelo contato direto com sangue e secreções) e na amamentação (os especialistas não sabem se pelo leite ou por meio do sangue presente nas fissuras do seio). Os médicos aconselham as mulheres que desejam engravidar fazer o teste da Aids antes. Se der positivo, devem procurar informações sobre os riscos de levar o plano adiante. No caso da mulher já estar grávida, deve fazer o exame durante o pré-natal. Se for soropositiva, a mãe deve usar o medicamento AZT, fornecido gratuitamente pela rede pública de Saúde, durante toda a gestação e no momento do parto. E o bebê também deve ser medicado pelo menos nas seis primeiras semanas de vida. A chance da mãe conta-minar o filho é de 25% a 30%. Com a utilização da medicação, cai para 8%.
Revelação provoca pânico
A professora Ângela entrou em pânico ao ser informada, em 1994, que um de seus alunos era portador do vírus HIV. Ameaçou sair da escola se a direção não fizesse um remanejo de turma. Rejeitava a condição de ter um aluno “contaminado” em sala de aula, reclamava por não ter sido avisada antes e chegava a pensar já estar infectada. Hoje ela diz que acompanhava o avanço da epidemia pela imprensa. “Era uma coisa macabra, distante, que, de repente caiu diante dos meus olhos e passou a freqüentar o meu dia-a-dia. Eu estava tocando em um portador. Fiquei em dúvida e insegura sobre as formas de contágio, me pegou de surpresa,” justifica o susto inicial.
A direção da escola, da rede estadual de ensino, foi comunicada sobre a situação de Tomás, de sete anos, pelos próprios responsáveis pelo menino. Eles resolveram abrir mão do direito de sigilo – garantido por lei – para instruir sobre os procedimentos a serem adotados em caso de acidente envolvendo sangue. Pediram que a professora de Tomás fosse informada e solicitaram que passassem a ser avisados dos comuns surtos de doenças da infância, como sarampo, varicela, gripe. Queriam proteger o menino, pois o portador do HIV é mais vulnerável à doenças infecto-contagiosas.
“Não tínhamos recebido nenhuma instrução, nem da Secretaria de Educação nem da Saúde sobre como proceder com alunos infectados”, diz a diretora da escola. “Como não recebemos nada até hoje”, denuncia. Ela relata que a primeira reação foi de rejeição, de manter o menino afastado do grupo. “Mas os responsáveis pela criança começaram a falar algumas verdades. Do Tomás, a gente estava sabendo. E outros alunos, funcionários e professores que podem ter o HIV e a gente não sabe? E aqueles que nem mesmo sabem se têm?”
O caso de Tomás revelou a ignorância sobre o contágio do vírus HIV/Aids, o preconceito contra os portadores e o completo despreparo das escolas em prevenir doenças infecto-contagiosas. “Eles acabaram dando uma reviravolta aqui. Nos muniram de informações sobre o vírus, a doença, formas de contágio, remédios e nos abriram os olhos para a realidade “, diz a diretora.
Sem citar o caso de Tomás, a direção passou a discutir o assunto com os demais professores. Aos poucos, o tema foi levado para a sala de aula e uma regra foi adotada: uso de luvas de látex no socorro a qualquer acidente envolvendo sangue, independente de se saber se a pessoa acidentada é ou não portadora de algum vírus. “A instrução é para que o próprio aluno lave o machucado, mas se não for possível, faremos isso com os devidos cuidados”, afirma a diretora. “Não é uma precaução somente contra a Aids”. Informada sobre as formas de contágio do HIV/Aids – através do sangue, relação sexual e do aleitamento – hoje Ângela sente-se mais segura. O desespero deu lugar ao desejo de falar sobre a doença, de esclarecer dúvidas, de prevenir, de evitar que a epidemia se alastre. “Sei que muitos colégios estavam vivendo a mesma experiência”, afirma.
Nos últimos quatro anos, a escola foi informada de mais cinco casos de alunos soropositivo. Agora, a direção estuda uma forma de incluir nas discussões sobre doenças contagiosas, inclusive a Aids, os pais dos 1.100 estudantes matriculados. Há mais de 15 anos na mesma escola, a diretora está preocupada. Já presenciou episódios de desespero coletivo por falta de informação. No ano passado, durante o surto de meningite no estado, os pais se apavoraram, queriam saber se havia algum caso na escola e prometiam tirar os filhos da sala de aula. “Se vazasse a informação de que temos alunos soropositivos seria um auê”, teme.
REJEIÇÃO – “A questão é muito séria”, exaspera-se a diretora de outro colégio, em Porto Alegre. No ano passado, foi informada de ter três alunos portadores do HIV. “Os professores sabem do direito da criança ir à escola. Seria um crime rejeitar um aluno por ignorância sobre uma doença”, assevera. “Mas precisamos trabalhar o assunto de forma mais profunda. Se os professores não forem esclarecidos, com certeza vai haver rejeição do aluno em sala de aula. Uma rejeição velada porque a idéia que se criou em torno da Aids é a morte, mas as pessoas contaminadas vivem, e, se receberem apoio, vivem muito bem.” Essa escola mantém uma caixa com luvas de látex e instruiu professores, funcionários e alunos sobre algumas normas de precaução de doenças. “São regras básicas de higiene, como lavar as mãos antes de uma refeição ou depois de usar o banheiro, lavar seus próprios ferimentos e ter cautela ao tocar no ferimento de outras pessoas”, conta.
Ela também acredita que a escola pode trabalhar na prevenção com toda a comunidade escolar. Muitas vezes, os pais procuram os professores para buscar orientações sobre a saúde e até mesmo métodos anticoncepcionais. “É uma relação de muita confiança”, observa. “Se estivéssemos capacitados poderíamos trabalhar a questão da Aids também. Mas não estamos”, reconhece. Para ela, a falta de professor agrava a dificuldade. “É difícil um professor com salário baixo, que trabalha três turnos sanando a falta de colegas, ainda arranjar o tempo necessário para falar com os pais dos alunos”.
No ano passado, quatro adolescentes deste colégio ficaram grávidas. “Isso é um indício de que não estão se prevenindo, que as campanhas de prevenção não estão cumprindo seu papel. Se estão engravidando podem também pegar o vírus”, alerta. “É preciso falar do assunto. Saber que não é um problema do outro. É nosso”, reitera a diretora.
Aprendendo a viver
“Todo o corpo tem um monte de soldadinhos que nos defendem de doenças. Quando a gente não tem todos estes soldadinhos, acaba adoecendo mais…”. É assim que as crianças portadoras do vírus HIV, do Abrigo Residencial 21, da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), em Porto Alegre, aprendem a conviver com a doença. “À medida que crescem, vão percebendo que tomam mais remédios e que adoecem mais do que outros”, conta Maria do Carmo Prado Fay, 41, assistente social que trabalha no projeto de atendimento a crianças portadoras do vírus da Aids da Instituição. “Começamos explicando, sem citar o HIV/Aids, porque a mídia ainda trata a doença como fatal, uma setença de morte, e isso assusta muito”, observa. As crianças mais velhas já sabem que se sair sangue ao se machucarem, elas mesmas têm que ir ao banheiro e lavar o ferimento,” revela Maria do Carmo. “Trabalhamos muito com qualidade de vida para que a criança continue querendo viver, se alimentar e se manter bem para enfrentar as complicações de saúde que possam surgir”.
A Febem mantém o programa de atendimento às crianças portadoras do HIV e em situação de risco ou abandono desde 1991. São dois abrigos residenciais, com quartos, sala, cozinha, banheiros e pátio com play-ground. As 30 crianças (15 em cada abrigo) contam com serviços de enfermagem e monitoria, fisioterapia, terapia ocupacional, nutrição pediátrica, serviço social, recreação e odontologia. A referência médica do grupo é o Hospital de Clínicas de Porto Alegre. “Procuramos criar um sistema que seja o mais parecido possível com uma casa de família”, explica Maria do Carmo. Cada criança tem sua cama, seus brinquedos, suas roupas e o grupo de funcionários mantém os mesmos horários para que se estabeleça um vínculo de afeto. “Tentamos cercar de todas as formas para que elas tenham um bom suporte emocional”, observa.
A maioria das crianças foram abandonadas ao nascer. Outros entraram por motivos assistenciais. Os pais estavam doentes de Aids e sem possibilidades de cuidar dos filhos. Das 30 crianças que moram nos abrigos, 17 são bebês com até dois anos e o restante tem idades entre dois a 10 anos. Desde o início do programa, quatro crianças foram adotadas. “As crianças com o vírus sempre foram olhadas como se estivessem a beira da morte”, observa. “Isso tem que ser revisto porque elas podem ter uma vida saudável sim, com alguns cuidados especiais e qualidade de vida”.
Quadro assustador
– Até o ano 2000, 40 milhões de pessoas estarão doentes ou infectadas. Estima-se que hoje existam 23 milhões de pessoas infectadas, cerca de 40% são mulheres.
– A cada dia surgem 16 mil novos casos. Em 97, 5,8 milhões de pessoas foram infectadas e 2,3 milhões de portadores morreram pela doença. Deste total, 460 mil eram crianças.
– A Aids já matou 11,7 milhões de pessoas, deixando 8,2 milhões de órfãos. Até o ano 2000, 16,5 milhões de crianças perderão os pais por causa da Aids. As estimativas da Unaids e OMS, consideram só as crianças que nasceram sem o vírus, um dos contingentes que mais cresce e que está entre os mais esquecidos pelas políticas públicas de saúde.
– Se a epidemia não for contida, em menos de uma década metade da força de trabalho dos países em desenvolvimento estará doente, o que já acontece em países da África.
– Dos 116.389 casos notificados no Brasil, 3.867 são de crianças menores de 13 anos. O país tem hoje cerca de 183 mil crianças “vitimizadas” pela Aids: 10.600 já perderam a mãe, 34.600 estão com a mãe doente e 137.800 têm a mãe infectada pelo vírus HIV. Entre estas crianças, estima-se que quase 15 mil tenham o vírus da Aids. Até o ano 2000, serão 26 mil crianças órfãos no país. Os dados são da ONG Instituto Promundo.
– No Rio Grande do Sul estão registrados 6.913 casos Aids entre 1983 e outubro de 1997, dos quais 401 crianças menores de 14 anos de idade. A maioria das crianças foram infectadas durante o período da gestação, no parto ou na amamentação.
– De janeiro a junho de 1997, foram registrados no RS, 37 casos de crianças menores de um ano infectadas, 17 casos entre crianças de um a quatro anos, quatro casos entre crianças de cinco a nove anos, quatro casos de dez a 14 anos, e 31 casos de 15 a 19 anos.
– De 1983 a dezembro de 1997, 3.492 pessoas morreram de Aids no estado. Durante o ano passado foram registrados 1.528 casos. Houve uma taxa de crescimento de 21% em relação a 1996.
ESCLARECIMENTOS
– A literatura mundial não registra nenhum caso de criança que se infectou brincando, nos contatos ao beijar, tomar banho, participar do mesmo espaço.
– O vírus HIV não contagia por ar ou por objetos contaminados, mas sim por transmissão intracelular, isto é no contato direto com células dentro das quais se encontra o vírus, e que só podem atuar penetrando diretamente na corrente sangüínea do outro organismo.
– Os fluídos corpóreos que contém o HIV em quantidades suficientes para a transmissão são o sangue, o esperma, a secreção vaginal e o leite materno. O contato destes líquidos com a pele íntegra (sem ferimento) não transmite o vírus.
– Toda a criança tem direito à educação. A escola não pode exigir apresentação de exame HIV. Se a criança for portadora, pais e responsáveis têm o direito de manter o sigilo total.
– O Ministério da Saúde recomenda que as normas universais de biossegurança sejam usadas rotineiramente e adaptadas a qualquer contexto em que ocorra a exposição ao sangue e secreções. A medida não é indicada apenas no contato com portadores do vírus HIV.
Fontes: Organização das Nações Unidas(ONU), Organização Mundial da Saúde (OMS), Ministério da Saúde, Secretaria da Saúde e do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (SSMA)
Rede de multiplicadores
Em setembro passado, a seção de Saúde Escolar, da Secretaria Estadual da Saúde e Meio Ambiente (SSMA), desencadeou o projeto Prevenção da Gestação da Adolescência. Apesar do propósito principal ser abordar a gestação indesejada e prematura, o programa trata também da contaminação pelas DSTs/HIV e o uso de drogas. “Os assuntos estão intimamente ligados”, argumenta a psicóloga Nalu Silvana Both, coordenadora do programa. “A adolescente que tem uma gravidez indesejada não usa preservativo, podendo também se contaminar com o vírus”.
A intenção é transmitir informação sobre o assunto em efeito cascata na comunidade escolar da rede estadual de ensino a partir do treinamento e capacitação dos técnicos de saúde (médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, odontólogos, psicopedagogos), que atuam junto aos 14 Centros de Atendimento ao Educando (CAE) de Porto Alegre. Cada CAE atende e acompanha em média 15 escolas. A partir daí, os próprios centros passarão a tratar as questões com os professores, que por sua vez, preparados, trabalharão as questões em sala de aula. A idéia é incluir nas discussões os pais das crianças e adolescentes.
LENTIDÃO – Até março deste ano, foram capacitados apenas cinco CAEs da região Centro de Porto Alegre e os 65 CAEs do interior do estado passarão a receber o projeto somente a partir de maio. Nalu admite a lentidão do processo perto do avanço da epidemia. “Trabalhamos com mudança de mentalidade. E isso é muito demorado”, explica, acrescentando que a idéia de que a Aids pertence a grupos de risco traz prejuízos ao trabalho. “A comunidade escolar precisa entender que qualquer um de nós pode ser portador do vírus”, alerta. “O tabu, medo e o preconceito contra os portadores na escola são reflexos da sociedade, e não uma reação específica da comunidade escolar”. O tempo é outra dificuldade “O trabalho exige horários fora da sala de aula”, lembra. O projeto, que segue as normas do Ministério da Saúde, está sendo realizado com jornadas pedagógicas de 40 horas/ano e acompanhamento periódico.
A coordenação do projeto distribuiu um questionário, em dezembro passado, para a direção das 90 escolas de abrangência dos cinco CAEs da região Centro de Porto Alegre, com o objetivo de levantar o número de alunas gestantes. Obteve respostas de 45 escolas que tinham conhecimento espontâneo de 88 casos (0,2% do total de alunos matriculados). O maior número de gestantes estava na faixa de 17 a 18 anos de idade (28,4%). De 12 a 13 anos de idade, teve um caso (1,1%). De 13 a 14 anos, cinco (5,7%). De 14 a 15 anos, seis (6,8%). De 15 a 16 anos, 19 (21,6%). De 16 a 17 anos, 17 (19,3%). De 18 a 19 anos, cinco (5,7%). E acima de 19 anos, dez casos (11,4%).
O estado não sabe quantas crianças e adolescentes portadores do vírus estão freqüentando a sala de aula. “Fomos informados de alguns casos. Mas, muitos preservam o direito do sigilo”, observa a psicóloga. “Nossa preocupação é orientar a escola para a prevenção e cuidados rotineiros de biossegurança, independente de se saber de algum caso de portador do HIV na escola, informando os professores sobre a realidade da epidemia para que não haja discriminação com os alunos portadores”.
SUSTO – “A Aids assustou todo mundo, inclusive a escola”, afirma a bióloga Vera Miranda da Rosa, do Departamento de Atendimento ao Educando (DAE), da Secretaria Estadual de Educação (SEC). Segundo ela, a SEC está realizando cursos (40 horas) de orientação para os professores sobre sexualidade, Aids e abuso de drogas desde 1994. Dos cerca de 81 mil professores do estado, apenas 300 já participaram destes cursos. Vera lembra que o tema também já foi incluído no Padrão Referencial de Currículo – nos conteúdos transversais. “Temos seis projetos de prevenção da Aids e do abuso de drogas em andamento nas escolas”, assegura Vera, que também é consultora do Ministério da Saúde em Prevenção às DSTs/Aids e Abuso de Drogas.