GERAL

A política venceu o marketing

Márcia Camarano / Publicado em 29 de outubro de 1998

Aos 57 anos, Olívio de Oliveira Dutra, um típico gaúcho missioneiro, chega ao Palácio Piratini. Com esta façanha – tendo em vista a força do adversário os recursos financeiros e de comunicação que enfrentou – o ex-bancário formado em Letras pela Ufrgs que, há dez anos inaugurou as administrações da Frente Popular em Porto Alegre, realiza o sonho de milhares de militantes de esquerda não só do Rio Grande do Sul. É que o ex-prefeito da capital contou com a torcida de outros milhares de militantes em todo o Brasil, pelo menos, por dois motivos. Primeiro porque é um símbolo do PT e da luta do campo democrático-popular e sua eleição a governador está para o Rio Grande do Sul assim como a eleição de Lula estaria para o Brasil. Segundo porque governará um Estado que é referência política nacional e onde o projeto hegemônico no país mais se implementara, com o governo de Antônio Britto. É possível afirmar que a eleição de Olívio Dutra, depois de uma disputa acirradíssima e desigual, impôs à política neoliberal uma derrota significativa que repercutirá em todo o país nos próximos quatro anos. Sobre isso e sobre os desafios do novo governo, entre um compromisso e outro, Olívio Dutra conversou com a jornalista Márcia Camarano e respondeu a esta entrevista exclusiva ao Extra Classe.

Diante da vitória iminente, durante a apuração do pleito, na noite de 25 de outubro, alguns dirigentes e militantes que trabalharam na campanha, não se contiveram e, entre lágrimas e risos, alguns se abraçavam, exclamando: “A gente trabalhou tanto que nem se dá conta da importância desta vitória…Vencemos o marketing, a política venceu o marketing…”
Este sentimento espalhou-se pelos corredores do comitê de campanha e logo foi sintetizado em pequenos cartazes fixados pelos jornalistas da Frente Popular, anunciando: “Nós somos os que vencemos Duda Mendonça. Porque temos política na cabeça e PT no coração. O resto é marketing”. Desta forma, a Frente Popular respondeu à pergunta suscitada por cientistas políticos que analisaram o papel das pesquisas e da comunicação nas eleições e os resultados do primeiro turno, em reportagem publicada na edição de setembro de Extra Classe. Quando o resultado da eleição estava consolidado, ainda no andar superior do comitê, Olívio Dutra explodiu de emoção, em uma manifestação jamais vista nem mesmo pelos seus companheiros mais próximos que testemunharam o momento.
A mesma vibração se repetiu instantes depois, quando embarcou na camionete que o levou para a festa da vitória, no Largo da Epatur que, apesar da chuva, permaneceu lotado até a madrugada da segunda-feira, 26 de outubro de 1998. É uma data que permanecerá na memória não só de petistas e de militantes da Frente Popular e da Frente Trabalhista do PDT – que o apoiou no segundo turno. Ficará guardada na lembrança de milhares de cidadãs e cidadãos anônimos que fizeram campanha e são, de alguma forma, protagonistas e depositários da vitória de Olívio Dutra, e mantêm adesivos e bandeiras nas janelas dos carros e das casas.
Aliás, duas datas marcarão para sempre a eleição de Olívio Dutra ao governo do Estado. Esta do dia 25 de outubro, que coincidiu com os 23 anos da morte do jornalista Wladimir Herzog, penúltima vítima a perder a vida nos porões da ditadura militar (a última foi o operário Manuel Fiel Filho). E, dia 1º de janeiro de 1999, data de sua posse como governador, que assinala também os dez anos de Administração Popular na Prefeitura de Porto Alegre, década inaugurada justamente por ele.

Extra-Classe – Essa data em que o senhor foi eleito governador, coincide também com os 23 anos da morte do jornalista Wladimir Herzog. O que representa a esquerda chegar ao poder em um Estado tão importante quanto o RS numa data tão emblemática?

Olívio Dutra – É bom se ter essa lembrança, guardar as datas. A simbologia delas, sem dúvida alguma, é importante. Mas a vitória do nosso projeto, do campo democrático-popular vem de um processo que há muito tempo está em movimento, vem se sedimentando. Não aconteceu de forma isolada. No Estado, com a importância que tem, nossa vitória tem a característica daqui, mas o campo que representamos está presente nos quatro pontos cardiais do país. No segundo turno das eleições, vencemos no Amapá, Acre, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul. A vitória virtual do presidente da República (reeleição de FHC) não foi em cima do debate. Portanto, foi uma vitória de pirro.

EC – Por que o senhor chama a vitória do presidente de virtual?

OD – Porque não houve debate. O projeto à presidência da República de Lula e Brizola não teve espaço para ser confrontado publicamente, frente a frente, com o do presidente eleito. Ele se garantiu na eleição sem precisar ir a um debate, sem se expor a nenhuma cobrança pública, não teve que prestar contas. Portanto, foi uma vitória que se deu com base no uso da máquina pública, na grande mídia, com o anteparo dos grandes grupos econômicos poderosos e com pouca relação do presidente eleito com a opinião pública efetiva, com os movimentos sociais, a cidadania. O presidente da República, reeleito de maneira virtual, sabe que sua vitória o deixou numa situação diferente da que tinha. Ele está mais debilitado politicamente. O campo democrático-popular alcançou vitórias importantes e, em algumas bases governistas, existem algumas vitórias que não significam reforço à postura do presidente, quer seja na sua relação com o FMI, com o capital financeiro especulativo. Há muitos governantes eleitos dentro de sua base que não estão confortáveis nessa situação de desmonte do pacto federativo, que acaba sendo resultado concreto da política do presidente da República e que fica reforçada pelas medidas e pacotes que estão sendo anunciados. Ele obteve uma vitória que, longe de ser fácil – a mídia anunciava que essa vitória seria acachapante, com enorme percentual de diferença – na verdade, com 1,5% a menos de votos, já iria para o segundo turno.

EC – Como a oposição pretende explorar essa fragilidade do governo federal?

OD – Bueno, nós ganhamos força, espaço, representatividade e referência no movimento popular-social, onde temos raízes e compromissos. O fundamental é manter a mobilização, qualificando-a cada vez mais. Tanto aqui para ser governo quanto em nível nacional, seremos uma oposição efetiva a um projeto que é de submissão do nosso país às regras impostas pelos organismos internacionais que defendem o capital especulativo, em particular, o capital financeiro.

EC – O senhor pretende implantar um projeto diferente do que vinha sendo desenvolvido no Estado. Como o senhor vê esse novo RS, na forma de governar?

OD – O povo gaúcho, desde o primeiro turno, mostrou que quer mudanças. Nós defendemos não só uma postura, mas temos compromisso, um programa de desenvolvimento econômico e social parelho, espraiado e simultâneo do Rio Grande, que se contrapõe ao projeto em andamento, neoliberal globalizante, que coloca o Estado sob o controle privado, beneficia grupos poderosos em determinadas áreas e esvazia a maior parte do Rio Grande, despreza o traço econômico da agricultura, da agroindústria, da micro e da pequena empresa. Achamos que esse Estado tem potencialidades para que isso aconteça e que nós vamos desencadear, valorizando a pequena, micro e média empresa em todos os ramos, recuperando a importância da agricultura (economia familiar) e da pecuária (pequeno e médio porte), investindo na pesquisa em todos os sentidos, em particular na pesquisa agropecuária, na extensão rural, na apropriação da ciência e tecnologia pelo micro, pequeno e médio empreendedor, para que a produção aumente, seja diversificada, cresça em produtividade e agregue valores nas diversas regiões.

EC – A Frente Popular chegou a se abalar com as projeções da mídia de que a coligação Rio Grande Vencedor ganharia as eleições ainda no primeiro turno?

OD – A nossa vitória foi construída. Em nenhum momento pensamos em plena aprovação. Quem pensava assim era o candidato oficial e deu com os burros n’água. Porque nós temos um trabalho que não é de hoje. Os partidos do campo popular-democrático têm relações ricas com o movimento social no campo e na cidade, com o próprio sofrimento dos pequenos, micros e médios empreendedores da agricultura e pecuária desse Estado. Naturalmente, o nosso trabalho, contínuo e sério se espalhou cada vez mais, junto com um programa que tocava nessas questões e mostrava alternativas de se desenvolver o Estado de um outro jeito que não esse que estava aí. Mas isso é trabalho de milhares de militantes sociais, não apenas dos nossos partidos. É a cidadania despertada, incendiada. E nós apostamos nisso. Nunca achamos que a vitória seria uma coisa fácil, dependendo da vontade do candidato e meia dúzia de bons quadros que temos. Articulamos ações que possibilitaram com que a campanha fosse assumida espontaneamente por milhares de pessoas, balizada em um programa, com respeito à cidadania e uma afirmação de que é possível na organização dos pequenos no campo e na cidade, resgatar o Estado para o controle público, para que funcione com eficiência, transparência e inaugure, a partir de 1? de janeiro, a transformação. Não apostamos na mídia, em marketing. Apostamos na força da proposta, nas nossas relações com o movimento social, popular e comunitário. E isto tem a ver com a história do nosso Estado. Porque um governo no RS não pode simplesmente se submeter à macro-economia do governo federal. Esse novo governo já está assumindo um traço importante da cultura política: a unidade federativa não é uma coisa submissa para ser pisoteada e garroteada pelo governo central. Somos brasileiros por opção, não por vontade do rei.

EC – Isso marcará a relação com o governo federal…

OD – Queremos ter com o governo central uma relação de respeito, de reconstrução do pacto federativo sério, não destroçado. Foram elementos que colocamos no embate político e pudemos, por isso, trazer o adversário para o nosso campo. Desde o primeiro turno eu dizia ‘nós não vamos ganhar essas eleições no campo do adversário, que é o campo da mídia, da televisão, de seus espaços de domínio. Nós vamos ganhar essa eleição com a mobilização popular, social e comunitária. Nas praças, nas ruas’. E isso foi acontecendo num crescendo.

EC – Dia 1º de janeiro de 1999 o senhor assume como governador, exatamente 10 anos depois de tomar posse como prefeito de Porto Alegre. Que experiências o senhor pretende levar para o governo do Estado?

OD – Eu e centenas de companheiros temos experiências acumuladas de longa data. E aquela experiência de inaugurar um governo de participação popular em Porto Alegre, em 89, é muito rica e valiosa para todos nós, integrantes e dirigentes de partidos, do movimento popular e comunitário, das lideranças de base. Mas não existe experiência absoluta, que se baste por si só. O espaço de uma cidade como Porto Alegre é complexo, mas não tem a complexidade de uma unidade federativa como o Rio Grande. Porém, é claro que essa experiência acumulada, por exemplo, o Orçamento Participativo, a inversão de prioridades, o controle público sobre o Estado no processo, o exercício pleno da cidadania, são experiências inestimáveis, reveladoras do quanto se tem ainda para aperfeiçoar. Temos essa disposição de realizar um governo de transformação, democrático e popular.

EC – A Frente Popular vai mexer muito na estrutura atual de governo, a fim de adequá-la ao novo projeto?

OD – Nós não temos a visão de chegar a canetaço e, arbitrariamente, mexer na máquina, como se ela estivesse funcionando mal por falta de uma autoridade. A máquina pública funciona mal – boa para poucos e muito ruim para a maioria – porque o Estado tem sido uma espécie de propriedade privada das elites tradicionais do nosso país e aqui no Rio Grande não é diferente. É a visão patrimonialista do Estado. Os partidos representantes das elites se alternam no poder, mas mantêm a mesma visão de apropriação privada do Estado. Nós vamos desencadear um processo novo, de apropriação pública do Estado. Isso é mexer na cultura. Então não é uma questão de decreto, de ações bombásticas para essa máquina mudar. É um processo novo, por dentro da máquina. O Estado não é propriedade privada dos governantes, dos seus amigos e partidários, dos grupos econômicos poderosos, com uma relação de compadres. O Estado tem de estar sob controle público e Porto Alegre, como outros municípios, mostrou que assim funciona com mais presteza, transparência, eficiência, justiça e sensibilidade para com os dramas do ser humano.

EC – É possível colocar em prática esse projeto, mesmo tendo a oposição como maioria esmagadora na Assembléia Legislativa?

OD – Claro que é possível. Nós governamos Porto Alegre por três mandatos consecutivos sem nunca ter tido a maioria na Câmara de Vereadores. Só agora, no último governo, temos a maior bancada, mas assim mesmo não é a maioria da casa legislativa. Temos experiência em trabalhar com a diversidade, a pluralidade, com respeito entre os poderes. Essa experiência vai nos servir muito para estabelecer esse princípio da interdependência e harmonia entre os poderes executivo, legislativo e judiciário. Tenho certeza que o Orçamento Participativo, o debate aberto, as instâncias oxigenadas de participação popular poderão qualificar ainda mais essa relação. E é muito bom que no Legislativo o leque ideológico e partidário seja melhor representado do que no Executivo. Isso é da democracia. O governo não tem que dizer qual a oposição que ele quer. A oposição tem a sua representação, não só no Legislativo, mas na sociedade, e nós queremos trabalhar no campo aberto das propostas. Nós temos um programa e vamos executar esse programa e a sua execução vai ser aperfeiçoada com a participação social e comunitária. E é bom que o projeto oposto se manifeste no campo aberto das idéias. Isso faz parte da democracia. Somos contra o Estado se sobrepondo à sociedade. Não é o Estado que tem de controlar o Estado, mas sim a sociedade. Queremos radicalizar a democracia na sociedade. O Estado sob o controle público é mais eficiente, transparente e, portanto, mais barato para o cidadão e a serviço do ser humano.

EC – A inserção do PDT será apenas no governo ou está em andamento uma fusão partidária?

OD – Estamos num processo de afirmação das forças que caminharam juntas e solidariamente para vencer o projeto neoliberal globalizante, nosso adversário nessa eleição. O conjunto de forças político-partidárias-sociais tem que estar representado no governo. O PDT é uma dessas forças, não é a única. A questão partidária de fusão não é uma questão de governo. Fomos eleitos para governar o Rio Grande e não vamos, de forma alguma, substituir as direções partidárias, a quem cabe o debate tranqüilo e sereno dessa questão. Não cabe nem ao governo incorporar os partidos, nem aos partidos terem o governo a cabresto. Ambos estariam reduzindo as suas funções. O governo tem um espaço de atuação importantíssimo, sério, a execução de um programa e os partidos têm um projeto estratégico que não se reduz a um período de governo. Mas é evidente que os nossos partidos têm de afirmar esse projeto estratégico na sua ação concreta. Essas são esferas que se interpenetram, mas nós não vamos substituir os partidos no que se refere ao debate da reforma partidária, não é pauta para o governo.

EC – Esse período de transição está sendo tranqüilo, como a Frente Popular esperava?

OD – Miguel Rossetto, vice-governador eleito, está trabalhando nesse período da transição. Temos conversado todos os dias, trabalhado os elementos que estamos recolhendo. Na verdade, esse processo não está bem. Gostaria que a opinião pública tivesse essa informação. O governador nomeou o vice-governador Vicente Bogo para ser seu interlocutor. O vice-governador, na volta do titular, tirou férias e volta dia 15, não deixou ninguém para representá-lo. Enquanto isso, o executivo quer acelerar a votação de projetos na Assembléia que entram em conflito com o projeto vitorioso nas eleições, que é o nosso. Por tudo isso, a transição não está sendo boa, mas nós apostamos que esse período nos possibilite fazer uma ampla e profunda radiografia do Estado, sobre finanças, administração, contratos, convenções com a iniciativa privada. E a opinião pública gaúcha conhecerá essa radiografia que estamos fazendo, porque a partir do primeiro mês de governo nós vamos divulgá-las pelos Conselhos Regionais de Desenvolvimento. A conscientização social/popular será o alicerce do governo. Não tenho ilusão, o centro-direita também sai desse processo mobilizado, não sei se por pouco ou muito tempo, mas nós não desconsideramos nem subestimamos o campo adversário.

EC – O senhor vai morar no Palácio Piratini?

OD – Isso não é pauta de nossa discussão. Não é preocupação, como se fosse uma coisa de suma importância.

 

 

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