Um ano e cinco meses após deixar o cargo de Arcebispo de São Paulo, o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, franciscano de hábito, reafirma sua vocação pelo trabalho em defesa dos pobres e marginalizados. Para ele, que foi o primeiro brasileiro a ser indicado para o prêmio Nobel da Paz, não existe aposentadoria.
Há 28 anos, o Papa Paulo VI colocava uma pedra nos coturnos da ditadura militar brasileira. No mesmo período em que assumia a presidência da República o general Emílio Garrastazú Médici, responsável pela pior fase da repressão política, com os freqüentes seqüestros, prisões, torturas e execuções de opositores do regime, tomava posse como Arcebispo Metropolitano Dom Paulo Evaristo Arns, na então maior Diocese Católica do mundo, São Paulo. A luta deste catarinense, nascido em Forquilhinha no ano de 1921, foi tanta que ele acabou reconhecido internacionalmente como o defensor dos torturados Laureado em Patrística e Línguas Clássicas, jornalista, pedagogo formado pelo Instituto Católico de Paris, fala cinco idiomas e pronuncia frases em 58 línguas diferentes, tornou-se o porta-voz dos que lutavam contra as arbitrariedades dos regimes de exceção.
Ele mesmo conta que não passou uma noite sequer, durante sete anos, sem ser requisitado por pessoas desesperadas à procura de seus familiares. Dessa situação de angústia, tirou forças para, no final da década de 70, assumir o audacioso projeto Tortura nunca mais, uma investigação minuciosa nos arquivos militares que comprovaram a tortura entre 1964 e 1978, divulgada depois no livro Brasil: nunca mais, um documento histórico que, nas palavras do próprio Dom Paulo, em seu prefácio, pretende reforçar a idéia de que a tortura, além de desumana, é o meio mais inadequado para levar-nos a descobrir a verdade e chegar à paz.
Nesta entrevista exclusiva ao Extra Classe, Dom Paulo conta sua experiência com o regime militar, como bom franciscano que é, reafirma seu amor pelos pobres e critica todo e qualquer tipo de reeleição. Com a elegância que é peculiar a um Príncipe da Igreja, não poupa nem a instituição mais antiga do cristianismo, falando do conservadorismo da Cúria Romana, que reprimiu com mão de ferro a Teologia da Libertação, e diz que o Papa João Paulo II ainda não soube trazer o equilíbrio da humanidade, porque o “neoliberalismo está reduzindo a um pequeno grupo aquilo que devia pertencer a todos”. Fala pouco mesmo é de sua aposentadoria compulsória, que se deu por força do Direito Canônico no ano passado. “Acho que há muito trabalho a fazer”, proclama o Cardeal que é um corintiano fanático e completou 77 anos em setembro passado.
Extra Classe – Como é estar aposentado, depois de tantos anos à frente de uma das mais importantes arquidioceses católicas do mundo?
Dom Paulo Evaristo Arns – Na igreja não existe propriamente aposentadoria. Quando a gente é batizado, a gente é assumido pelo Cristo e tem de imitá-lo até o fim da vida. Então, cada um faz aquilo que pode na sua condição. Eu, como Bispo Arcebispo emérito (N.R.: título que recebeu após passar o comando da Arquidiocese de São Paulo a Dom Cláudio Hummes), assumi o trabalho, sobretudo com as pessoas idosas, que dependem da aposentadoria, dependem muitas vezes da caridade do próximo, que envelhecem e não têm socorro, e com as crianças pobres, que nascem de mães pobres. Eu acho que há muito trabalho a fazer.
EC – Três papas marcaram o seu sacerdócio. João XXIII que, ao liderar um processo de reformas profundas na Igreja, com o Concílio Vaticano II, deu as bases para seu trabalho; Paulo VI, que o nomeou Bispo e após Cardeal de São Paulo e reafirmou sua luta contra a ditadura militar e João Paulo II, que se empenhou na luta contra os regimes do leste europeu, mas que freiou a atuação dos setores eclesiais ligados à Teologia da Libertação. Se o senhor tivesse de elencar, quem foi o maior e mais importante destes três?
D. Paulo – É muito difícil opinar sobre uma pessoa que teve influência no mundo inteiro como tiveram esses três papas ou está tendo ainda este último. Ressaltaria em João XXIII aquele sentido humanitário. Por exemplo, em Pacem Terris (N.R.: Carta Encíclica publicada em 11 de abril de 1963), ele escreve que a sociedade só pode viver se ela tiver justiça social, se ela tiver solidariedade humana, se ela tiver uma certa busca da verdade, ou seja, da honestidade; e, depois, se ela cultivar a verdadeira liberdade. Isso me abriu os horizontes para o mundo, pelo qual eu quero lutar. Pela justiça social, pela liberdade, pela solidariedade e pela verdade, a gente quer dar a vida. Paulo VI teve uma intuição tão grande a respeito do futuro, que um cardeal me disse que o papa Paulo VI foi o papa de maior intuição de toda a história da humanidade. Ele não só viu o ato, via as conseqüências da omissão, bem como as conseqüências da ação para o futuro. Comigo ele discutia as condições de São Paulo e me mandava para todos os grandes centros do mundo para estudar como é que uma cidade pode ser evangelizada. João Paulo II é mais o homem que anuncia. Anuncia o Cristo e também as condições para a humanidade se entender. Eu acho que devemos a ele, em grande parte, o fim do comunismo, mas ele ainda não soube trazer o equilíbrio da humanidade, porque o neoliberalismo, que entrou no lugar está destruindo a humanidade, está reduzindo a um pequeno grupo aquilo que devia pertencer a todos.
EC – O senhor não acha que João Paulo II foi severo demais com setores da Teologia da Libertação?
Dom Paulo – Certamente não foi João Paulo II. Foi a Cúria Romana. João Paulo II sempre me recebeu, sempre me encorajou, e até disse muitas vezes – a Teologia da Libertação tem que entrar dentro da corrente da teologia: dos tempos antigos, até os tempos modernos, porque em cada página da bíblia se encontra um incentivo para a libertação. E o homem tem de ser livre para ser inteiramente aquilo que Deus quer que ele seja.
EC – Como bom franciscano, o senhor certamente gosta de ser chamado de bispo dos pobres?
Dom Paulo – Ser chamado bispo dos pobres talvez seja para muitos uma humilhação. Para mim não é. Eu não quero ser bispo de ricos, gosto de ser bispo dos pobres porque me sinto muito bem entre eles. Gosto, sobretudo, de almoçar com eles, ouvir as poesias deles, os cantos deles, as danças deles. Tudo isso me alegra muito. Eu acho que o que devemos tirar da terra é a miséria, não a pobreza. A pobreza liberta, enquanto que a miséria escraviza e destrói o homem.
EC – Mas o senhor faz mais do que isso. Ao assumir a diocese de São Paulo iniciou a chamada Operação Periferia. Vendeu o Palácio Episcopal e comprou dois mil lotes para a construção de centros comunitários. Essa decisão causou surpresa, foi questionada?
Dom Paulo – Recebi visitas desde o governador até o prefeito de São Paulo. Todas as autoridades se manifestaram contra porque pensavam que o cardeal deveria morar dentro de um palácio. O jornal Diário Popular mandou repórteres perguntar ao povo se eu devia vender o palácio para dar o palácio aos pobres e 100% respondeu que não. O cardeal fica aonde ele está, porque ele é nosso cardeal. É cardeal católico. É cardeal de São Paulo. É único. É um só. Depois que eu vendi, apesar disso, com licença do papa e do meu Conselho, fui também à televisão para explicar. E eu perguntei de novo ao Diário Popular e o jornal fez outro inquérito e 100% disseram: se for para dar acolhida aos imigrantes que vêm do nordeste, então nós estamos de acordo.
EC – Em 1989, a Cúria Romana decidiu criar quatro novas dioceses em São Paulo, dividindo sua arquidiocese que passou de 1.509 quilômetros quadrados para apenas 625. Vaticanólogos afirmaram que a intenção era diminuir a sua influência. O que o senhor pensa disso?
Dom Paulo – Acho que foi um erro. O próprio papa me disse isso e o cardeal de Paris, que também sofreu uma divisão semelhante, me disse que se o papa pudesse, evitaria essa divisão. E o papa mesmo me disse pessoalmente – “é contra a minha vontade, porque eu acho que o seu modo de coordenar a cidade, dando a cada bispo a sua liberdade de agir, mas com uma coordenação geral de toda pastoral, é muito mais eficaz do que dividir em pedaços e cada um fazer o seu pedacinho”. Com divisão, ninguém pode influenciar diretamente sobre as forças autênticas da cidade, que são o trabalho, mas são também a riqueza e a pobreza, são também as universidades e os meios de comunicação, são também, muitas vezes, forças que parecem contraditórias e que precisam ser conciliadas. É muito mais fácil conciliar em grupo. Eu só quero dizer que, enquanto nos éramos 11 pessoas, um time bom de futebol, 10 excelentes bispos auxiliares, eles nunca foram chamados de auxiliares, sempre foram chamados bispos regionais. Cada qual tinha sua região e era verdadeiro bispo em sua região, mas permitia que, no trabalho comum, nós colocássemos todos os recursos, tantos os materiais quanto os culturais e espirituais à disposição da diocese. Isso foi ótimo. Até hoje acho que a solução para a pastoral das grandes cidades não é dividir. A solução é coordenar um trabalho efetivo, que seja pastoral de cidade e não do interior.
EC – Então, o senhor concorda com a opinião dos vaticanólogos?
Dom Paulo – Não, eu não senti nenhuma diminuição. Pelo contrário, a minha influência aumentou muito daquele tempo para cá, porque, em primeiro lugar, tinha acabado o tempo da repressão militar e entrou a democracia. Sempre que entra a democracia, a gente pode manifestar opiniões, idéias, e concretizá-las, muitas vezes, de uma maneira mais eficaz.
EC – Suas relações com os governos militares nunca foram boas. Isso é público. A gente pode dizer até que Paulo VI colocou uma pedra nos coturnos deles. Qual foi a sua pior e a sua melhor experiência com os governantes da época.
Dom Paulo – A minha pior experiência foi, sem dúvida, durante o tempo do general Médici, porque ele aumentou muito a perseguição às pessoas que queriam renovar e ter mais liberdade de expressão. O Ato Institucional número cinco, que ele pôs em prática, nos levou ao extremo da ditadura, com muitas mortes, muitos sofrimentos de tortura e, também, com muitas injustiças em todos os quadrantes da nossa pátria. Eu posso dizer que o Médici é quase que o resumo de uma ditadura desumana, cruel, como ela pode existir na terra. Eu espero que isso nunca mais se repita no Brasil. E, por isso, também publicamos o livro Brasil, nunca mais. A melhor experiência, foi com o general Dillermando, no final do governo Geisel e começo do de Figueiredo. O general Dillermando era um caboclo autêntico, lá do Mato Grosso, que não tinha perdido a simplicidade dentro do comando. Com ele, eu podia discutir todas as coisas de uma maneira pacífica e resolver todos os problemas dos estudantes, dos intelectuais e dos pobres e trabalhadores.
EC – O senhor disse uma vez que, pelo menos durante sete anos, não passou uma noite sequer sem que alguém o procurasse para interceder por presos políticos e que isso lhe angustiava muito.
Dom Paulo – O que eu afirmei há sete anos posso confirmar, porque toda a noite eu tinha de tomar comprimidos para poder dormir e, muitas vezes, era acordado duas, três vezes e não podia dar solução para o problema à noite. Tinha que guardar comigo. Eu cheguei a escrever cartas durante noites inteiras, para que de manhã pudesse agir. Uma vez, foi justamente com o hoje presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, e com o Procópio (N.R: Ferreira, sociólogo), que era o presidente do Cebrap (N.R.: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Tive de intervir na noite mesmo. Eles vieram e me disseram – nossos companheiros foram presos, estão sendo torturados à morte e se o senhor não intervir imediatamente eles vão estar mortos amanhã. Às 7 horas da manhã eu já estava com o comandante do 2º Exército para dizer a ele: o senhor deixa disso, se não nós vamos difundir o seu nome como o pior perseguidor e torturador da revolução do Brasil. O senhor vai ficar execrado em todas as partes do mundo. Eu falei com tanto rigor, que ele me disse – o senhor parece que é injusto comigo, porque eu estou cumprindo o meu dever que é o de lutar para vencer os subversivos. E o senhor tem a obrigação de cuidar, como o samaritano, para curar as feridas, mas não podemos brigar um com o outro. Então eu disse – o senhor deve deixar a briga, porque o senhor está matando pessoas inocentes de grande capacidade e de incrível influência sobre o futuro do Brasil. Foi o grupo do Cebrap dirigido pelo Fernando Henrique e pelo doutor Procópio, que depois se suicidou, infelizmente.
EC – Como o senhor avalia o governo e a reeleição do presidente?
Dom Paulo – Sou propriamente contra toda a reeleição. Acho que reeleição no Brasil sempre leva a usar a máquina do Estado, a influência do Estado. E renovação é muito bom para a democracia, quando nos temos uma geração formada. Para nós, o que faltou depois da ditadura foi nós termos tempo para formar uma juventude que tivesse vocação para a política, mas também tivesse um sentido para a honestidade e para as dificuldades do povo. O Fernando Henrique, a meu ver, está lançando um bom fundamento para que o Brasil depois possa progredir de fato em todos os setores. Se ele insistir sobre a reforma do ensino e a reforma da saúde e moradia. São coisas indispensáveis para que o Brasil deslanche e seja mais feliz.
EC – O senhor não acha que o presidente, em seu primeiro governo, deixou de investir no social, traindo alguns de seus princípios?
Dom Paulo – Acho que ele deixou muito de investir no social. Perguntei para ele – por que o senhor conserva esse mesmo pessoal, que só insiste no financeiro, no econômico e não insiste no social, na parte humanitária. E ele me respondeu – é muito difícil governar sem que a gente tenha o fundamento necessário, ou seja, uma estabilidade financeira dentro do país. São concepções diversas, que, talvez, levem a um resultado semelhante. Agora, eu acho que ele traiu os próprios princípios, porque ele mesmo defendia a liberdade que é um princípio social essencial, como também a possibilidade de todos agirem e não só alguns agirem.
EC – O senhor foi indicado para receber o prêmio Nobel da Paz pelo seu trabalho em favor dos perseguidos políticos, não só da ditadura militar do Brasil, como das chilena e argentina. Na realidade, foi o primeiro brasileiro a ser indicado para essa premiação tão importante. Como é que o senhor se sente com isso?
Dom Paulo – Sempre tive uma aversão a qualquer tipo de premiação. Acho que a pessoa deve cumprir o seu dever não porque vai ganhar um prêmio. Deve cumprir o seu dever porque aí une a humanidade e une os corações, dá entusiasmo para a juventude, leva adiante grandes idéias para o futuro. Mas o prêmio da paz, muitas vezes, pode destruir o idealismo e levar a pensar que nós merecemos o reconhecimento. Quem nos reconhece é o amigo que está perto de nós, aqueles que trabalham conosco e o próprio Deus.
EC – O que o senhor acha de afirmações que sustentam que a ação política da Teologia da Libertação acabou afastando muitos fiéis da Igreja Católica?
Dom Paulo – Em parte isso é verdade. Cada vez que eu, por exemplo, tornava conhecida uma ação negativa do governo, no tempo da ditadura, a igreja se esvaziava. Nos domingos posteriores vinha menos gente, porque as pessoas tinham medo. Mas, quando de dois em dois anos, depois a cada quatro anos, consultava toda a população de São Paulo, esta respondia 98% – nós queremos a defesa dos direitos humanos e da pessoa humana. No fundo, elas próprias queriam isso. Queriam lutar pela libertação, só que tinham medo de serem presas ou consideradas subversivas, ou serem consideradas minhas amigas.
EC – E a chamada Renovação Carismática?
Dom Paulo – A teologia baseada mais na euforia, na manifestação psicossomática, quer dizer, com a alma e com o corpo, com muitos gestos e expressões, com muita amizade e com muita alegria, leva o povo a considerar a religião como uma manifestação de festa, o que em parte realmente é e deve ser. É festa porque é encontro com Deus. Mas, a seriedade, a consideração para com a pessoa é mais profunda. Tem de ir até o respeito, até o derramamento de sangue em favor da outra pessoa.
EC – O senhor acredita que as ações repressivas da Cúria Romana sobre a Teologia da Libertação se basearam na desconfiança?
Dom Paulo – Qualquer instituição, mesmo a minha Cúria, em São Paulo, torna-se conservadora se ela não participa de todos os movimentos das pastorais sociais. Mas a Cúria Romana certamente foi ultra conservadora nesse tempo de João Paulo II e também foi ultra conservadora ao julgar a teologia da liberdade. Eles lá não encararam a teologia como fez o papa e acharam melhor cortar. Cortaram muitas coisas de tal forma que levaram ao Boff a se calar e levaram o próprio fundador da teologia da libertação (N.R.: Gustavo Gutiérrez) a calar-se também. Isso pode acontecer na igreja, porque já aconteceu no tempo de Jesus, quando um apóstolo era ultra conservador, como Thiago, e outro apóstolo era avançadíssimo, como São Paulo.
EC – É verdade que o senhor, quando acompanhou frei Leonardo Boff no depoimento à Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma, travou um debate muito duro com o cardeal Joseph Ratzinger, presidente deste órgão da Cúria Romana.
Dom Paulo – Pelo contrário, sempre tive um relacionamento fraterno e muito bom com o cardeal Ratzinger. Ele até serviu café com bolo, depois da discussão com o Boff. Isto foi inventado para dramatizar um pouquinho mais aquela proibição de escrever e justificar a saída dele da ordem franciscana e do sacerdócio.
EC – E o que o senhor acha da saída de frei Leonardo?
Dom Paulo – Foi uma pena, uma precipitação. Acho que ele vai voltar um dia e vai ser um bom franciscano e um bom sacerdote, porque ele foi durante oito anos meu aluno e meu aluno preferido, um aluno muito bom. Acredito que ele tenha o caminho de ida, mas também tenha o caminho de volta, orientado, dessa vez pelo espírito santo.
EC – Então as portas do convento de São Francisco estão abertas?
Dom Paulo – Suponho que os franciscanos o recebam com muito gosto se ele voltar com humildade, simplicidade e lutar sempre pela pobreza.
EC – Dom Oscar Romeiro (Arcebispo de San Salvador, El Salvador, assassinado no altar em 1980) certa vez disse que foi convertido pelos pobres. O que o senhor pensa disso?
Dom Paulo – Acredito no poder de conversão dos pobres. Quando voltei como doutor da universidade mais célebre do mundo naquele tempo, a Sorbone, me mandaram para um lugar bem pobre em Petrópolis, onde havia sete favelas. Trabalhei dez anos e meio lá, três dias eu ia para a universidade e três dias ia para as favelas, fora o domingo, que era totalmente consagrado às favelas. Posso dizer que foi o meu tempo mais feliz de padre e de homem, pessoa humana, trabalhando em favor dos mais pobres, que me ajudaram a construir as suas escolas, sua espiritualidade. Nunca vi, pena que hoje mudou tanto, um só crime nessas sete favelas. Até hoje sempre digo – o pobre é o maior mestre quando ele não vive na miséria, mas sim numa pobreza que ele sabe enfrentar, como aquele morador que me pediu uma benção para a sua casa. Ele disse: daqui eu posso ver todos os morros de Petrópolis e toda a beleza que existe na natureza e isso os ricos não podem, porque eles se fecham para defender a vida. Eu não preciso defender a minha vida porque ela está na mão de Deus e tudo o que Deus criou me pertence, porque pertence aos meus olhos e ao meu coração. Eu amo a natureza. É o que São Francisco de Assis também dizia, eu amo a pobreza e amo natureza.
EC – A igreja tem uma forte pregação contra o uso de preservativos nas relações sexuais. Na época de uma doença tão séria, como a Aids, como o senhor avalia isso?
Dom Paulo – Acho que sempre vale aquele princípio – entre dois males se escolhe o menor. Nós sabemos que a igreja luta pelos princípios, mas a aplicação dos princípios deve ser feita pela consciência de cada qual. Esta consciência deve ser sempre revista e aperfeiçoada para que ela concorde com o desígnio de Deus, que é a vida e vida em plenitude.
EC – É verdade que como estudante em Paris o senhor chegou a passar fome e viajar de carona?
Dom Paulo – É verdade. A França ainda estava sobre o impacto da guerra e não havia alimentos suficientes para todos. Havia fila para açúcar, para carne, outras comidas, como também para outras coisas que precisavam ser divididas para chegar a toda a população. Com isso aprendi que passar fome é uma experiência muito boa para qualquer pessoa e, talvez, seja até saudável em muitos casos. No meu caso não O médico achou que estava me prejudicando muito a saúde física e também os estudos. Durante dois anos eu não só passei fome, mas fiz fila para procurar um pedacinho de carne, um pouquinho de batatas, que na França eram distribuídos. Carona, naquele tempo, era quase que costume. O estudante não viajava pago. Quando viajava por trem, o que eu fiz uma vez só, porque era mais de 1000 quilômetros, como estudante tinha 50% de abatimento no bilhete. Mas em outras vezes era realmente pegando carona, fazendo como todos estudantes fazem. Como sempre andava de hábito franciscano, qualquer pessoa parava, mesmo as senhoras e as pessoas mais jovens. Todas elas gostavam de conversar e ter novidades a respeito da vida religiosa e, sobretudo sobre a vida de um franciscano. Assim pude ser ao mesmo tempo um evangelizador e um homem amigo da natureza e amigo daqueles desconhecidos que me encontravam pela primeira vez.
EC – Para encerrar, qual a mensagem que o senhor deixaria?
Dom Paulo – Eu gostaria, meus amigos, que todos nós assumíssemos o Brasil como sendo a nossa família. Nesse Brasil, dentro do espírito do papa João XXIII, que é chamado até hoje de o papa bondoso, sempre fazendo com que todos possam experimentar a justiça social. Quer dizer, ter o necessário para viver com dignidade, mas também repartir com os outros todos os talentos que nós temos. Nós nascemos e vivemos para os outros e não para nós. Assim Deus o quis e assim cada pessoa é feliz.