Na linha de frente de seu trabalho estão as ideias de Paulo Freire e o ensino multicultural, tendência pedagógica com berço nos Estados Unidos dos anos 60. Contestatória, a tese cresceu a partir da preocupação de educadores que apoiavam as lutas sociais, políticas e econômicas de diversos grupos étnicos em geral oprimidos. Quem vê Peter McLaren, aliás, depara-se justamente com uma espécie de síntese multicultural: brincos de argola, cabelos longos, óculos à la John Lennon e muita teoria, resultado de 20 anos de pesquisa. Canadense radicado nos Estados Unidos, Ph.D. em Educação, McLaren é um inconformado invejável: diz odiar seu primeiro livro, avalia que os norte-americanos domesticaram o discurso freiriano – decapitando a parte política – e fala ainda da necessidade de abolição da brancura. Para ele, foi o capitalismo quem gerou o racismo. No Brasil, seu penúltimo livro, A vida nas escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos fundamentos da educação(Artes Médicas, 1997), foi tão bem aceito que já está na segunda edição. Multiculturalismo Revolucionário (Artes Médicas, 1999), seu último livro, foi lançado em setembro no estado e promete carreira semelhante. Em Porto Alegre, para promover o livro, McLaren concedeu a seguinte entrevista ao Extra Classe. Na linha de frente de ser de cor, de cor branca…
Extra Classe – No seu primeiro livro (Cries from the Corridor: The New Suburban Ghettos, 1980, publicado apenas no Canadá), o senhor relata seu diário de atividades como professor de escola primária numa região pobre do Canadá. O senhor já declarou que não gosta desta publicação. Por quê?
Peter McLaren – Detesto o livro porque comecei a notar – a partir dele – que eu personificava muito os problemas sobre os quais falava. Quando estava escrevendo, ainda não identificava as ideologias incorporadas ao discurso. Porém, a obra se tornou um grande sucesso no Canadá, alcançou o sétimo lugar entre os mais vendidos. Eu até cheguei a receber propostas da televisão para transformar o livro em um filme, mas depois comecei a ler Paulo Freire e outros pedagogos e ver que as coisas não eram daquela forma. O livro era mais um relato de eventos. Só que agora eu percebo que os fatos nunca falam por si, devem ser analisados no contexto em que ocorreram e relacionados com outros, inclusive com situações de poder. Ao deixar os fatos falarem por si no livro, também deixei aberto demais para interpretações variadas. Uma noite cheguei a escutar no rádio um líder da Ku-Klux-Klan (organização racista norte-americana) recomendar o meu livro! O radialista perguntou como é que ele estava recomendando um autor progressista e ele respondeu: ah, mas se vocês lerem o mau comportamento daquelas crianças, terão vontade de mudar as leis de imigração. Terão vontade de manter as pessoas de pele escura fora do país. Sem querer, acabei personificando a ideologia dominante do europeu de pele branca, bem educado. Reforcei toda a ideologia pedagógica cultural. Atualmente meus livros são menos populares, não estão entre os dez mais vendidos, são mais teóricos, mais reflexivos. Mas são mais honestos.
EC – O senhor fala em sua obra que a sociedade impõe às crianças pobres uma posição injusta e que a educação está a favor desse sistema, deixando as coisas como estão, não permitindo que elas progridam. Como se pode romper com essa visão?
McLaren – Quando digo que o capitalismo precede o racismo, faço uma pequena diferença entre o racismo e o medo do diferente. Entendo esse medo, mas acredito que ele é institucionalizado, gerado pelo capitalismo, principalmente com a escravatura transatlântica. Em meados do século 17 havia plantações de tabaco na Virginia (Estados Unidos) em que 6 mil europeus e 2 mil africanos trabalhavam juntos, em regime de semiescravatura. Aos poucos eles começaram a se organizar para ter pequenas porções de terra e, a fim de evitar essa revolta e perder todos os escravos, os donos das plantações se alinharam com os europeus por que eram em maior número. A esses 6 mil, que não tinham a pele tão clara mas tampouco tão escura, foi dada uma “promoção” no ranking étnico. Eles passaram a ser considerados brancos. É assim que se cria essa noção de brancura: as pessoas leem a raça. Quando enxergam umas às outras, veem textura de cabelo, pele, cor, tipo de dentes. Raça é uma questão de percepção.
EC – É por isso que o senhor fala em abolição da brancura?
McLaren – Sim. Em palestras que proferi sobre esse conceito, pessoas me disseram que não interessava o quanto eu queria abolir a brancura, mas que se eu saísse uma noite a caminhar por Beverlly Hills com alguns negros, a pessoa a ser parada por algum policial para se identificar nunca seria eu. Claro que eu concordei.
EC – O senhor diz que a abolição da brancura deveria partir dos brancos, mas quando se refere a vários grupos étnicos como negros, latinos, japoneses, usa o termo “pessoas de cor”. Por quê?
McLaren – Nos Estados Unidos esse é o único termo aceito como não-racista.
EC – Mas, partindo do pressuposto da abolição da brancura, os brancos também seriam de cor, de cor branca…
McLaren – Eu sei que é um termo problemático, embora tenha se fixado como politicamente correto assim. Mas o esforço a ser feito, a meu ver, é a respeito da política de identidade, que prega o seguinte: que vários grupos – negros, japoneses, porto-riquenhos, mexicanos – se unam contra a hegemonia branca. Mas eu acho que não é por aí. Penso que antes vem o capitalismo. Então, a principal luta é contra o capitalismo e não contra os brancos. Algumas pessoas me disseram que, devido a essa conjuntura, é impossível ser um branco não-racista. E eu digo que esse argumento é válido: temos de ser brancos racistas antirracistas. Teve uma escola porto-riquenha, considerada radical em Chicago, pela qual fui chamado para dar uma palestra porque eles estavam trabalhando com Paulo Freire e alguns postulados meus e o FBI foi para lá, cercou a escola com armas pesadas e causou um prejuízo de US$ 20 mil. A desculpa dada foi que eles estavam ensinando práticas violentas contra o povo americano. Na segunda vez em que fui a essa escola, eles já tinham colocado em prática as ideias da pedagogia crítica e estavam ficando mais conscientes sobre o capitalismo e suas consequências. Inclusive, alguns alunos recebiam financiamento para conhecer sua terra e depois voltar. Aí entrou de novo o FBI, acusando a escola de estar pagando para que os jovens se tornassem terroristas. É claro que se esses alunos tivessem sido mandados ao Lincon Center, em Nova York, nada disso teria acontecido. A tradução para isso tudo é a união dos conservadores políticos daquela área de Chicago, da indústria imobiliária e também do FBI. Se juntaram para desagregar essa comunidade, se juntaram para que se mudem dali, para que possam fazer os seus projetos de limpeza étnica e de recuperação imobiliária. Ou seja, qualquer mudança estrutural que tenha que ocorrer lá terá de partir da classe trabalhadora.
EC – Aqui no Brasil fala-se muito da apatia do povo, principalmente das novas gerações que estão chegando sem entusiasmo, treinadas no individualismo, sem esse espírito de classe.
McLaren – Nos Estados Unidos há também essa atitude resignada frente à mistificação de que como a economia está florescendo, como nunca se vendeu tanto e o nível de emprego ainda está bom – embora sejam, na sua maioria, empregos temporários. As pessoas acham que, a fim de se manter no topo, têm de se resignar. E isso acontece como? Diminuindo as demandas nos sindicatos, pensando que devem se resignar pelo fato de a força de trabalho estar perdendo poder. Apenas nas universidades está havendo uma certa reação, e isso é otimista. Mas, fora isso, vejo o que vocês veem aqui: resignação. Os ativos, detidos por 358 bilionários no mundo, excederam as rendas agregadas de países com 45% da população do mundo, exacerbando a divisão ricos e pobres da forma mais grotesca imaginável. Os norte-americanos reclamam da pornografia, mas para mim isso é uma grande pornografia. Eu me deprimo muito quando olho para esses números, porque fico pensando que esses ricos odeiam os pobres. Essa burguesia não suporta nem a visão desses pobres e se irrita quando os vê. Eles não enxergam a própria responsabilidade e não se sentem responsáveis pela pobreza que eles estão gerando.
EC – Nesse caso, o que os educadores devem fazer? Qual é o melhor caminho para abreviar um pouco esse fosso?
McLaren – Eu não posso estar no lugar do outro, mas posso vê-lo dentro de mim e também ver-me nele. Mas eu nunca presumiria falar pelo outro, que é perfeitamente capaz de fazê-lo por si mesmo. Eu só posso tentar criar condições para que os outros falem com suas próprias vozes, que não necessitam ser filtradas por mim. Mas se eles falarem por suas próprias vozes não há garantia de que sejam ouvidas. Estou tentando é educar os ouvidos da classe dominante branca para que saiba escutar. Não estou tentando educar os olhos e os ouvidos dos oprimidos, por que estes só podem educar a mim. Não tenho como falar por eles, mas posso falar com eles. Isso é muito importante: falar em solidariedade com o oprimido e não falar por ele.
EC – Na prática, o que o senhor recomenda aos educadores a partir da teoria do multiculturalismo revolucionário?
McLaren – Há várias coisas, mas em primeiro lugar eles deveriam relacionar os processos de grupo que ocorrem dentro da sua sala de aula com o processo capitalista. Precisam desenvolver uma práxis dialética que permita fazer uma relação entre a vida cotidiana e esses processos de globalização. Também devem ser capazes de auxiliar os alunos a ver essa dialética e tornar-se pesquisadores desse cotidiano. Assim, eles podem desenvolver um senso de responsabilidade pelos seus desejos, sonhos e ações. Mas a menos que eles entendam como os sonhos e desejos são produzidos – por meio da percepção, racionalidade, emoção – é muito difícil tomar a ação política. Precisam usar as experiências de vida de seus alunos e da comunidade como base do currículo. E o maior desafio não se dá entre os estudantes, mas entre os pais. Ouvi muitos dizerem que não queriam saber desse papo de revolução. Querem que eu simplesmente ajude seus filhos a progredir, conquistar. É claro que temos de ajudá-los a ser bem-sucedidos, enquanto por outro lado os capacitamos a estar dispostos a mudar. Eu seria extremamente hipócrita se dissesse que não quero meus alunos bem-sucedidos. Mas a consciência é imprescindível para a prática revolucionária, embora ela (a consciência) não garanta nenhum resultado de mudança. E tampouco de sucesso.