GERAL

Ilusão da cidadania

Publicado em 24 de novembro de 1999

Numa reportagem sobre a Suécia, na década de 70, um médico local comentava alguns aspectos negativos daquele país, como álcool, tédio e suicídio, mas fazia uma ressalva: “Filho de pescadores, só aqui eu conseguiria ingressar na principal universidade e me formar em medicina sem pagar nada”. Este relato introdutório é a melhor maneira de tratar a cidadania – com exemplos, e não conceitos; porque se há lugar onde tal palavra nunca fez sentido, ou significa muito pouco, é nas terras devastadas abaixo do equador.

A cidadania que conhecemos é puramente formal, sem correspondência na realidade, pois três quartos da população se acha excluída do exercício efetivo dos direitos civis e políticos garantidos pela Constituição. Não é à toa que o jornalista Paulo Francis, numa de suas típicas boutades, tenha afirmado que os negros americanos, por comparação, gozavam de mais direitos que a maioria do povo brasileiro. Por quê? Porque jamais houve democracia verdadeira – econômica – no Brasil, apenas essa coisa de fachada, casuística, hipócrita e mentirosa.

A cidadania real exige um sujeito ativo, participante, reivindicatório, pronto a interpelar o poder e pleitear Justiça, quando necessário, fato que grande parte das pessoas desconhece absolutamente. A desigualdade é o nosso brazão, a nossa nobiliarquia – a nona ou décima economia do planeta tem a pior distribuição de renda; daí que metade dos habitantes subsistam aquém da linha de pobreza, e outra parcela esteja bem próxima a isso.

Em Pindorama, a cidadania nasce da passividade. No máximo, você será arrebanhado de vez em quando para eleger representantes municipais, estaduais ou federais. Depois, voltas para casa, aguardando que os escolhidos façam o “seu governo”. Se o eleito fracassa, o que não é raro, tem-se que suportá-lo até o fim do mandato, numa relação insuperável de sadomasoquismo. Exemplo perfeito vem do governo federal. Após cumprir um primeiro mandato apoteótico, escorado na estabilidade da moeda, e deixar em banho-maria graves problemas nacionais para pressionar pela emenda da reeleição, o Segundo Reinado, ao desabar a paridade artificial do câmbio, e tudo que lhe dava sustentação, está sendo penoso, terrível e opressivo para quase todos os brasileiros. O país se transformou num laboratório da experiência neoliberal, esse fascismo pós-moderno em que a barbárie ilustrada substitui o humanismo antiquado. Basta examinar alguns slogans e frasezinhas com que habitualmente nos presenteiam Sua Excelência, o excelso senhor presidente da República, e sua (vá lá, para usar belo vocábulo da velha esquerda) camarilha.

No primeiro mandato, momento em que se conseguiu derrubar a inflação e a moeda se estabilizou a um custo extremamente recessivo, com desemprego em massa e quebra gene-Cidadania ralizada de empresas, Sua Excelência deitou cátedra: “São as dores da modernização”; um de seus ministros, ao comentar sentença desfavorável do Supremo Tribunal Federal, disse que “os juízes não pensam no bem do Brasil”; outro, Malan, formulou uma declaração estarrecedora, transcrita por Frei Beto em artigo na Folha de S. Paulo: “O social é o último objetivo do governo”. Agora mesmo, Sua Excelência ao perder judicialmente a contribuição previdenciária dos aposentados, nos dá este aviso assustador – ele “terá que cortar na carne e diminuir os programas orçamentários (quebrar ossos seria melhor, porque a carne já está pouca)”.

Quando os recalcitrantes usam queixar-se, eles fuzilam: “virem-se!”, que “cada um procure se adaptar ao progresso tecnológico do mundo moderno”. Quão cândido é o neoliberal. Pragmático, relativista, sempre à beira de um ataque de cinismo. Vejam o funcionamento da coisa: depois da liminar impedindo a taxação dos aposentados, Sua Excelência deve propor uma emenda constitucional que permitirá cobrar aquela contribuição. Conta com o apoio dos partidos aliados que ajudaram a derrotar essa mesma pretensão em 1998. Atentem na parlapatice do deputado Aécio Neves, do PSDB, um dos que votaram contra no ano passado (e entendam porque amamos Diógenes de Sinope, único cínico autêntico), em 1998: “Não queremos a contribuição. Dizemos isso de forma extremamente cristalina e não de forma mascarada”; agora, na véspera de provável emenda: “Não tenho que justificar nada. 98 é 98, 99 é 99, 2000 é 2000. No acordo assinado não está escrito ad aeternum e até que a morte os separe”. É apenas um dos que mudaram o voto. Compreende-se, eles têm o cabresto no pescoço e farão o que Zeus deseja. Depois de satanizar os servidores públicos, uma categoria que hoj se envergonha de si mesma e da nacionalidade, Sua Excelência, o Grande Irmão, decidiu punir os funcionários inativos, os quais foram desativados, não produzem e teimam em continuar vivos, numa espécie de morte civil, atrapalhando os planos do governo e a prestação de contas ao FMI. É um ato prepotente e covarde contra seres que já não possuem nenhuma defesa.

O Brasil parece vasto campo de concentração, ponde o povo é cobaia de um projeto político-econômico homicida que está a arrancarlhe a pele e as unhas, devagarinho, dessangrando- o até acabar por moê-lo completamente. De modo geral, o povo brasileiro se erncontra na condição de rebanho bovino, gado sendo conduzido sem resistência ao matadouro. Portanto, a cidadania – liberdade, igualdade, fraternidade – ainda é a utopia do terceiro milênio.

*dois Santos dos Santos é poeta, autor de Sobre Corpos e Ganas (1995)

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