Houve de tudo neste século: guerras mundiais e assassinas, revoltas, muros destruídos, explosão populacional. Mas nenhuma revolução foi tão silenciosa e moralmente justa como a liberação da mulher, que destruir os costumes vitorianos em voga nos anos 1900
A história reservou para o século 20 uma infinita multiplicação de possibilidades. Foram cem anos intensos: duas guerras mundiais, ascensão e queda do socialismo, o estupendo avanço tecnológico e os grandes fenômenos de massa. E a ameaça sombria da bomba atômica, que deu à vida uma incômoda sensação de brevidade. Tudo foi hiper desenvolvido – até a capacidade de destruir o planeta dezenas de vezes. Os historiadores, parece, ainda não conseguiram deglutir este espaço de tempo onde a humanidade viveu situações extremas. O século 20, por tudo isso, foi superlativo.
Há tentativas de entender o que passou à luz de uma erudição que impressiona pela clareza. Eric Hobsbawn, por exemplo. Um dos maiores historiadores contemporâneos escreveu o clássico A Era dos Extremos, onde tenta entender o que chama de “O Breve Século 20”. Hobsbawn constata a multiplicação da capacidade de destruição do planeta e escreve: “Uma estimativa recente das ‘megamortesí do século menciona 187 milhões de pessoas”. Para ele, o século foi tensionado sempre por uma ameaça. “Ele foi marcado pela guerra. Viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões calavam e as bombas não explodiam”.
Chegamos então ao último ano, aos últimos dias do calendário que anuncia um número: ano 2000. Mas é bom lembrar que este número é apenas um registro na linha do tempo. Há um número superlativo também por trás disso uma população de 6 bilhões de habitantes. Pelos cálculos do geógrafo Igor Moreira, 2,5 bilhões deles vivendo na mais absoluta miséria, embora tenha crescido a capacidade de produção de alimentos, bens e serviços. O século 20, como nenhum outro, levou ao extremo também suas contradições.
O historiador Luiz Roberto Lopes faz uma rápida visita aos acontecimentos deste século no livro História do Século 20. Ficou uma impressão: “Parece que se encontraram todos os séculos passados e futuros. Este foi o único século em que se viveu todas as experiências possíveis, desde as mais belas aspirações de felicidade às mais cruéis formas de barbárie”.
Tudo isso, porém, não significou um avanço na direção de um projeto de sociedade mais solidária. Pelo contrário. “O que há de curioso é que este é o primeiro final de século reacionário nos últimos 300 anos”, diz Lopes. E fustiga a memória histórica. O século 17 terminou sob o impacto da Revolução Gloriosa na Inglaterra, “traduzindo expectativa de liberdade e produzindo pensadores como John Locke e os iluministas”. No final do século 18, a Revolução Francesa e o fim da nobreza. O Século 19 acaba sob a Comuna de Paris e a esperança da Revolução Socialista, que vai se consumar em 1917, na extinta União Soviética. Lopez é cético com o final do século 20. Considera o impregnado por um reacionarismo perfumado pela sofisticação tecnológica, uma barbárie disfarçada de shopping center.
Sopram os ares do fim do século e, com eles, dois sentimentos antagônicos. Há a pirotecnia tecnológica e o ufanismo da globalização, esse fenômeno que torna o mundo uma grande aldeia interligada por redes de computadores e pela rapidez das comunicações. Uma aldeia governada por um nome impessoal, sem rosto e identidade: o mercado. Por outro lado, o pessimismo de quem viu grandes causas – como o socialismo – ruírem melancolicamente, especialmente na ex-União Soviética, um país que antes de 1917 recém saía do mercantilismo e virou, em poucas décadas, uma superpotência.
Foi a ressaca. Hobsbawn cita o poeta T.S. Eliot para traduzir este final de século, onde até mesmo chegou a anunciar-se o fim do mundo. Eliot registra: “É assim que o mundo acaba – não com uma explosão, mas com uma lamúria”. Hobsbawn conclui: “O breve século 20 se acabou com os dois”. Poder-se-ia dizer que houve, primeiro, a ameaça de explosão. A primeira guerra mundial acontece no início do século, em 1914. Três anos depois dela, a União Soviética faz a primeira revolução socialista da história. A segunda guerra mundial, deflagrada a partir de 1939, vai evidenciar ainda mais a bipolarização do mundo entre União Soviética e Estados Unidos. E criar a chamada “guerra fria”. Ou seja, o temor da guerra vai regular as relações internacionais dali para a frente. Pelo menos até 1989.
Havia outro temor ainda: o medo do comunismo. O pós-guerra vai trazer um ideal de prosperidade aos países desenvolvidos nos anos 50, os “anos dourados”. Outras partes do mundo viverão e multiplicarão o sonho da revolução socialista. E até hoje a revolução espanhola de 1936 comove mais pelo exemplo de despreend i mento de uma geração que acreditou que poderia mudar o mundo: os milhares de operários que, filiados às brigadas internacionais, abandonavam tudo para combater por uma causa num país estranho. É difícil, hoje, imaginar tamanha generosidade.
Caiu o socialismo na União Soviética e, há uma década, o muro de Berlim foi derrubado. Anunciou- se um novo triunfo: o triunfo do indivíduo, ou a vitória do capitalismo. O liberalismo acrescentou o prefixo “neo” em seu catecismo, onde o mercado “livre” vai regular a vida dos cidadãos. O mundo de novo virado aldeia. A parte que cabe ao terceiro mundo, essa fatia à margem do mundo desenvolvido, reservou ares de tragédia – a fome no continente africano, a recessão e o desemprego nos países da América do Sul. Guerras étnicas na Iugoslávia esfacelada e em partes do Oriente Médio dão sinais de barbárie. No ocidente, o socialismo morto, mas o capitalismo também com sinais de cansaço. É a lamúria da qual fala Eliot.
O que se pode dizer, com a crise do socialismo, é que o pouco que restava de dignidade nas relações de trabalho se esfacelou, no entender de Luiz Roberto Lopez. Mas não é preciso ver tudo também sob uma ótica sombria. Uma conquista secular marca este fim de século no ocidente: o novo papel da mulher, já livre da moral vitoriana que impunha a virgindade, o cuidado da casa e dos filhos. A mulher conquistou a liberdade que há milênios não tinha. Há vários tipos de revolução mas, no caso da mulher, parece que a mais silenciosa revolução deste século foi a mais triunfante de todas. E assim, o século excessivamente movimentado no panorama da história pode ter terminado ainda preso aos velhos dilemas. “Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar”, escreve Hobsbawn. E conclui: “E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa por uma mudança da sociedade, é a escuridão”.