No reino da subjetividade total
O filósofo francês Gilles Lipovetsky adora falar sobre duas coisas: moda e arte. Quando o assunto é justamente esse então, a transitoriedade crescente das manifestações artísticas, é difícil fazê-lo parar. Gilles esteve em Porto Alegre no final de novembro e falou sobre arte contemporânea, pós-modernidade e comportamento. Para o Extra Classe, deu uma entrevista exclusiva em que constata o paradoxo do mundo moderno. O hipermaterialismo, diz ele, acabou realçando em nós uma crescente exigência espiritual e ética. A seguir, os principais trechos da entrevista do filósofo
Extra Classe – É possível dizer que, neste fim de século, a humanidade trocou, mesmo que inconscientemente, a arte pela moda?
Gilles Lipovetsky – Eu não colocaria dessa forma. A arte vai continuar, nunca houve tantos artistas. Na minha opinião, o número de exposições e de galerias vai aumentar e se desenvolver em função da ideia, cada vez mais presente, do individualismo. Os indivíduos querem se exprimir, se expressar. Alguns através da escrita, outros pelos sons, pelas cores, mas em uma sociedade baseada e fundada sobre a individualidade. Eu acho que haverá cada vez mais consumo artístico e cada vez mais pessoas que vão justamente engajar-se na criatividade, ou seja, na produção artística. E com a consciência, inclusive, que eles não estão fazendo moda, porque isso não está ligado à indústria, a um mercado bem definido.
EC – Essa necessidade de expressão não é própria da moda?
Lipovetsky – Não porque o objetivo da arte é justamente o de persistir, de durar. Apenas o que eu quis dizer é que, na realidade, há uma perda de substância daquilo que a arte implica e faz com ela se torne um análogo da moda, ou seja, um campo que também perde sua profundidade e que se torna, de certa forma, frívolo. Justamente porque não coloca mais nada em questão. O que está em causa, atualmente, é uma exposição. Hoje em dia, quando se pensa que mexendo com os genes vai ser possível aumentar a expectativa de vida em 30 anos ou que vamos clonar mamíferos, o debate que isso origina é muitíssimo mais forte, maior que essa expectativa. A obra de arte é um prazer, mas um prazer que permanece no campo do efêmero, não é moda mas funciona como moda. É algo que parece frívolo comparando-se com tudo que é posto em questão pelo campo técnico-científico.
EC – Cada vez mais há a dificuldade econômica e por isso as pessoas procuram recompensas momentâneas. Essa busca pelo descartável não seria a busca da sensação imediata, sem que seja necessário se importar com a transcendência e a temporalidade?
Lipovetsky – Eu acho que é preciso fazer uma diferença. Creio que não existe apenas a paixão pelo descartável nesta sociedade, esse aumento do descartável cria justamente a necessidade do durável, cria o mito da duração, que escapava à ordem do consumível. Acho que nós não devemos caricaturar o nosso mundo. Ele está baseado na comunicação, na publicidade, mas os indivíduos não encontram aí a satisfação, o pleno sentido da sua existência. As pessoas se queixam muito menos da falta de um objeto de consumo do que de relações com o seu marido ou com a sua mulher. Os problemas da comunicação interpessoal são muito mais dramáticos do que não se poder mudar de carro, fazer uma viagem de férias.
EC – Isso tudo pode ter relação com o excesso de manifestações místicas, esotéricas, no mundo das artes?
Lipovetsky – De certa forma, sim. Existe no mundo todo uma explosão de demanda espiritual porque os indivíduos estão procurando coisas, mas mesmo esse espiritual está extremamente ligado à lógica do consumível, ou seja, é o new age, as pessoas misturam crenças, tomadas umas no oriente, outras no ocidente, quer dizer, as pessoas escolhem objetalmente. Eu não penso que o mundo em que nós vivemos nos empurra para um materialismo homogêneo, unidimensional. À medida em que este império do consumo se desenvolver, a busca de si, do “quem sou eu”, de como viver com os outros, vai tornar-se central. O mundo contemporâneo é paradoxal. O hipermaterialismo relança as exigências espirituais, as exigências éticas, as de comunicação com os outros e talvez também uma exigência de qualidade nos objetos, entre os quais a arte.
EC – E a arte contemporânea, não estaria tentando virar o ser humano ao avesso quando tenta chocar, pasmar pela dor, pelo feio?
Lipovetsky – Eu acho que a arte contemporânea introduz uma dimensão de enigma. Simplesmente quando se entra em uma exposição, na maioria das vezes, as pessoas perguntam: mas o que é isso, o que ele quis dizer? Como se a arte, que se dessacralizou, permanecesse ligada às suas origens religiosas, como se houvesse a possibilidade de reinstituir o enigma. Porque na arte contemporânea você pode encontrar tudo, o que é próprio dela. Não há mais escolas, todas coabitam mas, por outro lado, estamos no reino da subjetividade total.