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Cabral era um democrata

Entrevista / Publicado em 22 de março de 2000

Responsável pela primeira biografia do descobridor do Brasil em 500 anos de história, o jornalista Walter Galvani critica a historiografia oficial do país, diz que fez uma grande reportagem sobre o descobrimento e instiga os profissionais da mídia a serem mais contestadores. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu ao Extra Classe

Extra Classe – Há uma enxurrada de obras sobre os 500 anos do descobrimento. Por que uma biografia sobre Pedro Álvarez Cabral?

Walter Galvani – Em primeiro lugar, o tema 500 Anos de Brasil serviu apenas de gatilho para detonar um projeto que vinha desenvolvendo com razões pouco objetivas há muito tempo. É uma ligação que nasceu do romance que estou escrevendo, interrompido para que Nau Capitânea fosse escrito. Por que a relação? Porque o personagem principal do meu romance seria um descendente de Pedro Álvarez Cabral. A história se desenrola em Colônia, cidade portuguesa fundada na cara de Buenos Aires em 1640. Estou trabalhando nesse texto há sete anos.

EC – Nesse meio tempo o senhor escreveu outros dois livros.

WG – Exatamente. Escrevi um livro sobre o Correio do Povo (Um Século de Poder – Os Bastidores da Caldas Júnior), aproveitando o centenário do jornal em 1995. Depois, fui cobrado por colegas para escrever alguma coisa sobre a Folha da Tarde, com o qual tive um envolvimento emocional e histórico muito grande (Olha a Folha!). Tudo entremeado pelo romance. Foi quando minha mulher perguntou por que eu não escrevia diretamente sobre os descobridores, ao invés de contar a história de um suposto tetraneto de Cabral. Assim fomos parar em Portugal.

EC – Houve dificuldade em reconstituir a história de um desterrado como Pedro Álvarez Cabral?

WG – Na verdade, eu já havia pesquisado todo o material editado disponível sobre o assunto no Brasil e em Portugal, mas ainda não havia chegado ao enfoque que teria o livro. Quando fui para Portugal, tinha a expectativa de sentir o ambiente que possibilitou a formação das condições básicas daquelas expedições. Tinha a expectativa de ir às fontes primárias, aos documentos. Foi então que me dei conta que estava construindo uma grande reportagem sobre o assunto. No fundo, eu estava querendo mesmo era produzir uma reportagem dentro dos critérios do jornalismo investigativo. Descobri então duas coisas fundamentais: a primeira, que não existia em Portugal nada sobre o Cabral em si, assim como no Brasil também não. Apesar de ele ser o nome mais conhecido e popular da nossa história. Por que ninguém sabe nada? Porque ele, ao cometer o absurdo de dizer não a um soberano absolutista, foi posto à margem dos acontecimentos e esquecido pela história oficial portuguesa e, conseqüentemente, pela história oficial brasileira. Aí vem a segunda descoberta: de certa forma, encontramos nisso uma estreita identidade de Cabral com o povo brasileiro, que também se sente preterido, injustiçado, rejeitado. Trabalhei em cima da redescoberta de um dos pais fundadores da idéia do Brasil como país, como uma forma de resgatar um pouco da nossa honra. Tanto que é a primeira biografia de Cabral em 500 anos de história.

Cabral era um democrata

EC – Como foi dar voz a Cabral, um personagem histórico que está mais próximo do mito e do herói do que do homem comum?

WG – Narrar alguns trechos em primeira pessoa foi resultado de uma identificação com o personagem. Quando se escreve uma biografia, temos duas atitudes a tomar: ou você se apaixona e se identifica com o personagem, ou você o odeia. E aí não faz a biografia. A verdade é que fui lentamente me identificando com Cabral, até formar essa convicção de que ele realmente foi injustiçado historicamente e que havia sido jogado ao ostracismo por ter se negado a obedecer a uma ordem do rei (D. Manoel I). Em suma, por ter se mostrado independente. Mas o fato de estar, em alguns trechos, narrado em primeira pessoa não dá ao livro o caráter de uma criação livre do que teria dito ou pensado Cabral. Não há fato inventado: todos estão baseados rigorosamente nos levantamentos documentais.

EC – Como ele era como pessoa? Cabral tinha noção do que havia representado sua trajetória de navegador?

WG – Na parte física, era um sujeito muito alto e cuja família fora apelidada de “os gigantes da beira”. Tinha as pernas naturalmente arqueadas porque andava muito a cavalo. Era magro. E, como todos naquela época, tinha os cabelos longos. Isso era o Cabral. Todos os relatos da época indicam um homem cordato e democrata, que se caracterizava por tomar decisões a partir de consultas gerais. Ele chegou ao ponto de reunir os capitães em seu navio, por ocasião do sumiço da caravela de Vasco de Ataíde no início da expedição, para discutir o que fazer. Isso era absolutamente incomum na época. Em outros momentos decisivos da viagem, como no bombardeio de Calicute e na chegada ao Brasil, em todos os momentos pontuais e culminantes, ele consultou alguma opinião alheia. Isso caracteriza um democrata que vivia paradoxalmente numa corte absolutista. Quando chegou o momento de comandar outra frota e Cabral descobriu que se tratava de um negócio da família de Vasco da Gama, e que metade da frota escaparia a seu comando, ele teve a coragem de dizer ao rei que não aceitaria uma diminuição de posto e recusou o comando. Isso foi fatal para ele. Cabral agiu mais com honestidade e correção do que com habilidade política, o que era outra de suas características.

EC – Ele tinha consciência do que estava fazendo? Ou seja, a lenda da casualidade da descoberta ainda se sustenta?

WG – Não há nenhum documento que afirme a intenção de Portugal em chegar ao Brasil. Mas as indicações apontam que isso é verdadeiro: na própria frota de Cabral viajava Duarte Pacheco Pereira, que teria estado no Brasil em 1498, como ele mesmo revelou no texto que publicou cinco anos depois (1503). Por que não se revelava isso na época? Porque Portugal não tinha estabelecido ainda um programa de ocupação dessas terras. O país tinha só um milhão de habitantes. Não tinha gente qualificada para mandar ao novo mundo. Naturalmente não era conveniente divulgar fatos que despertassem a cobiça de espanhóis, holandeses e ingleses. Vasco da Gama, na viagem que empreendeu a partir de 1497 e que estabeleceu o caminho para as Índias, atravessou o oceano e esteve praticamente no Brasil. Ele parou a poucos quilômetros do Cabo de Santo Agostinho (Pernambuco) e isso está plenamente documentado no diário de viagem escrito pelo Álvaro Velho. Ele avistou todos os sinais de terra, fez medições, observou pássaros. Só não desembarcou porque não era sua missão. Por isso a viagem de Cabral se reveste de toda intencionalidade. A sua frota trazia os principais navegadores do reino de Portugal.

EC – A narração da descoberta tinha muito do ponto de vista de Pero Vaz de Caminha. Podemos considerar a Carta como uma primeira interpretação de nossa história feita sob o ponto de vista do reino de Portugal?

WG – Sempre teremos uma subjetividade na intervenção de quem faz qualquer relato. E é bom lembrar que Pero Vaz de Caminha era um cidadão importantíssimo na cidade do Porto, era responsável pelo balanço da moeda, era o escrivão oficial da cidade. É óbvio que estava pautado pelo que representava no seu reino, pelo país do qual era originário, pela cultura da navegação, pelo papel de Portugal no contexto das nações européias emergentes. Ele estava afinadíssimo com o discurso de D. João II e D. Manoel I. O objetivo era descobrir a existência de metal, qualquer que fosse, nas novas terras. Era o lastro fundamental das economias da época. É certo, porém, que a ocupação não teve características militares ou belicosas. Não era esse o perfil de Portugal, um país pequeno e com pouca população. Tanto é que eles nunca se meteram em guerras longas. Na verdade, eles descobriram maneiras mais eficazes de obter resultado na conquista de outros povos. Cabral trouxe escritas instruções de jamais hostilizar as populações nos locais aonde ele chegasse e jamais fazer reféns. Os portugueses descobriram, muito antes dos americanos, que a melhor maneira de dominar um povo era através do comércio. Eles se especializaram nisso.

EC – Como se construiu a história de um país que já foi descoberto a partir de uma mentira, no caso a da casualidade?

WG – Tudo que Portugal nos ensinou como história verdadeira não foi, para usar um termo jornalístico, checado convenientemente. Nossa história está cheia de lacunas, no episódio da independência, da abolição da escravatura. Enfim, escrevemos nossa história à luz da história oficial de Portugal.

EC – Estamos por (re)escrever a nossa história à luz do que faria Cabral? Com independência intelectual?

WG – A partir de uma visão que nos mostre o que, efetivamente, aconteceu. Por que aconteceu. Quem eram os personagens. Quais eram os projetos. Por isso me agarrei à figura de Pedro Álvarez Cabral, porque a partir do seu ostracismo ele passou a ser um contestador. Por que foi posto de lado? Até que ponto feriu os interesses nacionais portugueses? A partir disso, podemos começar a abrir uma avenida nova em termos históricos para o Brasil. O que representávamos dentro do projeto português, o que era o projeto de expansão, por que Portugal chegara a ele, por que atrasou durante anos o desenvolvimento do Brasil, por que nos manteve como colônia, por que depois promoveu indiretamente nossa independência pelas mãos de um príncipe português.

EC – A imprensa tem um papel nessa reescrita?

WG – Em primeiro lugar, soltar foguetes pelos 500 anos de Brasil pode servir a interesses políticos específicos, mas não a essa reconstrução histórica. Devemos aproveitar a oportunidade para pegar uma faca e abrir pelo meio o corpo do Brasil, colocar as vísceras à mostra. Na minha opinião, a imprensa deve trabalhar com a perspectiva de contar de novo essa história assim como eu fiz com a biografia de Cabral. Buscando ao máximo possível as fontes primárias e sendo puxada pelas perguntas, ao invés de obedecer às colocações alheias. Fazendo uma ligação com o trabalho da imprensa, acho que estamos pasteurizados pela falta de ímpeto. E limitados pelos interesses econômicos, pelos apoios comerciais. Estamos, na imensa maioria, atrelados ao carro oficial.

EC – Estamos em plena ditadura do press release, da pauta?

WG – Acho que sim, apesar de a pauta ser um bom instrumento de organização do trabalho. Mas poderíamos voltar ao saudável tempo em que cada jornalista era um especialista em determinada área. E trazia uma contribuição absolutamente original do que sabia do seu setor de atividade, muito antes dos comunicados oficiais. A verdade é que, hoje, estamos correndo atrás. A mídia não pergunta mais o essencial. Vive comendo na mão das autoridades.

EC – O senhor tem esperança de que a mídia ocupe seu papel no processo político?

WG – Isso passa pela cabeça das pessoas, pela formação. Por isso a universidade tem de produzir profissionais um pouco mais ousados, mais sérios, mais dedicados. É preciso contestar todas as verdades estabelecidas.

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