GERAL

Entrevista

Publicado em 21 de maio de 2000


entre2O curador geral da exposição “Brasil+500, Mostra do Redescobrimento”, Nelson Aguilar, é um daqueles obstinados que acredita na capacidade desse evento se transformar num marco na história da arte brasileira, não só por reunir de forma inédita um acervo que engloba desde a pré-história do país até a pintura contemporânea dos anos 90, mas também por provar que os empresários são parceiros indispensáveis para concretizar iniciativas de fôlego como essa. Aguilar, que é também curador dos módulos “Arte Moderna” e “Arte Contemporânea”, prefere entender a exposição como um todo, e avisa: são necessárias pelo menos três visitas para compreender tudo o que está exposto. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Extra Classe

Extra Classe: Qual é o sentido pedagógico da Mostra do Redescobrimento?

Nelson Aguilar – O sentido pedagógico é quase um marco zero, porque é a primeira vez em que um patrimônio artístico brasileiro está sendo mostrado na sua integralidade. Nós estamos nos organizando para criar um serviço de arte e educação capaz de dar conta desse desafio. Nunca foram mostradas com o mesmo cuidado as artes indígenas, a arte afro-brasileira, a arte barroca, a arqueologia, o Brasil visto pelos estrangeiros, as imagens do inconsciente, a arte popular, a arte brasileira com uma vertente antropológica. Existem vários campos únicos aqui. É uma experiência primeira, com a qual nós temos de lidar sem que algo semelhante tenha sido feito antes. Eu acho isso uma espécie de carência, até um defeito, mais do que uma virtude da exposição. As instituições brasileiras já deveriam ter feito isso, de uma maneira ou de outra, e nós estamos fazendo pela primeira vez. Dessa forma, eu acredito que o alvo pedagógico é também inédito – todos nós estamos experimentando pela primeira vez. Então, a sensação é que nós estamos andando na Lua.

EC: Nesse experimentar pela primeira vez, como foi a missão de conseguir reunir tantas obras de forma inédita?

NA – Foi um espanto, porque tudo no papel funciona de uma certa maneira mas, quando começam a chegar as obras, elas têm um comportamento próprio. É a resistência do material contra a idéia. Quando elas vieram tomando conta do parque, tem um efeito de três bienais internacionais acontecendo concomitantemente em um mesmo espaço. A sensação primeira é de perplexidade. Essa exposição só vai se sedimentar dentro de, no mínimo, um mês e meio, porque o impacto é tão grande e tão inesperado, existem tantos efeitos em dominó. Por exemplo: as artes indígenas já fazem uma nova interpretação da arte contemporânea, a arte contemporânea considera de uma nova maneira a arte popular, a arte popular tem ligação com a arte afro-brasileira. Isso cria um jogo de reenvios durante toda a mostra. Eu me sinto como o Guga no meio de um campeonato, ou até mais – como uma bola de tênis durante uma partida, que não sabe direito para onde vai. Também nós estamos nos recuperando desse espanto, e eu gostaria de transformar o espanto em atitude crítica e em história para ter uma visão geral, mas eu ainda não consegui completar esse processo.

EC: Pela extensão da mostra ser tão expressiva, o efeito pode ser de alguma maneira prejudicial à compreensão em sua plenitude?

Nelson Aguillar, curador-geral: vontade política

NA – Eu aconselho pelo menos três visitas, uma dedicada a cada prédio, e a cine-caverna pode ser acoplada ao módulo da arqueologia, porque é homóloga a ela. Uma boa visita, de cerca de três horas, dá conta do Pavilhão da Bienal, onde estão os módulos da arte barroca, da arte do século 19, da arte moderna, das imagens do inconsciente, da arte afro-brasileira e da arte contemporânea. E um passeio profundamente estético, onde fica a nossa “central de energia”, passa necessariamente pela oca. Vale a pena perder uma outra ocasião nesse roteiro, e visitar o cine-caverna depois, porque sempre é mais interessante deixar o meio virtual suceder o meio real. E, finalmente, dedicar um terceiro estágio para a Pinacoteca, onde estão os módulos de arte popular, negro de corpo e alma e a carta de Caminha. Esse é o périplo real de visita dessa exposição. Depois disso, qualquer pessoa vai conhecer profundamente a mostra.

EC: No Ibirapuera, os prédios foram preparados para receber a exposição. Nas outras capitais para onde irá a mostra posteriormente, já há essa estrutura estabelecida?

NA – Nós estamos estudando os locais, com a ajuda das Secretarias da Cultura de cada um desses estados que vão receber a exposição. Nós vamos trabalhar em regime de co-curadoria, para saber o que se deseja desse amplo painel. Para dar um exemplo: o Rio de Janeiro se interessa muito pelo século 19 porque foi a capital do país nesse período, e 80% da arte estava destinada a desaguar no Rio naquela época. Eu acredito que vai depender muito dos entendimentos e da vontade política de cada estado para saber qual a parte dessa exposição que vai viajar para as outras capitais.

EC: O mesmo critério será usado para as viagens internacionais da mostra? NA – Internacionalmente as coisas já estão definidas, e os curadores já sabem muito bem o que querem. A Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, quer o mundo que o português não fez – os smódulos de arqueologia e o do século 20. Na França, já está pautada uma exposição de arte contemporânea, pela qual eles têm um interesse muito grande, e também uma mostra patrimonial, que ligue as artes indígenas às artes afro-brasileiras e às artes populares. Para o Solomon Guggenheim Museum, nos Estados Unidos, serão levados exemplares das artes barroca, moderna e contemporânea, e para o Museu Del Barrio, também nos Estados Unidos, seguirá a arte contemporânea brasileira mais jovem, dos anos 90. Na Inglaterra, irá acontecer uma exposição de arqueologia amazônica e de arte popular. Nós vamos ocupar vários museus universitários de Cambridge e de Oxford, mas o carro chefe vai para o Museu Britânico. Isso pode também se desenvolver para a Suécia e para a Alemanha, que são dois países muito interessados em receber a exposição.

EC: Deixando de lado a carta de Pero Vaz de Caminha, o que o senhor destacaria se pudesse escolher algumas obras aqui presentes?

NA – É difícil dizer – é como pedir para o pai escolher o filho mais bonito. Eu espero o que se chama de “feed back”, uma crítica mais consolidada para que eu possa entender melhor a mostra. Existe um jornalista que teve uma idéia muito interessante: a exposição se situaria entre o manto tupinambá e o manto do Arthur Bispo do Rosário, que se apresentaria para ele como o juízo final. É uma idéia fascinante, porque engloba dois momentos altíssimos. As pinturas de Frans Post feitas no Brasil, que estão no módulo “Olhar Distante”, têm uma qualidade tão diversa daquelas feitas na Holanda … Em toda obra de Frans Post só existem sete quadros que pertencem à fase brasileira, o resto foi reconstrução, e isso qualquer um sente, não prevcisa ser um historiador de arte. Olha-se o quadro que foi feito em Pernambuco, olha-se o que foi feito na Holanda e é fácil descobrir que a obra holandesa é muito mais decorativa, preenchida, mobiliada. Outro momento alto da exposição está na arte brasileira do século 20, fascinante do ponto de vista orgânico, que vai desde o pré-modernismo até a artistas que participaram da Bienal do Mercosul. E eu destacaria também toda a arte indígena, que traz uma espécie de levitação, de desmaterialização, de pacificação. Ela tem um espaço harmônico que os próprios índios que trouxeram as peças dele para cá sentiram e ficaram entusiasmados. Não houve esse clima de reivindicação que ocorreu na Bahia – muito pelo contrário, eles ficaram muito felizes. Foi um momento alto da exposição nesse sentido, nós estávamos devendo e conseguimos fazer uma coisa muito elevada, à altura desse patrimônio.

EC: O senhor disse que há algo de triste na exposição, pelo fato de só agora o país ter conseguido reunir esse acervo por inteiro. Por que existe essa dificuldade tão grande?

NA – Eu acho que as instituições artísticas têm que ficar menos burocráticas e mais abertas, ou ter um mecenato, tornar o marketing cultural uma realidade dominante, Parece que as empresas começam a tomar consciência de que elas podem tomar para si a tutela da herança cultural, para manter a própria imagem. Alguma coisa aconteceu. As artes, quando ficam nas instituições públicas, sofrem de letargia, e continuam deitadas em berço esplêndido. As dificuldades estão em todas as capitais brasileiras, e nós precisaríamos de uma paciência enorme se fôssemos esperar que todas as iniciativas partissem do governo. Nós temos que mudar um pouco o esquema, ou mudar o governo. Agora nós fizemos justiça ao que temos, e a exposição está toda na Internet. As pessoas precisam dessa noção de cidadania, para exigir seus direitos. É como na educação: não basta só a escola pública, há a necessidade da ambiência cultural, para que o colégio possa funcionar em um nível médio interessante. O cidadão deve reivindicar o seu lugar na sociedade, porque a arte é o espelho certo da cidadania. A pessoa vai se sentir em uma comunidade que funciona. Isso tem muito mais importância do que o futebol e o carnaval, que trabalham com funções muito direcionadas a uma experiência de descarga e alívio de tensões. A arte é uma função desinteressada e lúdica, e traz a possibilidade de harmonizar todas esses impulsos juntos e colocar o homem no melhor de si mesmo.

EC: Até que ponto as leis de incentivo cultural foram importantes para a concretização da mostra?

NA – A arte precisa ser fomentada, e isso vem acontecendo de alguma maneira por meio dessas leis. Mas as empresas estão tendo consciência do papel cultural delas – por exemplo, 70% dos patrocinadores da exposição não usam a Lei Rouanet. Esse é um ganho muito grande para as mostras de arte, porque as empresas percebem que a imagem delas está em questão. A Mostra do Redescobrimento é um passo nesse sentido. A arte não vai ser a mesma depois desta exposição.

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