Fotos:René Cabrales
O doutor em economia e professor da Unicamp (Universidade de Campinas) Jorge Mattoso é desenvolvimentista de carteirinha. Até por isso critica, com indelicada veemência, a sangria de empregos promovida pelos dois últimos presidentes do Brasil, que não por coincidência são a mesma pessoa. Nos últimos dez anos, sob a égide do neo-liberalismo, o Brasil perdeu nada menos que 3 milhões de vagas no mercado formal de trabalho. Mattoso esteve em Porto Alegre para o lançamento de seu mais recente livro, O Brasil Desempregado, quando indicou os caminhos necessários para reverter o quadro de anemia do mercado de trabalho. Desenvolvimento é uma delas. Vontade, e visão, política, é outra. Para Mattoso, atravessar uma terceira década sem crescimento econômico e sem empregos significa colocar a democracia em risco
Extra Classe – A capa do seu livro mais recente, O Brasil Desempregado, traz a afirmação de que mais de 3 milhões de empregos foram destruídos nos anos 90. Que sistemática perversa permitiu que isso acontecesse?
Jorge Mattoso – O subtítulo foi idéia minha, para dar uma idéia precisa de que a realidade do mercado de trabalho não é vista pelo ótica do desempregado. Ela é vista como um conjunto de fatores que têm relação com a queima do emprego formal. Estes empregos desapareceram ao longo da década de 90 em termos absolutos, apesar do crescimento da população e do fato de ingressarem no mercado de trabalho 1,5 milhão de jovens por ano. Vejam bem, houve um ingresso de 15 milhões de pessoas no mercado de trabalho e 3,2 milhões de empregos foram extintos. E eu pergunto: onde foram parar estas 18 milhões de pessoas? Uma parte permanece desempregada e outra migra para o trabalho informal. Isso é de uma gravidade extraordinária.
EC – É possível recuperar esses empregos?
Mattoso – Claro que é, desde que se tenha um crescimento sustentável de 5% a 6% ao ano. Só que para se ter crescimento sustentável é necessário que se tenha taxas apropriadas de poupança. Em se falando de Brasil significa cerca de 22% a 25% do PIB, algo em torno dos R$ 200 bilhões. Atualmente o que ocorre é que estamos altamente dependentes do capital externo e elevando os juros. Assim não dá. Isso só aumenta a nossa vulnerabilidade ante à economia mundial.
EC – Explique a gênese da “arquitetura do caos”, citada em seu livro.
Mattoso – Na década de 80, a chamada década perdida, a estagnação econômica ocorreu basicamente por questões relacionadas à dívida externa, quando a política econômica dos governos buscava criar superávits comerciais por meio do favorecimento das exportações e redução do consumo interno. Mas na década de 90 os problemas são de outra natureza. Se formos observar todos os dados sobre mercado de trabalho e crescimento econômico, a década passada foi muito pior do que a década perdida. A política econômica foi criada a partir da fantasia de que os problemas enfrentados na década anterior se deviam ao fechamento da economia. Isso se deu no governo Collor e se estendeu pela gestão de Fernando Henrique. Com isso, decidiu-se abrir o país tanto comercial quanto financeiramente.
EC – Não houve um certo discurso pelo consumismo como solução para tudo?
Mattoso – Foi feito o discurso do consumismo e não o da produção. A grande fantasia é de que é possível construir uma nação a partir do consumidor, quando a verdade é que se constrói uma nação a partir de produtores. Somente produzindo gera-se renda para que, conseqüentemente, haja consumo. E o que se fez foi abrir a economia para podermos importar o que não produzíamos. Esta abertura foi feita de forma abrupta, sem nenhum tipo de proteção para a indústria brasileira, assim como a abertura financeira. A esses dois elementos se juntou a sobrevalorização do real e os juros elevados, que resultaram na paralisia da economia. O resultado foi a desestruturação do parque produtivo industrial e agrícola. Mesmo os momentos de crescimento, embora medíocres, de 95 a 97, não geraram empregos, pois este crescimento não era sustentado.
EC – Como Fernando Collor e Fernando Henrique vão entrar para história?
Mattoso – A década de 90 vai entrar para a história brasileira do século 20 como a de pior desempenho da economia e do mercado de trabalho. E quando se argumenta que este é um fenômeno é mundial, eu pergunto: os Estados Unidos estão em crise? A Europa cresce há três anos, com taxa de desemprego em queda. O Japão, apesar da crise das economias do sudeste asiático, tem menos de 5% de desemprego. O problema é que no Brasil se falou muita abobrinha sobre este tema.
EC – Que abobrinhas seriam essas?
Mattoso – Em primeiro lugar foi dito pelo próprio governo, durante anos, que não havia problema de desemprego. Depois foi dito que se tratava apenas de fenômenos regionais, de um estado ou outro e de forma localizada. Então, como não era um problema nacional, não se tratava de uma massificação do desemprego. Mais tarde veio o reconhecimento e as explicações. Uma delas era responsabilizar o próprio desempregado por sua situação, atribuindo-o a problemas de formação e escolaridade. Empurrou-se a discussão para a questão da empregabilidade. Pelo menos esta última obriga o governo a levantar a necessidade de elevar os níveis educacionais. O que se observa é que em todos estes casos o estado se exime de responsabilidade, enquanto deveria assumir a sua parte no processo.
EC – A quem interessa que exista um Brasil desempregado. Quem sai beneficiado com isso?
Mattoso – Certamente os menos de 5% da população que vivem do endividamento do estado e do pagamento da dívida pública interna e dos credores internacionais, que vivem às custas pagamento da dívida externa. Veja o estado de São Paulo, por exemplo, que compromete 14% do seu orçamento para o pagamento de juros. Só no ano passado o Brasil pagou quase R$ 100 bilhões em juros da dívida. Aí, quando se precisa de dinheiro para saúde, aposentadoria, educação, não tem porque estouram as contas públicas. É que esse dinheiro já está comprometido com o pagamento dos juros e da dívida.
EC – Até que ponto a redução da dívida pública por meio das privatizações é uma falácia?
Mattoso – As privatizações ocorreram sob a alegação de que serviriam para reduzir a dívida. E na prática as dívidas públicas interna e externa aumentaram, e muito, durante todo o processo de privatização. Nenhum outro país privatizou tanto quanto o Brasil, exceto a Inglaterra. E isso foi feito com uma rapidez e irresponsabilidade sem precedentes. Isso gerou também a desestruturação do estado e a redução da sua capacidade reguladora. Lembram da reforma administrativa do Collor?
EC – Qual o efeito mais direto da precarização das condições de trabalho?
Mattoso – A precarização é um conceito muito amplo e que incorpora uma gama de situações muito heterogênea. O que há de fato é uma deterioração das condições de trabalho e das relações de trabalho. Passa-se a não ter contratos de trabalho coletivos. Em muitos casos, não há contribuição para a previdência. Há redução da jornada de trabalho e o próprio trabalho é intermitente, assim como os salários. Este nível de precarização diminui a arrecadação do INSS e do FGTS. O curioso disso é que a questão da Previdência é sempre analisada pelo lado dos gastos e nunca pela diminuição da arrecadação gerada pelo desemprego e pela informalidade. Não podemos esquecer que o trabalho precário também representa uma ilegalidade e está de certa forma se institucionalizando no país.
EC – Como o atual e os próximos governos podem administrar a equação do avanço tecnológico e do desemprego?
Mattoso – Em primeiro lugar é um erro de raciocínio pensar que a tecnologia extingue empregos. Se fosse assim, os Estados Unidos deveriam ter o dobro de desemprego que o Brasil e isso não acontece. O que ocorre com a tecnologia é que ela muda a natureza e a qualidade do emprego, mas isso tem que ser visto de forma macroeconômica. Para que funções em extinção possam ser recicladas deve haver uma política de desenvolvimento que enxergue as coisas como um conjunto, e não de forma isolada. A tecnologia, ao mesmo tempo em que gera desemprego em uma empresa, acaba gerando emprego em outra da mesma cadeia.
EC – Há alguma luz no fim do túnel?
Mattoso – Bem, este governo não tem mostrado sensibilidade para resolver as questões que lhe são apresentadas no que se refere à cadeia produtiva e geração de empregos, porque isso implicaria necessariamente em alterar profundamente suas políticas. Portanto, não diria que há uma luz no fim do túnel. Mas pelo menos a sociedade começa a ver com um pouco mais de clareza o porquê de termos chegado à situação em que chegamos. Mas esta clareza ainda não se expressa na confiança de que ela pode gerar outra política. Ou seja, a sociedade ainda não diz um basta para isso. Então só posso dizer que não vejo essa luz. Vamos ter um crescimento pequeno em 2000? Sim, vamos. Mas ele não se sustentará. Sinto muito, mas essa é a verdade.
EC – O discurso de reconstrução da nação, retomando o crescimento econômico com emprego e distribuição de renda, não é um tanto utópico ante a realidade internacional?
Mattoso – Doce utopia, viu? Porque se o crescimento não for um objetivo nacional, e sem crescimento é muito difícil fazer distribuição de renda, é impossível gerar emprego, as condições da nação se deterioram cada vez mais. Então não é nem uma questão de ser ou não ser liberal, é de ser ou não anti-nacional. É óbvio que um projeto nacional implica em se ter uma perspectiva de crescimento para se sustentar. E o pior disso é que uma conotação desta natureza implica em estar disposto a colocar em risco a democracia. É muito difícil que o Brasil cruze outra década sustentando estas condições em que atravessou as décadas de 80e 90. Então, eu diria que estes liberais que dizem que crescimento não importa e que não podemos sustentar um projeto nacional estão dispostos a correr este risco. Diria também que, além de liberais, de anti-nacionais, eles são anti-democráticos. É muito difícil sustentar a democracia sem o crescimento das forças produtivas.
O livro O Brasil desempregado é uma edição da Fundação Perseu Abramo (telefone (11) 571.4299) e custa R$ 5. Também fazem parte da mesma coleção O Brasil privatizado, do jornalista Aloysio Biondi, e Reforma Política, de José Dirceu e Marcus Ianoni. Pedidos de reembolso postal pelo endereço editora@fpabramo.org.br