Mais populoso que muitas cidades gaúchas, Presídio Central de Porto Alegre revela uma estrutura de poder paralelo no qual os apenados ditam as regras e aplicam seus próprios métodos de Justiça
Um dos líderes rascunha o esquema das
prefeituras
Foto: René Cabrales
Uma cidade. Em linhas gerais, pode-se reduzir a essa palavra o modo de vida e organização dos mais de 2 mil apenados do Presídio Central de Porto Alegre. Para sobreviver à superlotação, os presos montaram uma estrutura política paralela ao poder das autoridades institucionais. Eles flertam com a ilegalidade ao determinar leis e castigos para quem descumprir as normas internas, estabelecidas por eles mesmos à revelia do que diz a lei. Os prefeitos, como em toda municipalidade, é quem mandam lá.
Os criminosos condenados têm sua própria hierarquia dentro do Presídio. Eles escolhem seus representantes para interlocução com as autoridades de direito e dividem o poder por área, onde cada uma das nove galerias de detenção tem prefeito, secretário, assessor jurídico e outros cargos adjacentes. As formas de conquistar uma dessas posições, sinônimo de bem-estar, privilégios e respeito, nem sempre são democráticas. Ainda vale a lei do mais forte.
As regras são explícitas e claras: ter batido em algum guarda, ter matado alguém para fazer cumprir a lei interna, possuir contatos fora da cadeia e, além disso, ter um discurso articulado, fazem um bom candidato. Outro detalhe: a maioria dos prefeitos do Presídio Central estão presos com base no artigo 157 do Código Penal, assalto a mão armada. A maioria deles faz parte de quadrilhas de roubo a bancos. Eles são considerados, pelos demais presos, como uma espécie de elite no mundo da carceragem. A escala hierárquica é a seguinte: cada prefeito, ou “plantão” na linguagem do crime, mantém dois auxiliares (espécie de vice-prefeitos) diretos, que têm, abaixo deles, quatro ajudantes (mestre-paneleiro ou cozinheiro, auxiliar jurídico, auxiliar de esportes e mestre-faxineiro) que, também, coordenam outros presos. A organização é rígida. E se desde 1995, quando a Brigada Militar passou a gerir o sistema, não ocorrem motins no Central, é devido à medição diária de forças entre a segurança do presídio e os representantes dos apenados.
“O maior desafio é manter as facções, que estão permanentemente em pé de guerra, em trégua”, admite o chefe da segurança do Presídio, capitão Alexandre Alberto da Rocha. Para a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), admitir o poder paralelo dos presos transformou-se em um caroço duro de engolir. De um lado, a Secretaria de Segurança Pública, a quem a Susepe está vinculada, almeja moralizar o sistema penitenciário. Mas, de outro, herda a estrutura viciada de uma cultura carcerária que há décadas mantém práticas pouco ortodoxas entre agentes penitenciários e apenados.
A cumplicidade entre policiais e bandidos e as irregularidades surgidas daí já foram motivo de escândalos e investigações sobre fugas que nunca deram em nada. Ainda há a agravante das represálias – aqui e acolá – promovidas por setores das polícias Civil e Militar, que divergem da política adotada pelo atual governo.
Desde 1995, a Brigada administra o Presídio Central, buscando uma forma alternativa de segurar o barril de pólvora representado pelo excedente de 300% no contingente de presos do “casarão”. Para isso, é obrigada a aceitar a negociação. “Estamos com um abacaxi nas mãos”, reconhece o capitão. O superintendente da Susepe, Airton Aloisio Michels, considera bom o trabalho desenvolvido pela Brigada, mas admite que a presença da força policial no Presídio é inconstitucional. Sendo assim, já está prevista para o final de 2001 a retomada da casa pelos novos agentes penitenciários, que ainda estão sendo formados. Mas a volta dos agentes representa motivo de temor para os presos, que encaram a mudança como uma ameaça à paz relativa do PCPA. Para Michels, não há motivo para preocupação, já que os novos agentes deverão assumir seus cargos dentro da “política de cumprimento da lei e respeito aos direitos humanos”. Até o final do ano, a Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) e a Penitenciária Estadual de Jacuí (PEJ), sairão das mãos da Brigada Militar e serão assumidos por agentes penitenciários.
Com a Brigada, a calma tem sido uma constante no PCPA. “Desde que chegamos aqui as coisas têm se mantido relativamente calmas devido às negociações com os presos”, diz o capitão Rocha. Segundo o relato dos detentos, no tempo dos agentes, as visitas eram desrespeitadas e os apenados sofriam torturas e extorsões com freqüência. Para o capitão, é complicado admitir a representatividade real dos prefeitos de galeria e seus auxiliares, mas, segundo ele, se não houver negociação “a coisa toda pode explodir de uma hora para outra”.
No total são três pavilhões em funcionamento e nove galerias no Presídio Central de Porto Alegre, para 2.049 presos. Isso corresponde a pelo menos 1.324 pessoas além da capacidade prevista da casa. As celas são superlotadas, o que obriga uma grande quantidade de homens a dormir nos corredores. Do total, apenas 535 presos conseguem trabalhar e, conseqüentemente, participar de algum programa de ressocialização. Os demais ficam espalhados pelas galerias de difícil acesso para os próprios policiais militares, que só conseguem entrar nelas quando os presidiários descem para o pátio.
Os Manos, os Brasas, os Abertos, os Duques e os Independentes são alguns nomes das facções que brigam pelo poder no Central. Algumas delas têm conexões com outras casas de detenção e até mesmo com as ruas, como o caso dos Manos, Abertos e Brasas, principais rivais que vivem em permanente provocação. Quando acontece algum confronto longe dos olhos da guarda, permanece a lei do silêncio. Ninguém viu ou ouviu nada e as vítimas de violência geralmente dizem ter caído da escada ou algo do gênero. É a lei.
A estrutura de funcionamento interno é organizada pelos próprios presos. Em cada galeria há o que eles mesmos chamam de uma prefeitura. O prefeito da galeria é quem negocia com a administração do Presídio, desde a compra de cobertores e colchões até o encaminhamento da papelada de presos que têm direito à progressão das penas. Em cada prefeitura há um secretário jurídico para orientar os outros presos.
A moeda de barganha é simples: manter a casa em ordem. “Nós mantemos as coisas calmas para que não aconteça nada nas galerias e a Brigada faz a sua parte de sustentar as condições mínimas para a gente ”, relata Carlos Kolling, 40 anos, cumprindo pena de 20 anos por assalto à mão armada. Carlos é o “plantão” responsável pela prefeitura dos Manos (facção ligada ao assaltante Dilonei Melara, cumprindo pena na PASC) e coordena cerca de 245 presos da 3ª galeria do Pavilhão B. “Se eu quisesse derrubar a Brigada eu já tinha derrubado. O que queremos é puxar a nossa pena e sair logo daqui”, acrescenta, sempre de forma desconfiada e temendo pela própria vida.
Os Manos são rivais de morte dos Abertos (facção dissidente), que controlam duas galerias. Dois dias depois da primeira visita da reportagem do Extra Classe ao Presídio Central, houve um tiroteio entre as facções em pleno Dia das Mães, quando dois presos saíram feridos. Os disparos foram contra a próprio Kolling, que estava saindo para o pátio. Naquela semana, a tensão entre as facções foi máxima. Nenhum líder se deslocava nos corredores sem estar acompanhado por guarda-costas, inclusive para irem até a sala da chefia de segurança.
Como resultado do conflito, a Brigada teve de fazer uma revista geral nas galerias e apreendeu seis revólveres de fabricação industrial, 20 trabucos (revólver de fabricação caseira), 80 estoques (arma de perfuração), 1,6 quilo de maconha, 60 gramas de cocaína, dois telefones celulares. Como esse material entra no Presídio? As possibilidades não são muitas. “Só pode entrar pelos visitantes, pelos advogados, pelos muros ou pela própria guarda”, admite o chefe da segurança. “A revista padrão não dá conta de procedimentos delicados, pois não podemos constranger as visitas”, justifica o capitão Rocha.
As 1ª e 2ª galerias do Pavilhão B, com 600 presos, são comandadas por Flávio Sávio dos Santos, 29 anos, conhecido na cadeia por Chacho e nas ruas como Sávio Louco, assaltante de bancos e carros-fortes. Apesar de os tiros da última briga terem partido das suas galerias, ele define sua função como a de um apaziguador. “A gente não deixa um se arriar no outro”, diz. “Se isso ocorre, a gente toma as providências”, conta. Quando perguntado sobre que tipo de providências seriam essas, ele se torna evasivo e pensa longamente antes de responder: “Se a regra não é respeitada, a gente manda o cara descer para outra galeria. Mas, se precisar, dá uns cascudos antes”, confessa, com um sorriso reticente nos lábios.
Brasa, ou Volmir Benini Pires, 34 anos, preso por assalto a banco, é certamente o prefeito mais influente das pequenas cidades do PCPA. Ele é o principal líder de quatro das galerias (2° e 3° do pavilhão B e 1° e 2° do pavilhão C), que reúnem cerca de 700 presos. Este status colocou-o na condição de homem mais amado e odiado dentro do Central. Ele próprio se considera uma espécie de Robin Hood. “Hoje sou um cara muito visado, tanto dentro como fora da prisão, mas não temo por minha vida porque confio nos meus amigos que estão lá fora. Quero mais é que meus inimigos me encontrem.”, declara de forma segura e ameaçadora. “Além do mais, não posso mais voltar atrás do ponto onde cheguei. Hoje temos uma situação bem melhor aqui do que tínhamos no tempo do Melara. Existe mais respeito. Mas só eu sei o preço de ter chegado até aqui e já sabia quando me meti nisso”, diz.
Brasa se veste bem (anda sempre com uma pulseira de ouro no pulso direito) e também é um sujeito bastante articulado para falar. Boa parte de sua influência sobre os demais presos é atribuída a essa capacidade. Mas a história que ele conta é um pouco diferente. Benini está do PCPA desde 1987, já cumpriu 13 anos da pena e, logo no início, já era um auxiliar, cargo conseguido depois de ter esmurrado um agente penitenciário que o havia advertido nos corredores. É um dos poucos líderes que viveu a época dos agentes penitenciários. “Sofríamos muito. Havia todo tipo de castigo. Às vezes os caras colocavam o neguinho num buraco e esqueciam lá dentro, quase sem comida por até um mês. Também apanhávamos. Não tínhamos nenhuma condição de higiene. Era realmente muito ruim ”, relata. Segundo ele, geralmete a própria comida tinha de ser comprada, já que a que recebiam normalmente vinha contaminada com creolina.
Com o tempo, seu poder e fama foi aumentando e ele próprio admite já ter “justiçado” (assassinado) presos que descumpriram a lei interna da cadeia. “A última vez foi em 1993, mas, graças a Deus, de lá para cá, nunca mais foi necessário chegar a esse ponto”, conta. Apesar disso, ele reconhece que, em casos extremos, ainda tem de usar de violência para fazer cumprir o que é determinado. “Aqui sou em quem manda. Se eu tomar uma decisão todo mundo acata, mesmo que eu esteja errado. É assim que funciona”, completa. Outra regra é que nestes casos se a lei do silêncio não for eficiente, algum outro preso assume a culpa para poupar constrangimentos ao líder.
Quanto à rivalidade entre as facções, Brasa admite que, de um ano para cá, a guerra voltou ao PCPA. Mas ele próprio prefere a paz. “É melhor quando a situação está calma, assim como quando as saídas são negociadas. Com conversa é sempre mais produtivo”, defende. E faz uma advertência: “Se eles (os agentes) voltarem com a mesma mentalidade de antigamente, a gente coloca fogo em tudo. Fomos nós que arrumamos as galerias, então não custa quebrar de novo”. Mas, quando o assunto é armas e drogas na cadeia, ele sorri e diz que sobre isso não há nada o que falar. “no que me diz respeito isso não existe aqui”, afirma com ar de deboche. Brasa também é o único dos prefeitos a admitir que “mataria a pau” um Duque 13 (preso condenado por estupro pelo artigo 213) se encontrasse um em uma das galerias que comanda. Os Duques são os criminosos condenados por estupro e violação sexual. A Brigada Militar os mantêm em uma galeria separada, para que não sofram agressão de outros presos.
Os duques também têm seu prefeito e auxiliares. O auxiliar Antônio Augusto Nunes Jr, 29 anos, condenado a oito anos confirma a hostilidade dos presos e salienta que, embora outras galerias não os aceitem, eles permitem que condenados por outros artigos convivam com eles na galeria que coordenam. As facções nunca se encontram nos pátios, pois descem em escalas e horários diferentes. Até mesmo as visitas são organizadas em função disso. Organizadas por eles mesmo, diga-se de passagem.
Eventualmente, porém, a própria chefia de segurança organiza encontros entre os líderes para que cheguem a um entendimento quanto às suas diferenças. O superintendente da Susepe entende que a questão da superlotação do presídio só será solucionada após o término da construção da penitenciária de Osório. Também está prevista uma verba federal de R$ 3,6 milhões que será destinada à reforma do Central pelo Ministério da Justiça, com a possibilidade de iniciar ainda este ano. “Quando os novos agentes assumirem, em 2002, não haverá mais superlotação”, diz Airton Michels. O superintendente, entretanto, teme que essas medidas possam ser ameaçadas pelo corte de 45% nas verbas do Ministério da Justiça e que isso reflita nas receitas destinadas aos presídios por parte do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), um dos órgãos do ministério.