GERAL

Ler é um direito. E um dever

César Fraga / Publicado em 16 de julho de 2000

Em setembro deste ano, a escritora Ana Maria Machado recebe o prêmio Hans Christian

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Fotos:René Cabrales

Fotos:René Cabrales

Andersen, laurel máximo concedido a autores de literatura infantil no mundo todo. É o topo de uma carreira de 30 anos, 110 livros, muita dedicação e envolvimento com a escrita para crianças e adolescentes. Ana Maria tem suas obras traduzidas em 16 países. Foi professora, jornalista e aluna de Roland Barthes e Umberto Eco. Na entrevista também fala do exílio que teve de encarar logo após terem identificado o seu carro como o que foi utilizado no seqüestro do embaixador americano em 1969. Também nos fala dos motivos pelos quais faz literatura e dos compromissos éticos dos intelectuais brasileiros e do papel da escola na formação de novos leitores

Extra Classe – Do tempo que você escrevia para a revista Recreio, ainda no final dos anos 60, até agora, o que mudou na escritora Ana Maria Machado?

Ana Maria Machado – Ora bolas, eu era muito mais bonita e jovem (risos). Afora isso, sou intrinsecamente a mesma pessoa, só que mais madura. Há o fato também de hoje eu ser uma escritora profissional e exercer isso em tempo integral. Não preciso mais ficar escrevendo com o tempo roubado de outras atividades. Com isso eu posso me dedicar mais horas e burilar mais o texto.

EC – É possível viver de literatura no Brasil?
Ana – Eu acho que é. Mas, é claro, depende do padrão de vida que se quer ter. Apesar de ter livros publicados em outros países, é do mercado brasileiro que eu dependo basicamente. É preciso entender que eu vivo de literatura na soma de direito autoral de livro, palestras e artigos. Já não tenho outra profissão há muito tempo. Agora, é bem verdade que o meu apartamento eu comprei quando ainda era jornalista. Com isso passei a viver de literatura sem ter de pagar aluguel.

EC – Esta é uma pergunta recorrente, mas qual a diferença entre escrever para adultos e crianças?
Ana – Existem algumas diferenças, mas são muito sutis. Não é uma coisa evidente. Já aconteceu de eu começar a escrever alguma coisa para crianças e depois perceber que daria um bom texto para adultos e vive-e-versa. O conteúdo é basicamente o mesmo. O que muda é a forma. Escrever para criança é como assobiar uma melodia. Para adultos, é executar uma sinfonia.

EC – Que responsabilidade deve ter hoje quem escreve textos infantis sabendo que a obra pode ser a porta de entrada para novos leitores no mundo da literatura?
Ana – Eu acho que não se tem que pensar em responsabilidades quando se escreve. Quem pensa muito nisso não faz literatura, faz porta de entrada. A responsabilidade que se tem deve ser a mesma, tanto para adultos como para crianças. É a responsabilidade social que qualquer intelectual deve ter no Brasil dos dias de hoje. Ainda que a gente não deva colocar a criação artística a serviço de um dever social, nada nos exime de termos uma posição muito clara e nítida, e isso acaba fatalmente aparecendo em tudo que a gente faz. O intelectual deve, ao mesmo tempo, mostrar como a situação brasileira é complexa, porém, utilizando uma linguagem extremamente simples. É uma função quase didática a de explicar às pessoas como tudo é complicado. O Brasil é uma grande macarronada. Você puxa uma porta e quando você vai mexer lá dentro acaba saindo uma outra coisa do outro lado do prato. Mas é preciso ter muito cuidado para não se tornar panfletário.

EC– Além do reconhecimento dos leitores, prêmio é importante?

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Fotos:René Cabrales

Fotos:René Cabrales

Ana – É importante, sim. Eu só fiquei escritora porque ganhei um prêmio. Foi determinante para a minha carreira ter ganhado, em 1978, o prêmio João de Barro com Uma história meio ao contrário. Até então, só havia publicado os meus textos para a revista Recreio reunidos em livro pela editora Abril. E coisa foi mais ou menos assim: inscrevi o livro no concurso e ganhei. A partir daí outras editoras passaram a me procurar. Eu estava com as gavetas cheias de trabalhos já escritos, pois na época eu não fazia a mínima idéia de como funcionava este mundo editorial. Para se ter uma idéia, havia tanto trabalho acumulado que, entre 1979 e 1980, publiquei uns seis ou sete livros. Com isso eu concluo que o prêmio foi importante, pelo menos para mim. Não pela notoriedade, mas pelo pontapé inicial. Mais tarde, em 1981, veio o prêmio Casa de Las Américas, em Cuba, que era uma coisa meio proibida para os brasileiros. Fiz questão de me inscrever e participar. Meu objetivo era questionar esta pseudo proibição e, no final, acabei ganhando com um livro adulto. A repercussão disso na imprensa foi bastante grande, até pelo momento político em que vivíamos.

EC – E o Hans Christian Andersen?
Ana – Bem, este nem se fala. Estou contentíssima e muito honrada. Ele é considerado o maior prêmio concedido ao gênero de literatura que escrevo. E saber que você é considerada a melhor do mundo naquilo que você faz e não ficar contente não existe. Estou muito feliz por nove jurados de nacionalidades diferentes terem me escolhido. Mas uma coisa deve ser dita: alguns prêmios que recebi talvez não os tivesse merecido, assim como alguns que mereci não ganhei. Há uma relatividade muito grande nisso.

EC – Como você vê a influência do conto moral na literatura infantil brasileira? Ana – No livro infantil brasileiro quase não existe a presença do conto moral. De Monteiro Lobato para cá esta preocupação quase não existe entre os autores. No resto do mundo tem muito disso ainda. No Brasil já temos pelo menos 80 anos de estrada sem esta influência e é aí que está a grande força da literatura infantil brasileira. Mas uma coisa é falar no conto moral, outra é produzir um texto que discute questões éticas. Pois este último é próprio de toda a literatura. Toda a obra apresenta dilemas morais.

EC – Você tem idéia de como a literatura é tratada nas escolas?

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Fotos:René Cabrales

Fotos:René Cabrales

Ana – Existem vários aspectos que envolvem esta questão. Primeiro que em um país como o Brasil a escola precisa desempenhar um papel importantíssimo na introdução dos cidadãos à literatura. A tradição familiar de levar a literatura às próximas gerações inexiste por questões óbvias. A grande maioria é muito carente e conseqüentemente não têm acesso ao livro, portanto… Então, é importante que o professor lembre de algumas coisas básicas. Uma delas é que a linguagem narrativa – que permite ao homem contar histórias – é que distingue o homem do animal. Esta distinção vem lá do começo da história, vem se perpetuando de geração em geração. Homero recontou a Odisséia muito antes que existisse a escrita, no século 8 antes de Cristo. Os gregos inventaram uma porção de coisas. Depois deles vieram os romanos, os renascentistas e assim por diante. Enfim, temos uma herança, um patrimônio que os nossos antepassados nos deixaram, como um avô que deixou terras ou jóias. E a segunda coisa a ser lembrada pelos professores é que todos estes cidadãozinhos que freqüentam as escolas têm o direito a esta herança. Então, qualquer interferência que não permita que esta herança chegue aos seus herdeiros é crime. A última coisa a lembrar é que não se pode ter um professor de natação que não saiba nadar, então não podemos achar que um professor que não lê vá ter capacidade de despertar em alguém o gosto pela leitura.

EC – Voltando ao final dos anos 60, como se deu o episódio do teu exílio na França?
Ana – Tudo aconteceu em função do seqüestro do embaixador americano em setembro de 1969. Foi o meu fusca o carro utilizado na ação. Com isso fui presa logo que o veículo foi identificado. O meu irmão, o Franklin Martins, que é hoje jornalista, foi um dos que organizou o seqüestro e foi quem escreveu o famoso manifesto. Na época, a polícia toda procurava por ele e acabou prendendo a mim, ao meu pai e meus dois outros irmãos. A mim soltaram logo e percebi que havia me transformado em uma isca viva, pois o que eles queriam era prender o Franklin. Então, por uma questão de segurança minha e dele era interessante que eu saísse do país. Fui para a França, onde pedi asilo. Fui com meu marido e um filho pequeno. Lá eu fiquei estudando até ir para a Inglaterra. Ao todo foram três anos fora, um ano e meio para cada país.

EC – Foi nesta época que foste aluna de Roland Barthes?
Ana – Foi sim. Antes de sair já havia me inscrito para um doutorado, no Rio. Quando cheguei na França fui direto procurar o Barthes. E sem dúvida ele foi um ótimo professor. Certamente foi um dos professores que mais me marcou. Sempre foi muito exigente e ao mesmo tempo sabia ouvir muito. Ele me instigou muito. Enfim, foi a pessoa que me ensinou a pensar.

EC – Como se sente a Ana Maria Machado depois de tudo isso?
Ana – Me sinto ainda muito professora. Sempre que posso volto para a sala de aula, apesar de considerar a burocracia da escola muito chata. Ano passado dei um semestre sobre Literatura Brasileira na Califórnia. Venho de uma família de professores, desde o meu avô até dois dos meus filhos, que foram professores. Mas aonde eu quero chegar com tudo isso é que a perda do prestígio que a profissão sofreu nestas últimas décadas no Brasil não é obra do acaso. Precisamos estar alertas quanto a isso. Este mecanismo acaba transformando o professor culto, estudioso e cientista na imagem da professorinha, da tia – alguém que não lê nunca, mas é muito boazinha. Ou seja, a feminilização da profissão privilegia muito mais o aspecto afetivo do que o intelectual, e esse processo precisa ser revertido. E volto a frisar que a única maneira de se retornar da esfera afetiva para a esfera do saber é lendo muito. Ler é poder. É ao mesmo tempo um direito e um dever cívico.

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