Brincadeiras de roda e com bonecas não estão mais fazendo parte do mundo de fantasia de meninas com menos de dez anos. Elas agora se reúnem para um estranho ritual: aprimorar coreografias sensuais ao som de grupos como É o Tchan e as Meninas, e a graça está em competir para ver quem dança melhor.
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O que à primeira vista parece uma brincadeira, ganha contornos sérios quando se adultos estimulam a erotização precoce. Basta entrar em uma loja infantil. Na seção das meninas, é difícil encontrar moletons e outros roupas confortáveis, que permitem a liberdade de movimentos da garotada.
Exemplo disso é um grande magazine, no centro de Porto Alegre. Lá, os modelitos à disposição são a mais pura imitação de roupas de adultos. De mau gosto, mais sedutora possível. O que dizer de blusas para meninas de dois a três anos, coladas ao corpo, num tecido vermelho brilhoso? Ou um vestido com barras imitando pele de onça? Há inclusive marcas especializadas nessa transformação, como a Palo Mino. Botas e sapatos de salto alto, tamancos com solados exagerados é o que mais se encontra. E, se tem para vender, é porque tem público.
Natália tem nove anos e está na segunda série. Ela está maravilhada na loja. Chamou-lhe a atenção um par de tamancos de salto alto, número 30, que também pode virar sandália e ainda outro par, feito de um material que imita pele de onça. “Na minha escola, as meninas só usam isso”, ela diz. Se é problema o salto alto? “Eu sei andar”. Já na seção de roupas, os modelos sensuais são motivo de euforia. “Vi uma blusinha, com uns fiozinhos, que é linda”, e completa: “meu maior sonho é usar um vestido de rendas e babados, como os que têm na TV”.
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A menina gosta porque está na moda, ela vê na televisão e suas coleguinhas também usam. A mãe, Maria Tereza Ávila, diz que a filha já virou o pé com tamanco semelhante. “Ela pede essas roupas exageradas e sapato com salto. Sempre tive medo que pudesse prejudicar a coluna dela, mas é bobagem, porque a minha filha de 19 anos nunca usou salto e tem problema”.
Se as roupas para meninas são um exagero e nada têm de infantis, o mesmo não se pode dizer da seção dos meninos. Na coleção, abrigos de moletom, na cor cinza, de todas as tonalidades, jaquetas, japonas. César, de três anos, mal sabe falar, mas tem opinião. “Eu me vesti”, conta, mostrando a calça de brim e a camisa azul que escolheu. “Só me ajudaram a colocar o sapato, porque eu não sei”. Se perguntarem se ele escolhe as roupas para agradar às meninas, a resposta é na hora. “Eu não gosto de ‘gulia’, elas são chata”.
Será que o estímulo à sexualidade precoce é só para as meninas? Marcelo Schmitz, psiquiatra com especialidade em criança e adolescente, aponta que, de fato, os modelos de erotização são mais femininos. “Há uma tendência de que as crianças sejam motivadas a copiar modelos, como Xuxa e Carla Peres, com a interferência do adulto”. O valor passado é a beleza, diferente da escola, que preserva a disciplina e o estudo. A criança imita para se sentir valorizada.
A menina atinge a maturidade sexual antes dos meninos, mas o comportamento sexualizado também acontece com os meninos da forma mais precoce do que o desejado, independente da questão biológica. “Há questões culturais interferindo e os meios de comunicação têm papel importante nessa precocidade, basicamente a TV, que está substituindo a babá”, afirma.
Para ele, a influência da televisão é mais forte quanto menor a capacidade da família de colocar limites. Uma pesquisa aponta que entre 8 e 9% dos brasileiros têm a primeira relação sexual com menos de 15 anos. Schmitz indica que um fator importante é a dificuldade dos pais em colocar limites ou conversar com os filhos. “Duas questões preocupam: a negação que pais fazem em relação à sexualidade da criança e o fato deles projetarem nas crianças o que gostariam de ser”.
É muito difícil para a escola adotar uma postura se a família não está disposta a isso. É preciso uma conscientização familiar, conversar mais. Nesse processo educativo, o papel da televisão é uma influência. “Os pais devem ter uma hora para acompanhar o que as crianças estão vendo”.
Nalu Both, psicóloga que trabalha na Coordenação da Política de Atenção Integral à Saúde da Criança e do Adolescente da Secretaria Estadual da Saúde (SES/RS), está convencida de que existem fatores culturais e biológicos interferindo na precocidade sexual. “A menarca (primeira menstruação) está acontecendo cada vez mais cedo”. Há 30 anos, acontecia por volta dos 14 anos. Hoje é por volta dos 11, 12 anos. Também aumentou o número de adolescentes grávidas. Isso vem ocorrendo ano a ano (veja quadro nesta página). Em 1988, o Sistema de Informações Sobre Nascidos Vivos da SES/RS registrou, no Rio Grande do Sul, um índice de 20,1% desses casos. “Isso que o nosso estado apresenta um dos menores índices. Então, dá para perceber que o problema de fato vem se agravando”.
Estudos falam em aperfeiçoamento nutricional, mas há também correlação com fatores culturais, especialmente a mídia, que agem no comportamento, deixando a menina mais sensual, mais sedutora. “A mãe estimula e até acha natural”, informa Nalu. “Há uma queima de etapas, a menina passa pela infância e entra direto na puberdade”.
Também existe uma valorização da sociedade, não do esforço de conquistar coisas com o trabalho, mas ganhar dinheiro com uma bela bunda. Outro fator importante levantado por Nalu é o adiamento da idade para o casamento. Hoje, as pessoas casam mais tarde. “A gravidez na adolescência sempre existiu. Mas antigamente isso era comum, porque as pessoas casavam mais cedo, as meninas se transformavam em mães já casadas. Hoje o hiato entre o namorar e o casar se estendeu mais e espera-se que meninas de 14 anos não sejam mães. Isso passou a ser um problema”.
A gravidez na adolescência continua associada ao baixo índice de escolaridade. Claro que não acontece só nesse segmento, mas Nalu considera que o aumento da escolaridade é um fator de proteção. “A gravidez nessa fase é um estorvo, quando se está estudando. Mas para muitas meninas que não estão na escola e levam uma vida difícil, pode ser vista como uma salvação”.
Está comprovado que hoje a informação não basta para que o adolescente mude seu comportamento de risco. Ele sabe de tudo o que pode acontecer. Na cabeça. Não quer dizer que mude o comportamento. “Os adultos têm sua responsabilidade nisso. Eles não falam em sexo enquanto os filhos ou alunos não chegam à adolescência, quando desde sempre se deve falar. Os pais devem estar alertas para o que as crianças estão vendo e dizendo e aproveitar cada situação abordar as coisas”, observa Nalu.
Para a psicóloga, esse é um problema complexo, mundial e multicausal. Não há fórmulas mágicas para interromper essa avalanche em que se transformou a precocidade sexual, mas pode-se trabalhar o tema com honestidade e transparência.