Foto: Isabela Martini/Argos Foto
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Com o processo de liberalização econômica desencadeado por organismos multilaterais como o FMI, Bird e o Banco Mundial, no sentido de buscar equilíbrio orçamentário via redução de gastos públicos, abertura comercial, privatização das empresas e dos serviços públicos – entre eles os de educação e saúde – , além das reformas nos aparelhos do Estado e nas legislações educacionais acabou modificando profundamente o campo do ensino superior no Brasil. O recente estudo realizado pelos professores João do Reis da Silva Jr. e Valdemar Sguissardi faz uma radiografia das mudanças no ensino superior privado e público no país. O primeiro é professor do Programa de Estudos Pós-graduados em Educação da PUC/SP e o segundo, docente da Universidade Metodista de Piracicaba. O professor João dos Reis fala com exclusividade ao Extra Classe sobre o seu estudo contido no livro Novas Faces da Educação Superior no Brasil – reforma do Estado e mudanças na produção – Cortez Editora, 279 páginas, esclarecendo uma série de questões debatidas hoje na academia e finalmente reunidas em livro e neste breve resumo em forma de entrevista.
Extra Classe – Quais as principais causas e conseqüências desta tendência de mercantilização na educação superior no Brasil?
João dos Reis da Silva Jr. – As causas da mercantilização da educação superior no Brasil devem ser buscadas na atual reforma do Estado Brasileiro muito bem orquestrada pelo ex-Ministro Bresser Pereira, sob liderança política do presidente Fernando Henrique Cardoso. Tal reforma restringiu e desregulamentou a esfera pública propiciando grande expansão da esfera privada em vários setores nos quais o público era estratégico. As privatizações em geral são um bom exemplo dessa diretriz central da reforma do aparelho do Estado. A expressão desse movimento na educação, em particular na educação superior, motivou a reforma focal – a conta-gotas – desse nível de ensino. Há, sem dúvida, uma maior vigilância sobre o heterogêneo setor privado, porém a iminência da transformação das instituições públicas em “Fundações Públicas de Direito Privado” cria a possibilidade não só da privatização total, mas também da mudança identitária da secular instituição universitária. .
EC – Como é detectada esta mercantilização? ?
Silva Jr. – A mercantilização da educação, mais especificamente a de nível superior, é detectável na consolidação do processo de privatização em curso desde a década de setenta. A educação superior tornou-se “Um Grande Negócio”. Os dados estão em matéria publicada na Folha de São Paulo e por mim transcritas – “Faculdade privada com ações na Bolsa – Educação como uma mina de dinheiro – Gilberto Dimenstein (Folha de SP, 22/8/1999) – O texto diz o seguinte: com o apoio de um banco, pela primeira vez uma faculdade brasileira vai ter suas ações negociadas na Bolsa de Valores. Um dos mais bem-sucedidos auditores brasileiros, Antoninho Marmo Trevisan resolveu criar uma faculdade de administração e ciências contábeis; a Trevisan é a maior empresa nacional de auditoria e está entre as cinco mais importantes do país. Ele apresentou a idéia ao Banco Fator, transformado em sócio. A primeira turma começou a funcionar neste semestre. É previsto um investimento, nos próximos quatro anos, de R$ 18 milhões. Com esse dinheiro, além de ampliar a escola em SP, seriam abertas unidades no RJ, em Belo Horizonte e em Brasília. A meta é chegar aos 3.000 alunos. Mas por que um banco se une a uma empresa de auditoria para investir em educação, com a mesma ousadia de quem entra na Bolsa de Valores
A resposta é que dois ex-banqueiros – Paulo Guedes e Cláudio Haddad – fizeram essas mesmas perguntas ao discutirem se valia investir em conhecimento.
Separaram alguns dos muitos milhões que ganharam no sistema financeiro para comprar a Faculdade IBMEC, de administração e economia, com unidades no RJ e SP. Só pelo uso da marca IBMEC, eles pagaram R$ 4 milhões. A reforma de um prédio em SP saiu por R$ 2 milhões. Cada aluno ganhou de presente um laptop. Documento na época inédito do Ministério da Educação, preparado por Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE, sobre as perspectivas do ensino superior, oferece involuntariamente a resposta sobre a aposta. O texto faz uma análise a partir dos dados do censo universitário – na prática, é apresentado o mapa da mina. É dos setores mais promissores para fazer dinheiro e gerar emprego na era da informação.
Com base nos números, ele detecta uma estagnação nas Universidades públicas e um crescimento explosivo das instituições privadas.
São, hoje, 2,7 milhões de estudantes no terceiro grau; 1,6 milhão deles nas particulares. Vive-se um crescimento de 10% ao ano, majoritariamente absorvido pelas particulares.
EC – Como fica situação do Brasil, neste sentido, se comparado a outros países?
Silva Jr. – Apesar desse crescimento, são apenas 7,6% da população de 20 a 24 anos que as universidades atendem. Na Argentina são 30%; nos EUA, 60%. Há, portanto, muito espaço a ser ocupado. Nos últimos cinco anos, o ensino médio (ex-colegial) cresceu também em um ritmo de 10% ao ano. Estima-se que, em 2002, já serão 10 milhões; 3 milhões a mais do que no ano passado; 5 milhões a mais do que em 1994
É uma avalanche, mas ainda é pouco. É apenas 30% da população de 15 a 17 anos. Nos países desenvolvidos, essa porcentagem sobe para além dos 90%; uma tendência de que o Brasil não deverá escapar. Daí se tira uma fatia milionária de brasileiros dispostos ou obrigados a pagar pelo conhecimento – o que implica toda uma galeria de itens de consumo como livros, jornais, revistas, assinaturas de provedores de Internet, computadores e cursos complementares. Avolumam-se ao mesmo tempo a onda de programas de educação continuada, visando à reciclagem de profissionais, e os chamados cursos seqüenciais – nesses cursos, o estudante passa um tempo menor na faculdade. Há dinheiro, muito dinheiro, em jogo.
Importantes Universidades norte-americanas já montam convênios no Brasil, oferecendo cursos a distancia. Um deles (o que atraiu o apetite internacional) já está em operação com a Câmara Americana do Comércio, com o preço de US$ 50 mil por um MBA da Universidade de Michigan, tirado aqui mesmo no Brasil. Monta-se, assim, um clima de supercompetição na busca pelo aluno. O que, por um lado, é bom. Afinal, vai obrigar as escolas a oferecer mais qualidade, recrutando os melhores professores e aperfeiçoando currículos e material didático.
EC – Mas a universidade pública não acaba correndo perigo?
ISilva Jr. – Sim. Com essa competição, quem corre sério risco são as universidades públicas, com suas monumentais crises de financiamento e armadilhas burocráticas. Já estão perdendo levas de professores. O problema para a nação: é nas universidades públicas que se faz pesquisa. Mais cedo ou mais tarde, podem apostar, as universidades públicas se verão obrigadas a cobrar mensalidades dos alunos. Quem tiver dinheiro sempre vai procurar as melhores escolas. Por outro lado, a transformação das instituições públicas em Organizações Sociais, na verdade, Fundação Pública de Direito Privado, alterariam a base jurídica de gestão das escolas públicas, assemelhando-as a qualquer empresa privada regida pela CLT e podendo operar segundo os restritos parâmetros mercantis. Isso aproximaria perigosamente a educação do mercado, que complementaria o orçamento das públicas, o que implica dizer o enfraquecimento da Autonomia Universitária.
EC – Então, com base nos seus estudos, qual o destino da educação pública de nível superior no país?
ISilva Jr. – Por mais duro que possa parecer, a tendência é da acentuação do processo mercantil nesse nível educacional, que somente não se poderá completar em razão de outra grande injustiça crônica da formação social no Brasil: a concentração de renda. Não haverá brasileiros em condições de pagar as mensalidades ao ensino privado, penso residir aí os limites da mercantilização, no entanto, as instituições já serão outras. De produtoras e difusoras de conhecimento passariam a produtoras e administradoras de dados e informações para o mercado, valores que fundariam as relações sociais das IES e, portanto, favoreceriam a formação do homem só, mudo e útil, o cidadão do terceiro milênio.
EC – As atuais políticas federais voltadas para a educação superior atendem às necessidades brasileiras ou estão mais voltadas para dar resposta aos lobbys das redes de ensino privadas?
ISilva Jr. – Existem os lobbys das particulares e a organização sindical e movimentos sociais que travam uma batalha numa e noutra direção e, de fato, realizam parcialmente seus objetivos. No entanto, as políticas federais atendem mais aos interesses do capital nacional e internacional e seguem as diretrizes de um governo de tendência nitidamente neoliberal, que segue o que rezam os organismos multilaterais.
EC – Qual a relação entre a proposta de avaliação institucional que está sendo aplicada com os interesses do FMI, Banco Mundial, etc, e os projetos de qualidade total e afins.
Silva Jr. – A relação é direta. Veja-se a reforma educacional do Estado de Minas Gerais, por exemplo. Tais organismos, ainda que com a crença de nossos governantes nas diretrizes neoliberais, são responsáveis técnicos e políticos pela reforma do estado brasileiro cuja lógica expusemos na primeira pergunta, e é a mesma lógica que organiza a educação superior e os demais projetos citados nesta pergunta. Basta para isso ler os relatórios anuais desses organismo multilaterais, não há coincidências, mas identidades entre as sugestões dos organismos e os supostos de nossas políticas educacionais.
EC – Por que o tratamento diferenciado na questão da democracia interna entre as escolas públicas e as privadas (a LDBEN prevê, por exemplo, eleições para reitores nas instituições públicas. Na instituição de ensino privado não há eleição nem para coordenação de cursos)?
Silva Jr. – A LDBN tornou-se um grande “guarda-chuva jurídico” para as ações pontuais do Poder Executivo, que apesar de eleito democraticamente, atua num clima de “hiperpresidencialismo”, por atos exclusivos e autoritários desse poder, chamando a si a resolução dos problemas de se colocar a matriz político-ideológica em prática. Se, por um lado, o governo desresponsabilizou-se da educação no seu fazer, por outro centralizou a definição do que fazer, daí a dura avaliação sobre o setor privado, como por exemplo o Exame Nacional de Cursos, as obrigações e deveres para reconhecimento de cursos, para as mudanças de estatuto institucional (de centro universitário para universidade, um exemplo), próprio de uma gestão empresarial, de Estado gestor, como quer (quis) Bresser Pereira. Disso resulta que, se a educação é uma questão empresarial, as questões democráticas não importam e há diferenças entre o que é público na educação e o que é empresarial.
EC – Muitas universidades privadas estão investindo pesado no ensino a distância (em várias modalidades: desde aulas super lotadas, passando por aulas em auditórios/telões…). Como o Sr. avalia isso?
Silva Jr. -Trata-se de mais uma das tantas conseqüências da mercantilização educacional, ainda que não se possa analisar essa esfera de forma homogênea. Mas essa modalidade educacional implica uma extensão de investimento em equipamentos de alto valor agregado, além de, no específico da modalidade, os lucros se apresentarem melhor. Do ponto de vista educacional, penso que, sem a mediação dos sujeitos da atividade educativa de forma presencial, não se trata de educação, mas de outro tipo de processo formativo com prejuízos para o exercício da cidadania política e para a formação de nossas futuras gerações. .
EC – A instituição privada está condicionada à mesma lógica da qualidade total (minimização dos custos e maximização dos lucros). O que está por trás disso?
Silva Jr. -A própria lógica da instituição privada, que é invertida em relação a da pública. O fim último da instituição pública é a oferta da educação – preceito central para os liberais -, tendo como meios os recursos (sempre parcos) destinados à educação. Na instituição privada o fim último é o lucro e o meio, a educação. Obviamente os critérios de decisão também se invertem. A qualidade total vem dar uma pseudocientificidade ao que é muito antigo.
EC – No contraponto entre educação pública e privada, não seria uma evidente vantagem às instituições privadas poderem manejar sem maiores entraves seus orçamentos e regimes contábeis, enquanto as universidades públicas têm de passar por todo um processo público de aprovação de verbas a cada ano?
Silva Jr. – É a própria lógica mercantil, não público, é privado, assim, não é possível interferência, salvo das poderosas “mantenedoras”. .
EC – A educação superior no Brasil tem todo um aparato periférico, formado por cursos preparatórios, publicações, etc., que é gerado e ao mesmo tempo dá sustentação a uma “indústria” do vestibular. Haveria uma maneira de se acabar com isso através do incremento da rede de ensino superior ou o vestibular é uma instituição imutável?
Silva Jr. – A seleção para a educação superior poderia mudar muito se nossa distribuição de renda fosse mais justa e se as políticas orçamentárias para a educação também o fossem, penso que não reside aí o maior problema e que não é possível pensar a educação superior fora do contexto de uma absoluta apartação social. .