GERAL

Começar de novo

César Fraga / Publicado em 3 de junho de 2001

Três décadas de viagem pela América Latina

Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Rosa María Torres, equatoriana e residente na Argentina, é pedagoga, linguista e jornalista da área da educação. Já trabalhou em vários países, dentro e fora da América Latina, foi assessora da Unicef em Nova York, diretora pedagógica da Campanha de alfabetização Monsenhor Leonidas Proaño (no Equador 1988/1990) e de programas para a América Latina e Caribe da Fundação Kellogg (1996/1998), além de pesquisadora internacional do Instituto Internacional de Planejamento Educacional – IIPE –da Unesco, em Buenos Aires até o ano passado.

Atualmente é pesquisadora independente do Instituto Fronesis e acaba de publicar Itinerários pela Educação Latino-Americana – Caderno de Viagem.

Ela também é autora de outras duas obras publicadas no Brasil: Inclusão – Um Guia para Educadores e Educação para Todos – Uma Tarefa por Fazer.

Extra Classe – Como surgiu a ideia de fazer um livro de relatos de viagens, justamente ligadas ao tema educação?
Torres – Viajar faz parte do meu trabalho. Escrever também. O livro é uma síntese dessas duas coisas. São quase três décadas de viagens uma vez que comecei a viajar pela América Latina no início dos anos setenta, mas a maioria dos relatos publicados são praticamente todos da década de 90.
Acabei conhecendo muitas experiências brasileiras em educação. O Brasil é particularmente criativo e propenso a grandes inovações, porém são inovações muito efêmeras. Mudam as idéias, mudam as pessoas. Tudo muda o tempo todo. Os métodos, as doutrinas são substituídas muito rapidamente, muitas vezes antes mesmo de serem assimiladas para poderem dar algum resultado.

EC – Essas mudanças constantes acabam sendo um aspecto negativo, pois muitos projetos acabam não tendo continuidade. O que a senhora pensa disso?
Torres – O problema não é a inovação em si, mas a inovação pela inovação. Quando as mudanças não se convertem em sistemas. No Brasil há um eterno recomeçar e muitas ideias maravilhosas se perdem nesse processo. Isso significa também que muito tempo, dinheiro e esforços acabam se esvaindo sem que se veja resultados significativos.

EC- Existe muita diferença entre as propostas pedagógicas e políticas educacionais no papel e o que se vê nas escolas de verdade?
Torres – Isso existe em todo lugar, mas no Terceiro Mundo é mais grave. O papel mente, mas não necessariamente porque queira mentir. Os papéis em geral são propostas, desejos. Assim como as inovações de que falamos antes, elas também são desejos. É como o discurso dos políticos, muito distante da prática. Aprendi a não confiar em papéis, pois a distância entre eles e a realidade é muito grande. O contrário também ocorre. Às vezes um papel é complexo, árido e tecnocrático e a realidade é muito mais rica e nos surpreende positivamente.

EC – Que tipo de paralelo podemos estabelecer entre a realidade educacional brasileira e dos demais países que a senhora visitou?
Torres – Conheço bastante o Brasil pois o tenho visitado bastante, além de ler muito a respeito. Sempre gostei daqui. É um país com muita vontade de aprender e isso é um passo extremamente importante. Eu creio que o Brasil tem um sistema educativo muito complexo e difícil. A problemática da educação brasileira é árdua, pois é um país de grandes contradições e disparidades sociais. É claro que nenhum país oferece uniformidade, mas o Brasil é um país de contrastes muito acentuados. Por exemplo, no Brasil podemos encontrar escolas com qualidade de Primeiro Mundo, fantásticas, e, por outro lado, escolas que poderiam ser comparadas às encontradas às mais miseráveis regiões africanas. Convivem, em uma mesma realidade, instituições de ponta comparáveis às que tenho visitado nos Estados Unidos e Europa, obviamente privadas e caras, com as do ensino público bastante irregular, principalmente nas regiões mais pobres do norte e nordeste, onde muitas vezes os professores sequer possuem formação para tanto. Isso sem falar muitas vezes em prédios caindo aos pedaços.

EC – Que tipo de coisas a senhora viu?
Torres – Existe um encontro de educadoras comunitárias em Pernambuco. Lá os relatos são dramáticos. As tarefas de algumas professoras vão desde tirar os piolhos das crianças e dar banho até as tarefas escolares propriamente ditas. Cada professora, por exemplo, leva um saquinho de açúcar para doar aos alunos. Nesta mesma reunião fui convidada também a visitar outras realidades nos bairros a fim de visitar as escolas. Foi então que me defrontei com uma tal qualidade humana e uma noção muito clara do que é realmente pedagogia e o que é equidade, enfim, senso comunitário. Esta é a escola real. Tenho aprendido das duas coisas. Este país tem, como dizia anteriormente, uma enorme criatividade. Aqui no Brasil as pessoas estão continuamente inventando, reinventando e descobrindo novas coisas. Há milhares de coisas. É impressionante o quanto existe de gente neste país com capacidade de inovar. Isso me parece muito positivo. Outra impressão é de que se trata de uma característica do povo brasileiro.

EC – A senhora poderia nos dar exemplos concretos de projetos brasileiros que não tiveram continuidade?
Torres – Muitas coisas. Algumas delas estão relatadas no meu livro. Mas existem muitas ideias que também tiveram continuidade. Agora estou me lembrando de uma experiência patrocinada pela Unicef, em São Paulo. Se fez um projeto e, dois anos depois, simplesmente, não haviam deixado rastro ou vestígio de que tivesses existido. Em Recife, por exemplo, se construiu um escola maravilhosa e só depois de tudo pronto o poder público se deu conta de ter inaugurado um prédio sem professores. Não havia dinheiro para pagar os salários. Não funcionou por pelo menos três anos. Ou seja, não houve a coordenação necessária entre os diversos níveis das administrações municipal, estadual e federal.

EC – Pelo que tem visto em suas viagens, quais são os maiores pecados e virtudes dos professores?
Torres – Eu acredito que esta mesma criatividade que os brasileiros têm é ao mesmo tempo uma fortaleza e sua principal fraqueza, por exemplo. Essa forma volúvel de encarar qualquer novidade acaba fazendo com que o Brasil compre fácil ideias vindas de fora. Os brasileiros, em geral, fascinam-se facilmente e estão sempre atrás de uma novidade. Custa manter uma rotina e consolidar um processo. Percebo que os professores estão muito ávidos apenas pelo que é novidade. Em outros países esta característica seria tida como boa, pois são muito conservadores. É o caso do meu próprio país, o Equador. Lá os professores simplesmente não têm esta vocação para a mudança, o que no caso deles seria bom. Seria fantástico um pouquinho de contaminação deste espírito inovador brasileiro no Equador. Já no Brasil, os professores estão dispostos continuamente a mudar. Isso faz com que exista muita fragilidade na sua prática, pois se passa de uma moda à outra muito rapidamente.

EC – O construtivismo seria um exemplo?
Torres – Sim, com o perdão do trocadilho, o processo do construtivismo foi bastante destrutivo. Chegou uma onda avassaladora de construtivismo sem que as pessoas diretamente envolvidas tivesses se apropriado do conhecimento profundo do que significa essa teoria.

EC – Isso é uma crítica ao construtivismo ou à forma como ele foi difundido no Brasil?
Torres – Um pouco de ambos. Coisas complexas foram mal transmitidas de maneira simples. O que deveria ter sido feito, seria a reconstrução desta teoria de forma que permitisse sua compreensão, sem distorções. Mas o que houve foi a conversão desta teoria em uma receita. E, aqui no Brasil, tenho ouvido as coisas mais espantosas relacionadas ao construtivismo com uma distorção brutal, uma simplificação grosseira. É preciso ter muita responsabilidade com o que se fala publicamente no Brasil a respeito de educação. Afinal estas coisas podem acabar se tornando receitas e isso é perigoso.

EC – A globalização ameaça as escola pública na América Latina?
Torres – Não sei se a globalização, como tal, causaria este mal. Mas existem processos específicos de cada país. E depende significativamente de quem está à frente de qualquer projeto político. Veja por exemplo a tendência à privatização. Tenho dúvidas quanto à imposição externa. Entendo que esta problemática tem peculiaridades em cada um dos países envolvidos. Argentina e Uruguai, por exemplo: na Argentina quase tudo foi privatizado e no Uruguai, o contrário. O que existe é uma onda privatizadora. Afinal, educação, antes de mais nada, é um negócio rentável. Com as novas tecnologias dos computadores, já existem empresários fazendo as contas de quanto vão ganhar com isso. Mas também há o risco da qualidade precária da escola pública. Se ela não se moderniza, não muda, será arrasada. E aí não interessa por quem ela o será, se por empresários, pela onda ou pela própria globalização.

EC – Como está a escola pública na América Latina?
Torres – Está atrasada. Os docentes resistem às mudanças e muitas vezes, o que é pior, esta resistência ocorre por razões corporativas. E, não podemos esquecer, existem muitas forças interessadas em destruir a escola tal como a conhecemos. Aí não se trata apenas da escola pública estar ameaçada. O E-Learning, por exemplo, e as técnicas de ensino à distância, a substituição do professor pelo computador, já estão se constituindo em uma tendência.

EC – E a senhora, como vê estas novidades?
Torres – Vejo com fascinação e medo. Me encanta por um lado e por outro me atemoriza. Eu própria gasto muitas horas na internet para buscar informação sobre as principais novidades no setor e também para troca de experiências. Talvez a palavra de ordem do momento seja se adaptar às mudanças. Eu já entendo diferente, precisamos nos adiantar a estas mudanças. Os educadores precisam dominar as novas tecnologias para poder controlá-las ao invés de serem atropelados por elas. Os professores e os intelectuais têm uma responsabilidade muito grande em se antecipar a estas mudanças. É impossível negar que a tecnologia é uma aliada da educação. Por isso não podemos ficar na defensiva em relação a isso.

EC – No seu livro a senhora diz que se deveria começar do zero. O que quer dizer com isso?
Torres – Sei que isso é impossível. O que quero dizer com isso é que deve existir mudança. Precisamos entender que está arraigado o conceito de melhora. Quando falamos em melhorar alguma coisa partimos do pressuposto de que estamos aprimorando algo que já estava bom, o que não é o caso. Durante toda a década de 90, se falou-se em melhoria da Educação na América Latina e não acredito que possa ser melhorada. Deve haver mudança e radical. Isso não se resolve com mais horas de aulas, mais capacitação dos professores e mais textos escolares. Tudo isso está montado sobre um modelo que já não tem utilidade para o momento em que vivemos. Este modelo foi criado quando sequer se sabia o que se sabe hoje sobre o processos de ensino-aprendizagem. Se algumas pessoas mortas do século passado saíssem de suas tumbas, descobririam que em tudo houve mudanças substanciais menos na escola.

EC – É a falta de educação que gera a pobreza ou é a pobreza que gera a falta de educação?
Torres – Na verdade ocorre as duas coisas. Quando o Banco Mundial diz que vamos melhorar a educação para aliviar a pobreza o que acontece é que a pobreza continua a crescer. E justamente o estado de miséria é que faz com que a educação não mude. Existe uma pobreza estrutural que se dá em vários níveis, desde os recursos públicos para a educação até a população escolar. Aí não se pode fazer nada. É a própria inércia. Na década de 90, investiu-se muito dinheiro para melhoria da educação e o que constatamos é que ela piorou.

Contato: rmtorres@fibertel.com.ar

*Colaboraram na tradução espanhol/português René Cabrales e Adriana Kabbas

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