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E agora, José?

César Fraga / Publicado em 3 de junho de 2001

José Wanderlei da Silva, plantador de fumo desde os 17 anos, é um dos 5 mil habitantes de Amaral Ferrador, municicípio localizado a 200 quilômetros de Porto Alegre, onde cerca de 99% da população vive da cultura do fumo e tem uma mesma empresa como compradora principal. O acesso à cidade é por estradas de chão esburacadas e balsas. O que diferencia José dos 18 mil fumicultores gaúchos? Quase nada, a não ser o fato de ser o primeiro de quem se tem notícia a processar a maior empresa fumageira do país por danos causados a sua saúde pelo uso dos agrotóxicos. O veneno é fornecido pela empresa aos agricultores e consta como item obrigatório nos contratos firmados entre as partes. Com isso, famílias inteiras, incluindo crianças, o trabalho infantil é recorrente nas lavouras, ficam expostas constantemente. Suscetível a uma série de pragas, o fumo, historicamente, tem sido uma cultura em que os agrotóxicos encontram larga utilização. Embora nos últimos cinco anos, novas tecnologias tenham reduzido consideravelmente o uso excessivo desses venenos, os riscos à saúde continuam.

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

José sempre foi considerado o membro mais animado da fa-mília. Aprendeu com o pai (atualmente com câncer no pulmão) a lide das plantações de fumo, atividade que tem sido o sustento deles até os dias de hoje. Sempre foi considerado um homem trabalhador e promessa de sucesso. Agora, aos 31 anos, inválido pelo excesso de contaminação dos agrotóxicos utilizados na lavoura ao longo dos anos, pede uma indenização à empresa que lhe fornecia os defensivos agrícolas, a Souza Cruz S.A., maior no setor em que atua.

“Com 22 anos comecei a sentir queimação na pele e dificuldade de dormir, além de vômito. Os médicos diziam que era só um problema de fígado. Em 94 tive uma crise neurológica, fui internado em um hospital psiquiátrico. Fiquei muito inchado. Fui mudando de médico em médico e ninguém acertava o tratamento. Até que outro doutor constatou que tive uma parada neurológica, só não sabia a causa, com o tempo concluiu que era o veneno. O desespero é grande, só não me matei ainda porque acredito em Deus”, desabafa o agrigultor. Conforme Lenine Alves de Carvalho, bioquímico, epidemiologista (Mestre em London University) e ex-técnico da escola de Saúde Pública e do Meio Ambiente do Estado, sucessivos exames no agricultor concluiram que as lesões realmente teriam sido causadas pelas contínuas intoxicações com os organo-fosforados utilizados nas plantações de fumo. Os sintomas apresentados são fortes dores de cabeça, vômito, diarréia, perda de água em geral. Os principais causadores são Solrinex, Brometo de Metila (não é mais usado há cinco anos), Confidor e Ordhene. “Em geral o paciente com intoxicação aguda, após retirado do ambiente contaminado, pode melhorar e, depois de dois ou três dias, retornar e retomar suas atividades, porém, assim como o alcoolista, volta com maior resistência ao veneno. E o pior, com o tempo essas coisas acabam se incorporando ao seu dia- a-dia e esses sintomas passam a ser encarados como normalidade”, explica. No caso de José, houve um quadro patológico de avanço dos problemas neurológicos, inclusive na área comportamental. Quando ele foi para o hospital pela primeira vez, já havia seqüelas, principalmente manifestadas na forma de perdas neurológicas. Existem épocas em que ele perde totalmente o tato, em outras, falta-lhe a coordenação dos membros inferiores, além de dislexia (distúrbio da fala). Os danos no sistema nervoso central fazem com que a língua fique grossa e ele não consiga articular corretamente as palavras. Como as intoxicações foram constantes, foi tendo lesões cerebrais em vários blocos e hoje em dia só consegue minimizar as deficiências destas funções com o uso de medicamentos. Sem esses, não conseguiria caminhar, falar ou conduzir alimentos à boca.

“Em um país como a Inglaterra, onde o aplicador de veneno estuda durante dois anos para ser habilitado à função e tem de renovar sua licença constantemente, como se fosse uma carteira de motorista, isso não ocorreria”, destaca Lenine.

PROCESSO – Apesar de todas essas evidências, a missão dos advogados de José não será tarefa fácil. Não existe legislação específica sobre a responsabilização do fornecimento de agrotóxicos. Por isso, o amparo legal da ação está baseado na Teoria do risco objetivo pelo desenvolvimento do negócio, ou seja, “quem aufere lucro tem de assumir todos os riscos que produz independente das cautelas que forem tomadas. A saída é mudar o método ou assumir pagando pelo dano que está causando, isso fora a questão do dano ao meio ambiente, o caso do ‘seu’ José seria um detalhe neste contexto”, argumenta a advogada Clarisse Lima. Ela também se baseia no código de defesa do consumidor e na legislação do Meio Ambiente. Se a ré for condenada, o valor da indenização do agricultor fica a cargo do juiz e pode ser um valor equivalente aos ganhos do qual foi privado pela doença, pouco mais de R$ 5 mil/ano, ou mesmo chegar até R$ 1,5 milhão.
A empresa, por meio de seus advogados, uma equipe com escritórios espalhados em várias capitais, contestou todas as argumentações e pediu aos juízes da Vara Cível de Santa Cruz do Sul, onde corre o processo, que extinguisse o mesmo sem sequer haver julgamento do mérito. Até o momento a Justiça não se manifestou.

Segundo o texto dos advogados no documento de contestação, não existiria entre as partes qualquer relação, além da normal entre comprador e fornecedor, sendo ambos, empresa e agricultor, responsáveis pelo ônus de suas atividades. Os advogados mantêm sua argumentação centrada no fato de não existir nexo de causalidade entre qualquer ação ou omissão por parte da ré (Souza Cruz) e os “supostos” danos sofridos pelo agricultor.

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