Relatório realizado pelo Núcleo de Combate ao Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente – Delegacia Regional do Trabalho – DRT/RS, em 1998, já denunciava a servidão imposta pelos contratos estabelecidos entre a indústria do fumo e as famílias de fumicultores, assim como os danos à saúde causados pela exposição a produtos químicos por parte de adultos e crianças. Dando continuidade à reportagem do Extra Classe, edição de junho, em que relatamos o drama do agricultor José Wanderlei da Silva, inválido aos 31 anos, por sucessivas intoxicações por agrotóxicos, nossa reportagem divulga mais informações sobre a problemática que envolve a cultura do fumo.
Foram feitos levantamentos nos municípios de Candelária, Venâncio Aires, Camaquã, São Lourenço do Sul e Rio Pardo, cidades onde se concentra grande parte da produção de fumo no Estado. Também é grave a incidência da utilização de trabalho de gestantes, crianças e adolescentes em atividades insalubres, além é claro, dos próprios agricultores.
“De lá para cá, pouca coisa ou nada mudou, as ações que realizamos nas regiões estudadas, embora importantes como estudo, atingiram percentuais muito pequenos de consciência destas famílias em afastar suas crianças das lavouras de fumo. Apenas 2% dos entrevistados apresentaram mudança em sua postura diante do problema”, a afirmação é de Eridan Moreira Magalhães, socióloga da DRT/RS e autora da pesquisa ao lado do inspetor do trabalho Cláudio Menezes. Ela entende que a forma como são estabelecidas as relações de trabalho praticamente obriga as famílias a introduzirem crianças e jovens muito cedo no “esquema do fumo”. Ela também explica que a DRT não tem poder fiscalizador sobre estas famílias como tem ao autuar uma empresa, por exemplo.
Um número preocupante revelado pelo documento, divulgado apenas em palestras e seminários, em média, de 30,04 % dos homens acima de 14 anos manipulam agrotóxicos regularmente. Os percentuais se acentuam conforme vão se aproximando da maioridade. Por volta dos 35 ou 40 anos muitos já estariam impossibilitados de suas atividades. A região de Camaquã apresentou os dados mais alarmantes chegando a 34% a taxa de manuseio de agrotóxicos por crianças ou jovens entre 6 e 18 anos, registrando 12,50% entre crianças entre 6 e 8 anos, aumentando 28% aos 14 anos e 44% aos 18 anos.
De acordo com a socióloga, os fumicultores, em geral são muito desinformados a respeito dos direitos da criança e dos riscos à saúde que estão correndo em sua atividade. Mas quem lucra com essa desinformação é a indústria, que fatura alto às custas do trabalho destas pessoas. “Eles se sujeitam a essa exploração por falta de opção”, explica. Em sua grande maioria entendem que têm de levar as crianças para o trabalho para que não se transformem em “vagabundos”, além de que, sem a força de trabalho de todos os membros da família, fica difícil manter a produtividade esperada. Mesmo em casa, crianças, mulheres e idosos estão em locais geralmente anexos aos galpões; com isso às lides domésticas ficam totalmente misturadas as lides do fumo. “É comum as mulheres deixarem os afazeres da cozinha por alguns instantes para executar uma tarefa ou outra nos galpões. As crianças maiores atuam diretamente na classificação. O que vimos durante a pesquisa e continua a ocorrer é que cerca de 9,24% das crianças e adolescentes destas famílias manipulavam e certamente ainda manipulam venenos diretamente, descalços, sem luvas, sem EPI ou qualquer tipo de proteção, isso sem contar a manipulação direta das folhas de fumo.”, testemunha Eridan.
“Temos de entender que a criança está diretamente inserida no processo produtivo do fumo e seu papel não pode ser subestimado. Alguém precisa dizer: criança não pode plantar fumo, mexer com fumo, manipular veneno. Não é normal que crianças se queixem o tempo todo de dores de cabeça e tonturas em salas de aula”, argumenta a pesquisadora. A Lei 8.069 (Estatuto dos Criança e do Adolescente) veda o trabalho infantil (abaixo de 14 anos) e a exposição de adolescentes ao trabalho considerado insalubre. A Constituição Federal, a legislação trababalhista, as normas de proteção, saúde e segurança do trabalhador proíbem qualquer forma de trabalho às crianças.
Izabel Cristina Paim Neves, psicóloga da prefeitura de Sertão Santana, nas proximidades de Camaquã, atende cerca de 20 pacientes com sintomas de depressão, esquizofrenia e outras doenças psicológicas consideradas por ela como endêmicas. Trata-se de fumicultores que apresentam os sintomas como reações químicas associadas à contaminação por agrotóxicos. No município, dos 5 mil habitantes, pelo menos 4 mil se dedicam às plantações de fumo e o número de intoxicações é grande. Dos seus pacientes, todos, em mais de uma ocasião, ficaram expostos a intoxicações por agrotóxicos, inclusive, crianças. Segundo a psicóloga, o mais chocante são as mulheres grávidas que na lide do fumo ficam expostas aos venenos com os bebês ainda em geração no seu ventre. “É comum que essas mães trabalhem até o momento do parto”, diz. Preocupa-lhe que a ocorrência de nascimento de crianças com má formação e problemas de desenvolvimento psicológico, entre eles, os de aprendizagem e as disfunções psicológicas, estejam relacionadas às seqüelas deixadas por estes venenos. “Este processo precisa ser interrompido antes que se agrave mais”. Uma medida que já está sendo tomada, de acordo com a psicóloga, é a implantação do programa de Saúde Mental sob responsabilidade da Secretaria de Saúde do Município, sob supervisão da Coordenadoria da Secretaria da Saúde do Estado. Com isso se poderá fazer um diagnóstico mais preciso da situação e um levantamento do número de casos para eventuais providências. “Já tivemos casos de suicídio aqui no município. Pode estar acontecendo aqui o mesmo que ocorreu em Venâncio Aires anos atrás”, adverte Izabel.