Palavras soltas
“Para lá do portão ficava o mundo luminoso da liberdade, que do lado de cá se imaginava como uma fantasmagoria, como uma miragem. Para nós, o nosso mundo não tinha nenhuma analogia com aquele; compunha-se de leis, de usos, de hábitos especiais, de uma casa morta-viva, de uma vida à parte de homens à parte.”
Fédor Dostoiévski (1821-1891) – Recordações da casa dos mortos
Liberdade é uma palavra
“O momento que mais marcou a minha vida foi quando cheguei à penitenciária e o carcereiro disse no portão, logo na chegada: – Rapaz, olha bem lá para fora. Mas olha bem mesmo, porque vai ser a última vez que tu vais fazer isso. – Neste dia, confesso, o bandido chorou.”. O relato é do apenado e escritor Luiz Augusto Félix dos Santos, 33 anos, condenado a 140 anos de prisão, dos quais já cumpriu doze. Félix, segundo ele próprio relata em seu primeiro livro, Diário do Diabo – editado em 1996 pela editora Artes e Ofícios -, ingressou na criminalidade por volta dos seis anos de idade e só saiu aos 20, com a prisão. Quando atingiu a idade apropriada para entrar no colégio e ser alfabetizado, os infortúnios da vida o levaram direto para a escola do crime. Ainda cedo, esteve na Febem, de onde fugiu e passou a viver nas ruas, passando por toda sorte de privações e violência a que crianças, ainda hoje, ficam expostas. Antes das letras, aprendeu rapidamente o beabá da violência, das drogas, dos estupros, assaltos, homicídios e prostituição. Até o momento de sua prisão definitiva, tratou o mundo cão, como cão havia ele sido tratado, aos ponta-pés. Hoje, cumprindo sua pena na PASC, Penitenciária de Segurança Máxima de Charqueadas, afirma: “A prisão é um lugar horrível de se estar, mas foi aqui que aprendi a ler e escrever. O lado bom disso é que a literatura me salvou. Meu pensamento é livre. Mesmo preso, sou livre. Posso me expressar. Mas para chegar a isso o preso tem de ter vontade, muita vontade. A maioria não tem”. Félix garante: quando foi para a prisão “não tinha princípios, regras, conceitos, nem caminho. …nada. Então, com o passar do tempo, vi que não tinha futuro se continuasse na mesma condição de vida”. Logo começou a estudar nos programas de educação do sistema penitenciário. Passou então a redigir pequenos poemas, até que tomou coragem e escreveu seu primeiro livro. “Foi uma dificuldade, pois não sabia nem ler direito, ainda. Não sabia sequer fazer uma pesquisa, nada. Mas insisti. Escrevi tudo a mão. Para mim foi como tirar o néctar de uma flor entre as coisas ruins”.
Entre a realidade e a ficção
Hoje o desafio do escritor Luis Augusto Félix dos Santos é abstrair da própria realidade para conseguir compor obras de ficção. “Li muito romance. Tenho um ponto de vista que resulta em uma forma de escrever que sempre pende para o trágico. Estou tentando modificar isso. Mas é muito difícil. Vivi de forma trágica em um mundo trágico e de certa forma eu sou um pouco isso. Gostaria de fugir disso”.
O segundo livro, publicado no ano passado, A Morte Depois da Paixão (Editora AGE), sua primeira obra de ficção, já que o primeiro livro era a autobiográfico, aborda o universo dos portadores de HIV. O relato parte do ponto de vista dos portadores de AIDS, baseado em depoimentos de amigos e vivências pessoais.
Félix não é portador, mas perdeu várias pessoas próximas para a doença.Curiosamente, foi ele próprio quem pediu para ser colocado na Pasc. “Aqui as celas são individuais. Posso me concentrar mais na leitura e em escrever”. Além de suas atividades diárias voltadas para a literatura, Félix tem um trabalho: é paneleiro. É ele quem serve a comida dos demais presos. Mesmo dentro da prisão, casou-se e hoje tem dois filhos. Sonha com uma condicional para poder sair e trabalhar em um negócio seu, um restaurante ao lado da esposa. Ele sabe que vida de escritor não é fácil, por isso, mesmo querendo continuar escrevendo, quer garantir o sustento sem depender exclusivamente disso. Ele considera importante que as pessoas se interessem pelas coisas positivas realizadas pelos presos: “a imprensa geralmente só vem aqui para dizer que neguinho botou fogo em colchão, fez motim, matou. Nós somos seres humanos. Também temos coisas boas para dar”. No momento está trabalhando em um novo romance, desta vez ambientado nos anos de chumbo do regime militar. Muita pesquisa. Escreve diariamente.
Para conceder a entrevista, Luis Augusto permaneceu todo tempo algemado e monitorado por guardas. O esquema de segurança lembra penitenciárias dos filmes americanos. Muitos portões e uma atmosfera de total opressão. Um cenário bastante diferente do encontrado nas cadeias superlotadas, como o Presídio Central e as penitenciárias paulistas.
Soltando o verbo
Desde o dia 25 de junho (de 2001) a população carcerária do estado do Rio Grande do Sul tem a possibilidade de participar de um concurso inédito nas penitenciárias gaúchas. Trata-se de O pensamento é livre, concurso coordenado pela Secretaria da Justiça e da Segurança, Secretaria da Cultura do Estado do RS e Prefeitura de Porto Alegre, em que os apenados podem participar em três categorias: prosa, desenho e poesia. O próprio nome do concurso foi escolhido entre os presos. O nome escolhido veio do Presídio Central.
As inscrições encerram no dia 24 de agosto. Conforme o departamento de Educação da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe), já existem vários trabalhos inscritos e muitos presos estão produzindo material para poderem participar. “Estas pessoas não têm só defeitos, também têm muitas virtudes e é isso que este concurso quer mostrar”, diz Julieta.
Heloísa Augusto Beserra Gomes, 53, poetiza, participará deste concurso. Ela cumpriu dois anos na Penitenciária Feminina Madre Peletier, em Porto Alegre, e agora cumpre o restante de sua pena em condicional. Heloísa está à procura de um emprego, mas, enquanto isso não consegue, realiza trabalho voluntário na área de planejamento, matéria em que possui pós-graduação de nível superior e vasta experiência profissional. Sua atuação é no próprio setor de educação da Susepe. Um destes projetos é o das bibliotecas ressocializadoras e educacionais para todos os presídios do Estado.
No momento, também está finalizando um livro sobre o sistema penitenciário. “O sistema massifica e não individualiza. Existe um despreparo muito grande por parte de pessoas que ocupam funções-chave neste sistema”. Segundo ela, as presas lêem muito e pôde comprovar isso, pois durante sua estada na penitenciária trabalhou na biblioteca, catalogando livros e realizando estatísticas. “Lá tem de tudo, Borges, Dostoiévski, Verissimo, mas também tem Paulo Coelho e livros de autoajuda”, diz. Ela confessa que alguns presos possuem o hábito da escrita, mas não há muito estímulo. “Inclusive, há pouca colaboração dos presos neste sentido”, completa. Heloísa, antes de ter sido julgada à revelia, havia sido assessora da Secretaria de Bem Estar Social de São Paulo e professora da Faculdade de São Caetano do Sul. No Madre Peletier ficou conhecida como a Tia Heloísa, campeã de envio e recebimento de cartas. Seu hábito compulsivo pela escrita fez com que trocasse correspondência com diversos presos de várias partes do estado e do país. Sua coleção tem mais de 300 correspondências. Uma delas diz o seguinte: “Admiro a tua capacidade de boiar no sistema sem se sujar. Espero que um dia você saia dessa sujeira e esqueça tudo, inclusive a mim”. da amiga Jussara, também apenada.
Analfabetismo predomina nas prisões
Diz-se que o grau de liberdade de um homem pode ser medido pela capacidade de entendimento do mundo que o cerca, das suas possibilidades, escolhas. Sabe-se também que atualmente a população encarcerada do estado é de 14.719 pessoas; que a maioria dessas pessoas é analfabeta (o conceito de analfabetismo da Unesco inclui o ensino básico incompleto) ou semi-analfabeta. De acordo com o senso realizado no ano passado 37% dos apenados gaúchos são vítimas do analfabetismo e 45% não possuem o primeiro grau completo. Apenas 8% teriam completado o 1º grau, 3,33% o 2º grau. Somente 0,43% teriam nível superior. Ainda restam 4,5% que não completaram o 2º grau e 0,70% o nível superior. A pesquisa foi realizada com 89% dos presos, já que 10,75% são provisórios ou albergados. Atualmente 150 professores lecionam para os 1.858 presos que participam dos projetos educacionais da Secretaria de Segurança do Estado, uma pequena parcela do contingente sem escolaridade das prisões, porém um número significativo.
“Existem pessoas realmente talentosas que estão sufocadas por este momento de reclusão. Geralmente quem os descobre são os professores”, diz a professora Julieta Balestro, coordenadora do setor de educação da Susepe.
Necessidade de comunicação
A história de Marli Fiuza, 35 anos, é muito parecida com a de Félix. Ela cumpre pena de 11 anos no Madre Peletier, Porto Alegre. já cumpriu dois anos. Também escreveu um relato autobiográfico sobre o período que antecedeu a prisão. Agora está finalizando outro trabalho que conta a fase de presidiária. “Estou cheia de vida. Agora é que estou aprendendo a viver, acho”, diz. Ela estuda à noite e trabalha durante o dia na própria penitenciária. “Estou cursando o primário, pois sou semi-analfabeta”, completa. Ela confessa ter dificuldades com as palavras mais longas. Sinto necessidade de me comunicar, como todo mundo dentro e fora da cadeia. Sabe, é triste que a maioria dos jovens não queiram estudar. A leitura é uma coisa boa, a gente aprende muito.”
Sobrevivendo no Inferno
Em São Paulo, conseguimos entrevistar via fax, com consentimento do diretor da Penitenciária Estadual de São Paulo (Carandiru), Jorge Luiz Gonçalves, cujo pseudônimo é Luiz Alberto Mendes, autor de Memórias de um Sobrevivente – Editora Companhia das Letras. Cumpre pena há 29 anos. Como no Brasil o tempo limite de reclusão é 30 anos, deve sair em condicional no próximo ano. Sua trajetória não é diferente: ingressou na criminalidade ainda criança e de lá saiu para as grades. Porém seu livro não tenta explicar os motivos que o colocaram na vida do crime. Tenta não ser auto indulgente. Busca entender por que se deixou seduzir pela atraente vida criminosa enquanto outros tiveram opções diferentes. Na mesma semana em que nos concedeu esta entrevista, havia dado outra para um grande jornal da capital paulista. Desta vez, Mendes não estava mais nas páginas policiais. Tratava-se de uma matéria de cultura, por conta do lançamento de seu livro. Conquistara o status de autor, mesmo preso já não era mais tratado apenas com um marginal. Mas o que o distingue dos demais? A chance e a capacidade e de se comunicar. Assim como Félix, Heloísa e Marli, Mendes foi cativado pela literatura. Infelizmente, só tem contato com jornais via fotocópias enviadas por carta. “Aqui não entra jornal”, explica.
Extra Classe – A que você atribui a motivação de escrever, apesar de estar preso?
Mendes – Os livros me salvaram e salvam diariamente de muitas angústias, depressões e desesperos cotidianos. Escrever foi uma conseqüência e saída para tudo o que acumulei de dor, sofrimento e conhecimento. Humanizo-me escrevendo, entendo-me escrevendo.
EC – Se você fosse um homem livre teria este mesmo interesse pela literatura e pela escrita?
Mendes – Como praticamente nunca fui livre, é difícil responder. Talvez escrevesse mesmo assim.
EC – Você considera seu estilo direto e seco uma conseqüência das condições em que desenvolveu suas habilidades?
Mendes – Sem dúvida é uma questão de estilo. Gosto de minha literatura nua, despudorada até, com pouca adjetivação e períodos curtos. Trabalhei este estilo por longos anos escrevendo cartas. Na verdade, considero meu texto limpo e não seco como o de Graciliano Ramos. Há quem identifique doçura no meu texto.
EC – Como surgiu teu interesse pela leitura?
Mendes – Cumprindo sanção disciplinar na cela-forte desta penitenciária.
EC – E em publicar o que escrevia?
Mendes – Em 1989, quando escrevi a primeira versão de Memórias de Um Sobrevivente.
EC – Qual o maior problema da cadeia hoje?
Mendes – A explosão demográfica nas prisões, se é que se pode dizer assim, completou o quadro de abandono a que foram relegadas as penitenciárias em São Paulo, que é o que conheço. Hoje, são meros depósitos em que as pessoas são enterradas de pé. Não há o mínimo investimento na ressocialização do preso. A cultura desapareceu das prisões. Restou a cultura do crime, em que o livro tem pouca penetração, já que é clandestina, marginal.
EC – Como foi teu processo de inclusão na literatura?
Mendes – Primeiro foram os romances, depois fui reunindo condições de entendimento para livros mais complexos. Hoje leio tudo, mas seleciono pela qualidade. Dou preferência à literatura atual, moderna. Conheço os clássicos, mas como leio somente por prazer, fico com o que me agrada. Sou apaixonado por filosofia principalmente dos existencialistas e do Grupo de Frankfurt.
EC – Que livros te cativaram?
Mendes – Escuta Zé Ninguém, do Reich; Ode à Liberdade, de Fromm; Eros e Civilização, de Marcuse; Um Homem, de Oriana Falacci; Os Mandarins, de Simone de Beavoir; A Peste, do Camus; Metamorfose, do Kafka; República, de Platão e O Pequeno Príncipe, do Exupéry.
EC – É possível, mesmo preso, abstrair totalmente da própria realidade e produzir uma obra que não faça referência ou carregue o peso da condição vivida pelo autor?
Mendes – Creio que sim. Escrevi muitos contos que nada tinham a ver com a minha condição. Faço ensaios, tentativas filosóficas. escrevo textos sobre rock, blues. Escrevo sobre tudo o que a leitura do mundo me sugere. Mas por outro lado, me fundamentei para discutir o tema sobre o qual conheço mais e minha condição está ligada a isso. Li tudo que pude sobre criminologia, penso e questiono sobre tudo o que vivi. O Memórias de um Sobrevivente foi um exame de profundidade que realizei em meu passado. Somente depois é que foi colocado de uma forma literária. Reescrevi três vezes. Mas acredito, sim, que é possível abstrair. Escrevi até contos infantis que um colega aqui da penitenciária ilustrou. O que acontece é que no momento não quero essa abstração. Sinto-me compromissado com a tragédia carcerária e com a gurizada da Febem.Olho para as janelas, grades; olho para a porta, ferro bruto com trancas. Como vou abstrair? Agora mesmo passou um guarda me contando como se fosse gado.
A rotina da prisão é como a de um formigueiro. Restringe, atrofia e reduz a vida a um espaço
comprimido. Ler mexe com a sensibilidade, aguça o raciocínio, alimenta a alma e a vida
EC – Quando você escreve, existe um sentimento de liberdade?
Mendes – De certo modo, sim. Criar é maravilhoso, particularmente no terreno da ficção total, invenção, dar asas à imaginação. Iniciei uma história esta semana que simplesmente está me eletrizando, me enchendo de motivação pela vida. Sinto-me em febre criativa, realizando-me no que escrevo. Se liberdade tem a ver com isso, então sim. Mas há muito mais que isso. Filhos, por exemplo.
EC – A literatura te faz um homem livre?
Mendes – Não. Até para receber meus direitos autorais está difícil, pois é extremamente dificultoso tirar o meu CPF. Viajo no que crio, mas é só no momento da invenção.
EC – Você considera importante que se façam oficinas e concursos literários entre a população carcerária?
Mendes – Mais que importante. É necessária a interação do preso com a comunidade e a arte enseja isso.
EC – A literatura liberta? Como?
Mendes – Liberta no sentido que amplia horizontes. A rotina da prisão é como a de um formigueiro. Restringe, atrofia e reduz a vida a um espaço comprimido. Ler mexe com a sensibilidade, aguça o raciocínio, alimenta a alma e a vida. É uma higiene mental para manter os canais mentais limpos e em funcionamento para desenvolvimento natural da inteligência. Minha vida tem sido meus livros, meus textos.
EC – Quais os teus planos?
Mendes – Agora, por exemplo estou em uma fase criativa. Ontem comecei mais uma história. Minha primeira ficção total e estou febril por definir personagens, espaços, pensamentos e ações. É meu quarto livro. O segundo já está digitado e na mão da editora para avaliação. O terceiro é de contos e está em fase de revisão e seleção de textos para a montagem. Passo o tempo todo lendo ou escrevendo, aguardando o domingo para ver meus filhos. Planejo uma carreira de escritor e professor. Quero escrever com profundidade. Defender teses. Investir todo o meu ser no que vier a escrever. Quero poder ensinar e participar de movimentos sociais, particularmente os que dizem respeito aos menores de rua.