Educação, escola e desafios da contemporaneidade
Damos prosseguimento a uma série de artigos sobre Educação iniciada com a publicação de trabalhos de Philippe Perrenoud e Monica Gather Thurler sobre competências. Jaqueline Moll é Doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação da UFRGS e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Coordenadora Pedagógica da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre.
A consolidação da instituição escolar como marco da modernidade obedeceu a movimentos perpassados historicamente por uma tensão que podemos qualificar como constituidora de sua natureza(2). Na mesma medida em que seu advento possibilitou para milhões de pessoas o acesso ao saberes produzidos pela humanidade, chamados de clássicos ou “científicos”, significando portanto democratização de um espaço que era de poucos nobres ou clérigos, esta instituição engendrou uma lógica de enclausuramento e de separação rígida dos tempos e espaços do mundo da vida que a circunda.
Na dinâmica deste tensionamento instituinte a escola produziu-se como espaço de acesso a direitos, de aprendizagens, de possibilidade de autonomia e de singularização de inúmeras crianças, jovens e adultos, mas também como espaço de produção de ignorância, de silenciamentos, de homogeneizações e de aprofundamento de preconceitos construídos sobre a ideologia da “mesmidade”, ou seja de produção de identidades a partir de ícones e padrões universalizados desde uma lógica monoteísta, branca, masculina, letrada, para a qual tudo que não fosse ela mesma deveria ser “convertido” ou aniquilado(3).
A história da educação brasileira é perpassada por políticas públicas e práticas pedagógicas que produzem estes dois movimentos. Na mesma medida em que produzimos interfaces da escola com a vida e suas dinâmicas como desejavam os pioneiros da Escola Nova no início do século XX , os adeptos do movimento Freinet e os construtivistas dos anos 80 e 90, fomos capazes de reduzir a amplitude da aprendizagem da lecto-escritura ao “Ivo viu a uva”, de retirar – por força de lei – toda reflexão filosófica e sociológica do currículo escolar (nos anos duros da ditadura militar) ou fomos capazes de desqualificar gerações inteiras de alunos, via de regra pobres, definindo-os como desnutridos ou imaturos ou lentos, por isso “disléxicos”, “dislálicos”, “disortográficos” e portanto incapazes para aprender as ‘coisas da escola’.
A encruzilhada do presente, que nos coloca em trânsito em relação aos paradigmas estruturadores da modernidade, tem nos provocado a pensar na escola que não queremos e nos leva a ações afirmativas acerca das possibilidades que temos para quebrar as ossaturas rígidas(4) que construímos no microespaço da sala de aula, tanto na organização e proposição dos conteúdos – geralmente gradeados pela excessiva disciplinarização do conhecimento, quanto na estruturação dos tempos – anos – séries do cotidiano escolar.
Inúmeras iniciativas pedagógicas vêm procurando entender e enfrentar estas tensões, superando as profundas assincronias idade-série – que no Brasil – marcam quase 80% das crianças e jovens matriculados nos sistema público de ensino deste país, e, para além das exigências de melhorias de índices do Banco Mundial(5), produzir no cotidiano escolar tempos de viver e espaços de educar.
Nesta perspectiva reafirmamos a necessidade de pensar os processos educativos considerando a riqueza das experiências realizadas nos diferentes espaços e tempos da vida. Apontamos para a necessidade do encontro entre nossa trajetória como educadores – em permanente formação – com a trajetória de vida de nossos alunos, de cada um deles.
Ao longo de nossa vida como educadores fomos defrontados, inúmeras vezes, por políticas públicas e ideários pedagógicos que anunciavam e impunham o “correto”, o “moderno”, como movimentos que estavam a nossa frente e que nos colocavam em um patamar “abaixo”, “atrás”, como não sabedores, como fora de moda.
A questão que se coloca então é: como operarmos mudanças na escola que sejam respeitosas com os educadores, com sua memórias, experiências e trajetórias e que sejam, ao mesmo tempo, desestabilizadoras de todo sistema de valores que ainda atravessa nosso olhar e diminui os alunos e seu universo de relações e saberes, colocando-os como portadores de fracassos e não de possibilidades de sucesso e de aprendizagem, ou, dito de outra forma, como superar a compreensão que personaliza o fracasso escolar, ignorando-o como uma faceta dos perversos processos de exclusão social que são exclusões étnicas, raciais, de classe social, de padrões de normalidade?
Como modificar as estruturas simbólicas e reais sobre as quais construímos nossa inserção social, nossa intervenção cotidiana no mundo e nossa ação no espaço escolar que povoamos?
Seguramente não há receitas ou metodologias milagrosas para isto. Esta é uma operação complexa, permanente, coletiva, cotidiana que precisa ser realizada como esforço reflexivo sobre a vida e seu sentido, sobre a escola e seu sentido na direção do reencantamento e da desburocratização do mundo.
Eis então o sentido mais forte para as possíveis transformações da escola. Não se trata de desenhar uma nova moldura ou de aplicar um verniz modernizante, nem de encontrar novas formas de gerenciamento e organização técnica, com siglas e denominações muitas vezes incompreensíveis para os pais e para os próprios educadores.
Trata-se de (des)esfacelar os tempos de vida de nossos alunos, entendendo-os em seu continuum, como parte de uma trajetória, em suas dinâmicas como sujeitos “portadores” de todas as possibilidades de aprendizagens e saberes. Trata-se de, a partir dos processos de reflexão e ação instituídos há muito em muitas escolas, avançar na qualificação do espaço escolar como espaço de vida, como espaço de conhecimentos e valores, como espaços nos quais a vida transita em sua complexidade e inteireza, como espaço no qual cada aluno e aluna pode tornar-se músico, cientista, ator, matemático, literato… onde cada um e todos-em-relação possam humanizar-se e singularizar-se entendendo o mundo e entendendo-se no mundo.
Esta é nossa tarefa mais nobre como educadores e o grande desafio que se nos apresenta a cada segunda-feira ao chegar a escola ou a outros espaços educativos da vida de nossa cidade.
Neste sentido, o Fórum Mundial de Educação(6) a ser realizado em Porto Alegre de 24 a 27 de outubro deste ano, constituir-se-á em um fecundo espaço de reflexão tanto das macropolíticas que têm definido a educação mundial, sobretudo nos últimos dez anos, quanto das múltiplas e multifacetadas relações que constituem os processos pedagógicos nos microespaços nos quais nos movemos. Através da abordagem de temas clássicos e contemporâneos que compõem e atravessam nossos repertórios cotidianos, milhares de educadores e educadoras na condição de sujeitos-da-história aproximarão suas experiências e perplexidades buscando construir um diálogo que construa respostas, que sabemos sempre provisórias, para os desafios cotidianos que encontramos.
Como resultado da iniciativa da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e do trabalho conjunto de universidades, escolas, ONGS, movimentos sociais, sindicatos, grupos independentes e governos, este FÓRUM pretende ser um espaço de discussão política e pedagógica dos movimentos pedagógicos contemporâneos, que se constituem como espaços que resistem a reduzir a educação aos apelos do mercado e a mantêm como ação de humanização.
No princípio “O homem como medida de todas as coisas”, como escreveu Luís Fernando Veríssimo ao final do I Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre em janeiro passado, reside seguramente a referência que nos aproxima e que nos diferencia em nosso trabalho cotidiano. E, neste sentido, as práticas educativas podem ser matizadas com mil tons que permitam o pluralismo de discursos e concepções. Para além de tudo que tenta nos homogeneizar silenciando-nos, queremos constituir redes locais, nacionais e mundiais que nos permitam dialogar, constituir interfaces e formas de intervenção significativas na contramão dos pensamentos que se pretendem únicos.
Na perspectiva da construção dos inéditos viáveis dos quais falava Paulo Freire, o Fórum Mundial de Educação, na trilha aberta pelo Fórum de janeiro e em direção do próximo Fórum, poderá constituir-se como marco do encontro de ‘gentes’ de inúmeros países, que não só resistem a modelos e discursos únicos, mas que constroem formas de intervenção educativa, política e cultural singulares e comprometidas com a vida em sua inteireza.