GERAL

Atraso de salários expõe contradições

Paulo César Teixeira / Publicado em 15 de outubro de 2001

ULBRA

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Não há exemplo no Estado de empreendimento de ensino que tenha experimentado expansão tão vertiginosa, inclusive geográfica, na última década, quanto a Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). A instituição conta hoje com um complexo educacional que abrange universidades, escolas e centros tecnológicos espalhados por seis estados do país. No total, os 13 campi da Ulbra dão guarida a mais de 70 mil estudantes, oferecendo cursos de graduação e pós-graduação, além de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio. Apesar deste poderio todo, a universidade deixou de cumprir um de seus compromissos mais básicos: pagar em dia o salário de agosto aos professores.

Colocar-se como uma das mais importantes instituições de ensino do país não foi o bastante para a Ulbra. Ela esparramou-se por outros setores da economia com iniciativas carregadas de ousadia e modernidade. Investiu pesado num complexo de saúde que inclui hospitais, unidades ambulatoriais e central de dignóstico, distribuídos por nove municípios gaúchos. Sem levar em conta o plano de saúde e, especialmente, o novo hospital do campus de Canoas, prestes a ser inaugurado, equipado com o que há de mais moderno em tecnologia hospitalar. Na área de comunicação, está presente com uma rede de emissoras de rádio FM, gráfica, editora e telecentro. No campo do esporte, a Ulbra ganhou projeção nacional graças a um audacioso investimento em marketing, que resultou em títulos e performances marcantes em várias modalidades esportivas.

Tudo começou há 29 anos com o curso de Administração da então Faculdades Canoenses, ministrado em salas de aula do colégio Cristo Redentor. Logo depois foram implantados os cursos de Ciências Contábeis e de Arquitetura e Urbanismo. Em 1978, foi adquirido o terreno na vila São Luís, em Canoas, onde hoje está instalado o campus central numa área de 272,3 mil metros quadrados de obra construída e mais 40 mil em construção. O salto para além das fronteira gaúcha foi dado em 1984, quando a universidade abriu uma frente em Ji-Paraná, em Rondônia. A unidade inaugurada mais recentemente no Norte do país está na capital do estado, Porto Velho, e fez o primeiro vestibular em 28 de julho deste ano, com 142 inscritos. É da Ulbra o campus universitário tido como o mais moderno do oeste paraense, plantado no município de Santarém. O gigante pôs os pés também em Manaus (AM), Palmas (Tocantins), Goiatuba e Itumbiara (GO). No Rio Grande do Sul, a expansão iniciou em 1989, quando a Ulbra instalou-se em Guaíba e São Jerônimo. Atualmente, conta com seis campi em solo gaúcho, atuando também em Cachoeira do Sul, Gravataí, Carazinho e Torres.

A expansão geográfica foi interpretada pela opinião pública como conseqüência de uma confortável situação financeira vivida pela instituição. O plano de saúde, por exemplo, aparentemente, vai de vento em popa. No último trimestre, foram abertas novas unidades de atendimento em Sapucaia do Sul, Cachoeirinha, Novo Hamburgo e Canoas. A rede própria passará a contar com 15 unidades e a Ulbra já anunciou que, em breve, outras virão em Viamão, Alvorada e Nova Santa Rita. No total, o plano atende a 55 mil pessoas, 32 mil oriundas de planos empresariais. A meta era bater na casa de 70 mil usuários até o final de setembro, como disse o diretor do Plano de Saúde, Milton Machado, ao Jornal da Ulbra, na edição de agosto.

Não é lógico um gigante com braços voltados para tantas direções enfrentar dificuldades em cumprir compromissos tão básicos quanto manter em dia a folha salarial de professores. Por essa razão, causou perplexidade o atraso de 13 dias para o pagamento do salário de agosto. O assombro se justifica. Afinal, vislumbra-se aí um paradoxo: de um lado, a falta de recursos para honrar a folha de pagamento na data prevista e, de outro, a magnitude da estrutura física e da imagem institucional da Ulbra – que inclui um prosaico Museu do Automóvel de 9,3 mil metros quadrados, que tem até um tanque de guerra, junto a um chafariz com mastro de 42 metros de altura (o segundo mais alto da América Latina), o equivalente a um prédio de 16 andares.

Só o assalariado que não recebe em dia pode dimensionar a sensação de desamparo que, invariavelmente, desaba sobre o trabalhador numa circunstância como essa. O cotidiano se transforma numa cascata de tragédias domésticas. Não bastasse isso, os professores foram castigados com a ausência de uma explicação oficial da Reitoria. E, na falta de uma justificativa oficial, o campus de Canoas se transformou, nas duas primeiras semanas de setembro, num caldeirão de boatos. Os nervos ficaram à flor da pele, e não era para menos. “Em 11 anos trabalhando na Ulbra, foi a primeira vez que aconteceu. Afetou a vida de todos. Contas em débito automático estouraram, cheques pré-datados foram devolvidos e houve gente reclamando que não tinha dinheiro para fazer o rancho no supermercado”, relata uma professora que, por motivos óbvios (a exemplo dos colegas que prestaram depoimento ao Extra Classe), não quer se identificar. “A situação se tornou mais grave à medida em que, para grande parte dos professores, a Ulbra é a única fonte de renda”, acrescenta ela.

Alterações nas relações apontavam uma crise

Paulo César Teixeira

A bem da verdade, os sinais de turbulência na Ulbra já se manifestavam há algum tempo. Na década de 90, a folha era paga no dia 30 de cada mês. Era uma antecipação, já que a convenção coletiva da categoria determina que o pagamento seja feito, no máximo, até o dia 5 (e não no quinto dia útil do mês). A partir de março de 2000, foi possível perceber alterações bruscas na relação da universidade com o quadro docente e funcional, que indicavam dificuldades futuras. Um dos indícios foi o enxugamento de gastos que afetava diretamente o professor. No ano passado, por exemplo, uma grande parcela teve a carga horária reduzida, com a conseqüente diminuição salarial. O episódio resultou numa ação coletiva impetrada pelo Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS), que está em tramitação na Justiça do Trabalho de Canoas. No início de 2001, a Ulbra surpreendeu o quadro docente com a redução dos descontos concedidos na taxa de matrícula para os filhos dos professores. Foi outra atitude de pouca amplitude dentro de uma suposta política de redução de gastos. Para a Ulbra, é uma economia insignificante. Para os professores, um peso a mais no orçamento apertado de cada mês.

Mas, bem ou mal, a série de medidas que atingia diretamente os professores apontava a existência de problemas financeiros, que acabaram se confirmando. Nos últimos meses, os salários passaram a ser depositados somente no dia 5, já perto da meia-noite, quase no dia 6, o que causava apreensão aos professores, na medida em que os valores custavam a aparecer nos extratos bancários. Finalmente, o não-pagamento em dia do salário de agosto trouxe à tona as dificuldades de caixa da Ulbra. Diante do fato, o Sinpro/RS tomou imediatamente a iniciativa de solicitar uma reunião com os representantes da instituição, com o objetivo de resolver o impasse e garantir o pagamento da multa resultante do atraso – até o sexto dia, ela é de 05% ao dia; a partir do sétimo dia de atraso, fixa-se em 10%. Demonstrada a ineficácia da pressão política, o Sinpro/RS entrou com ação de cumprimento na 3a Vara da Justiça do Trabalho, em Canoas, acompanhada do pedido de antecipação de tutela. Na prática, se acatada, a medida judicial asseguraria o imediato pagamento dos salários e também da multa. O juiz Luiz Henzel marcou a audiência inaugural do processo para o dia 15 de outubro, além de dar um prazo de cinco dias para que a Ulbra apresentasse suas justificativas. Devido à lentidão da Justiça do Trabalho em notificar a universidade, o prazo acabou na realidade se alargando para dez dias e se revelou inócuo, uma vez que, ao fim dele, os salários já estavam na conta dos professores. Permanece, entretanto, a demanda judicial para o pagamento da multa.

Procurada pela reportagem do Extra Classe, através de sua assessoria de imprensa, a Ulbra não quis se pronunciar. Em meio à crise, a única atitude tomada pela universidade, no sentido de prestar um esclarecimento ao corpo docente, foi enviar um coordenador de curso a cada prédio do campus de Canoas, para anunciar que o débito seria quitado (com a multa) no dia seguinte, promessa que, na ocasião, não se cumpriu. Outra promessa dada pelos coordenadores era a de que o Banco do Brasil cobriria os cheques devolvidos. No vácuo da indignação e da falta de respostas, os rumores proliferaram. Um deles dava conta de que, para estar apta a ser reavaliada pelo MEC, que está para recredenciar as universidades do país, a Ulbra tivera que quitar dívidas de longa data com a Previdência Social, o que consumira os recursos disponíveis para pagar a folha. Outro boato era o de que a universidade estaria endividada por força dos gastos na compra de equipamentos do novo hospital.

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Toneladas de equipamentos importados

Paulo César Teixeira

No início de 2001, desembarcaram no aeroporto Salgado Filho 74 toneladas de equipamentos hospitalares, procedentes de Miami (EUA). Foi a operação de maior volume já realizada no aeroporto da capital gaúcha de uma só vez, alardeada com pompa em reportagens nos principais jornais do Estado. O transporte até a aduaneira de Novo Hamburgo foi feito por 12 carretas. Os aparelhos representam o que há de mais avançado em diagnóstico por imagem, radiologia convencional, tomografia computadorizada, ressonância magnética e hemodinâmica. Vieram ainda completas Unidades de Tratamento Intensivo, além de computadores. “Alguns diziam que parte dos equipamentos estava retida na Alfândega e era preciso desembolsar vultosa soma para liberá-la, sendo assim explicado o atraso dos salários”, informa outro professor. O investimento no hospital, apenas no que diz respeito à aquisição de equipamentos, chega a US$ 34 milhões.

Os recursos despejados em tecnologia abrangem ainda um dos mais completos laboratórios de robótica do planeta, montado pela empresa Eshed Robotec. O LABCIM (Laboratório de Manufatura Integrada por Computador) começou a funcionar no prédio 12 do campus de Canoas, no início do segundo semestre deste ano. Está disponível a 500 alunos de Eletrônica, Desenho Industrial e engenharias Mecânica e Elétrica, entre outros. Segundo o Jornal da Ulbra, é composto por um sistema de manufatura flexível totalmente controlado por computadores conectados em rede e assistidos por softwares específicos. Coisa de Primeiro Mundo.

Hospital no campus central será inaugurado em breve

Foto: René Cabrales

Hospital no campus central
será inaugurado em breve

Foto: René Cabrales

O costume de propagar aos quatro ventos os investimentos que faz – a Ulbra é uma das universidades privadas que mais gasta em propaganda, patrocinando, por exemplo, o caderno de Vestibular e o Guia de Profissões, de Zero Hora –, às vezes, revela-se um tiro que sai pela culatra. Quando os professores amargavam a incerteza da data em que os salários seriam postos em dia, informações divulgadas na imprensa davam como muito adiantadas as negociações para que a Ulbra passasse a patrocinar o astro Carlão, do vôlei de praia. A contratação estaria inserida no ambicioso projeto olímpico da universidade. A infeliz coincidência causou revolta nos corredores do campus de Canoas. “Especulava-se que Carlão seria contratado por R$ 30 mil mensais. Não entro no mérito se é justo ou não um esportista ganhar muito mais do que um educador. A questão é outra: pagar em dia o salário é uma prioridade óbvia”, diz um professor.

 

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