GERAL

Direito não se negocia

César Fraga / Publicado em 19 de novembro de 2001

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No início do mês de outubro o Governo Federal encaminhou ao Congresso uma proposta de mudança na legislação trabalhista brasileira. A proposta prevê livre negociação entre patrões e empregados e cria uma espécie de flexibilização na CLT. O texto, obviamente, é defendido pelo ministro do Trabalho Francisco Dornelles que espera a aprovação ainda para este ano. Os congressistas de oposição querem empurrar a discussão do tema para 2002. A verdade é que o assunto é polêmico e ainda deve gerar muito debate. O Extra Classe ouviu o presidente Nacional da CUT, João Felício, que explica de forma bastante didática os perigos que os trabalhadores estão correndo em caso de aprovação deste projeto.

Extra Classe – O que pensa a CUT sobre as mudanças propostas pelo Governo Federal que alteram a CLT?
João Felício
– Na verdade, já faz alguns anos que o governo tenta mudar a legislação trabalhista, especialmente o que diz respeito aos direitos do trabalhador. Já foi assim com a previdência, com a reforma administrativa, contrato temporário etc. Também é assim com a chamada reforma do Estado e outras reformas. Algumas delas não passam por causa da resistência que enfrentam dos movimentos sindicais, principalmente a CUT e seus sindicatos filiados para que não haja perda de direitos ou flexibilização das leis que os garantem.

Algumas eles conseguiram mudar, especialmente com o apoio da Força Sindical e da Central Sindical, esta última apóia a imensa maioria dos projetos que o governo tem apresentado.

Eles conseguiram implementar o contrato temporário. Há pouco tempo queriam ter alterado o artigo (7) totalmente, isto é, acabar com os direitos do artigo (7).

EC – Qual a essência das intenções do governo?
Felício
– O artigo (7) da Constituição que é combinado com o artigo (618) garante o 13º salário, o Fundo de Garantia, o final-de-semana remunerado, o pagamento em dobro da hora extra, que são os direitos mais básicos. Em outras palavras: quem quisesse garantir esses direitos, que fosse negociar com os patrões. Eles não conseguiram . O que eles fizeram agora? Criaram um texto, um dispositivo acoplado a este artigo (618) que admite a possibilidade de flexibilizar a aplicação do direito. Eles não acabam com o direito diretamente, mas admitem a flexibilização dele, isto é, flexibilização na aplicação dele.

EC – O que essa flexibilização pode acarretar?
Felício
– O que pode ocorrer é flexibilização na aplicação do direito, o que dá ao dirigente sindical o duvidoso direito de negociar o que está escrito na lei.

EC – Dê um exemplo:
Felício
– Então, vamos pegar o exemplo do 13º salário. Hoje ele tem de ser pago, no máximo, em duas parcelas, certo? Como nós estamos numa conjuntura difícil, os patrões têm oferecido baixos reajustes, alguns reajustes zero, outros reajustes muito baixos. Você sabe o que pode ocorrer? O patrão chega para o empregado e diz o seguinte: ‘Olha, eu não vou dar reajuste nenhum na sua data base, mas o senhor aceita antecipar seu 13º já, o do ano que vem, em suaves prestações mensais?” Entendeu? Em suaves prestações mensais, um doze avos ao mês. É óbvio que o empregado vai aceitar: “Está bom, né? Já que eu vou ter reajuste zero, pelo menos eu acabo recebendo o 13ª antecipado”, vai pensar. Isso é uma forma de subsidiar reajuste pelo 13º, aí ficaria escrito no contrato lá, a antecipação do 13º em doze parcelas. Isso, para nós, seria muito ruim, péssimo. Você acaba não tendo o reajuste e acaba flexibilizando. Mas este princípio serve para qualquer outro direito: licença à gestante, em vez de dar quatro meses consecutivos, dá dois meses agora, um mês depois e outro mês depois. Você vai flexibilizando a aplicação do direito. É um caminho para no futuro acabar com ele.

EC – E a negociação com os sindicatos como fica?
Felício
– Vou responder com outro exemplo: o patrão chega para o dirigente sindical e diz “ou você concorda com a flexibilização do direito tal ou eu mando um número x de funcionários embora”. Ele vai usar a força política dele. Aí ele manda embora devido à situação econômica da empresa, que não está vendendo nada. Mas ele vai usar o argumento da flexibilização de direito para dizer que vai mandar embora. É a chantagem permanente que vai ser usada. A chantagem agora vai ser a lógica da negociação por parte do empresariado, não todos os empresários, (partindo do princípio de que os empresários não são iguais), mas por parte daqueles empresários mais reacionários, conservadores, etc.. Eles vão usar esse argumento para acabar com os direitos. Num país onde até hoje tem o trabalho forçoso, entendeu? Quase trabalho escravo num país onde tem esse tipo de gente, tem gente para flexibilizar direitos também.

EC – Então a não aceitação por parte da CUT é uma questão de princípio?
Felício
– Nós nunca admitimos aqui na CUT, e isso é um princípio que nós temos: direito não se negocia. Cumpre-se a lei. Sindicato que tiver força política amplia direito. Como é a lei hoje? A lei hoje é muito clara: você tem os direitos consolidados aí, artigo (7), CLT (um monte de coisas), mas têm sindicatos que acabam numa mesa de negociação, ampliando e conquistando novos direitos: formação profissional, pagamento maior pela hora extra, participação nos resultados… A lei não impede que você, num processo de negociação, amplie o que diz o artigo (7). Portanto, não tem essa história, o argumento que o ministro está usando de que quer fortalecer os sindicatos e valorizar a negociação em detrimento da legislação não cola, ao contrário, isso vai enfraquecer.

EC – Central Sindical e a Força Sindical acreditam que se essas mudanças fossem mais amplas se fortaleceriam os sindicatos, isso é verdade?
Felício
– Não, não concordamos. Mesmo que venha um dia o contrato coletivo de trabalho, que a CUT defende, assim como o reconhecimento legal das centrais sindicais, que a CUT também defende desde a sua origem. Mesmo que venha o reconhecimento dos delegados sindicais, dos direitos que nós temos, nós nunca vamos abrir mão. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A Força Sindical tem uma mania de querer colocar determinadas coisas, para negociar o que ela quer, para poder justificar para a sociedade “olha, eu perdi isso, mas eu ganhei aquilo”. Por isso que nós não concordamos…

EC – Existe a tese de que a legislação original não seria eliminada, porque o que seria negociado seriam apenas garantias constitucionais. Como é que fica isso na prática?
Felício
– Com esta proposta, não se acaba com os direitos constitucionais, você acaba flexibilizando a aplicação deles. São aqueles exemplos que eu estava dando, sobre 13º salário e tudo o mais.

EC – Isso significa perda real de direitos?
Felício
– Pior. Quando você flexibiliza a aplicação do direito, você perde recursos, perde dinheiro e esse dinheiro você está repassando para os empresários. Quando você perde direito, alguém fica com o teu de direito na forma de recursos financeiros.

EC – Então é quase como se o trabalhador se responsabilizasse pelo ônus da crise?
Felício
– É, você está transferindo recursos teus para os empresários como se você fosse o responsável pela crise existente no Brasil. É novamente aquele exemplo que eu te dei do 13º salário. O patrão tinha intenção de dar o reajuste, ele não dá o reajuste e antecipa o 13º. Você perde o reajuste, entendeu? Você fica com o seu poder de compra reduzido. Quando você substitui a licença gestante por uma outra coisa, por um acordo efetivado e tal, você perde um direito histórico que a mulher tem e que talvez seja um dos direitos mais universais que existe na humanidade.

EC – Qual o principal argumento para não aceitar esta proposta?
Felício
– Há um argumento muito forte, que nós temos usado que é o seguinte: quando você tem a lei que garante um conjunto de direitos, isso serve para o Brasil numa situação financeira melhor que são os estados mais industrializados, onde a população tem um poder aquisitivo melhor, os sindicatos são grandes, etc., etc., mas também garante esse direito para as regiões mais pobres do país. Com baixa industrialização, com poder aquisitivo menor e sindicatos menores submetidos a uma opressão muito maior, a lei obriga o patrão deste lugar a pagar. Quando você flexibiliza a aplicação, quem vai perder é o mais pobre.

EC – Como fica a questão da concentração de renda?
Felício
– Aí tem uma concentração de renda até entre as categorias. Quer dizer, aqueles mais organizados, mais fortes, mais ousados que têm uma organização sindical muito mais antiga, esses não vão perder rapidamente. Mas um outro pobre coitado, miserável, um pequeno sindicato, sai perdendo de cara, porque não tem força política para manter. Então, é uma forma de concentração de renda até entre os trabalhadores. Agora, a concentração de renda maior é a transferência de recursos nossos para os empresários. Os empresários estão querendo responsabilizar o altíssimo desemprego existente no Brasil com a existência de direitos trabalhistas.

EC – E essa iniciativa do governo, ela está mais para looby do empresariado ou uma forma de o próprio governo se proteger?
Felício
– São as duas coisas. De um lado realmente existe o lobby dos empresários. Há muito tempo o empresariado reivindica uma redução dos direitos nossos. Eles querem acabar com os direitos. Gozado, tem um exemplo típico bastante interessante: os empresários têm dois e meio por cento sobre a folha de pagamento da empresa que vai para sustentar o chamado sistema S – que são Sesi, Senai e Senac que pertencem às confederações e federações empresariais. Eu nunca vi um empresário propor acabar com esses dois e meio por cento. E é uma verba pública, é uma verba que não pertence aos empresários, porque não são eles que pagam, é embutido na folha que eles tiram do produto e diminui o lucro deles. Eu nunca vi eles proporem acabar com isso, eles só propõem acabar com o direito nosso.

EC – Por que isso?
Felício
– Porque eu acho que os empresários do chamado Sistema S, que é um projeto deles – Sesi Senac e Senai –, eles querem continuar administrando sozinhos esses recursos e não querem que haja uma administração transparente nem dar satisfação para a sociedade. A CUT, há muitos anos, reivindica a participação dela na fiscalização, no debate, sobre a metodologia dos recursos, que tipo de ênfase tem de ser dada assim como a própria aplicação dos recursos. Eles nunca admitiram a nossa participação. Por quê? Porque é luta mesmo, é luta de um setor que quer avançar sobre os recur sos do outro setor. É a velha luta que sempre existiu.

EC – Existe a possibilidade real dessas mudanças passarem no Congresso?
Felício
– Eu duvido que os deputados aprovem um projeto dessa natureza no Congresso Nacional num ano como esse que estamos vivendo e até mesmo no ano que vem. Em 2002 tem eleição. O deputado que votar num projeto dessa natureza com certeza terá divulgados o nome e a fotografia do cidadão. Porque não é possível. A conjuntura não está para ficar debatendo flexibilização do direito. A conjuntura está para debater aumento salarial e garantia de emprego e não retirada de direitos. É uma discussão extemporânea, fora da conjuntura, porque é querer se aproveitar de um momento difícil, de uma conjuntura recessiva, para avançar sobre conquistas históricas – intenção que o governo tem já há muito tempo, que não teve coragem de fazer até agora, mas que vem com toda a força nesse momento. Justamente numa conjuntura mais difícil, de mais desemprego, de mais recessão, com o argumento de que com isso vai aumentar a possibilidade de emprego. Mentira. O contrato temporário veio e o desemprego continua crescendo. Todos os países onde houve flexibilização de direitos não aumentaram as possibilidades de emprego, ao contrário, o desemprego continua crescendo.

EC – Quer dizer que essa medida agravaria ainda mais a crise?
Felício
– Claro, isso só agrava a crise. Todas as vezes que você retira poder de compra, retira direitos, significa menos dinheiro no bolso do cidadão e menos dinheiro. Se compra menos, comprando menos, a indústria produz menos e o comércio vende menos. É isso.

EC – Existem técnicos, como o professor José Pastori da Usp, que defendem a proposta do governo. Como o senhor analisa isso?
Felício
– Olha, o professor José Pastori apóia todos os projetos do governo que procuram flexibilizar direitos e transferir os recursos dos trabalhadores para os empresários. Todos. Se você pegar ao longo da história as teses defendidas pelo José Pastori, todas elas caminham nessa direção. Assim que surge um projeto que flexibiliza direitos e retira direitos, pode ter certeza que José Pastori está apoiando. É a concepção que ele tem de achar que a existência de direitos no Brasil é exagerada. Sabe o que eu disse para um jornalista esses dias, o jornalista disse assim “é mas nos EUA, na Itália, na Alemanha, na França e no Japão não têm tantos direitos assim, você não acha que o trabalhador brasileiro também poderia ter menos direitos?”. Eu disse o seguinte: “Olha, o dia que no Brasil tivermos um sistema educacional tão eficiente como nos outros países, um sistema de saúde tão eficiente, um salário como eles ganham, uma proteção social ao desempregado, etc., etc., aí nós vamos conversar”. Agora, querer trocar um pássaro na mão por dois voando “ah, vamos flexibilizar para que um dia nós possamos ter um poder de compra melhor”, mentira. Mesmo tendo um um poder de compra melhor, nós não vamos concordar, mas a gente vai discutir. Agora, com essa situação em que nós nos encontramos… nem pensar.

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EC – O que existe em comum entre a reforma da previdência, a reforma administrativa e a implantação do contrato temporário? Todas essas iniciativas são do governo FHC. O que existe de comum em todas essas propostas, qual o objetivo político?
Felício
– Existe uma estratégia. Uma das lógicas da concepção de uma política neoliberal é o enfraquecimento da organização sindical, a retirada de direitos, diminuir o papel do estado na vida dos cidadãos e considerar que o mercado domina tudo.O mercado que resolve, que estabelece as coisas. Esta concepção deixa o movimento sindical jogado às feras. Eles que resolvam os problemas deles. A idéia, portanto, é acabar com qualquer legislação feita pelo estado para proteger a vida do cidadão. Essa é a lógica que permanece em tudo, assim foi na reforma da Previdência, na implantação do contrato temporário e na reforma administrativa . Todas as reformas seguiram essa lógica. Como na concepção deles, o mercado resolve tudo, os conflitos – capital e trabalho – seguem nessa mesma direção. Em qualquer conflito, quem tiver mais força prevalece, não precisa de lei para proteger o mais fraco. O mais fraco que vai lá disputar com o mais forte, mas só se ele tiver força política para fazer prevalecer sua opinião.

EC – Qual é a diferença entre a livre negociação entre os trabalhadores representados pelo sindicato e os empregadores e a atual proposta do governo?
Felício
– É uma diferença muito grande. A CUT sempre defendeu a livre negociação entre o capital e o trabalho, como uma forma de fortalecimento dos sindicatos, mas sempre partindo de um patamar mínimo. Qual é o patamar mínimo? É aquilo que diz a lei. Acima disso, livre negociação. Aquilo que eu estava dizendo, quem tem força política, com a livre negociação, amplia direitos, conquista mais. Mas o patamar mínimo não pode ser alterado. É preciso proteger justamente o mais fraco, aquelas categorias mais fragmentadas e com sindicatos menores. A livre negociação, que a CUT defende, vai nessa direção.

O sonho nosso é um dia ter nesse país um contrato livre de trabalho, de abrangência nacional, mas nós não temos um contrato livre de trabalho. Nem as centrais sindicais têm um reconhecimento legal. Mesmo se um dia nós tivermos isso, acabando com o poder normativo da Justiça do Trabalho, alguns direitos têm de permanecer, garantidos pela lei, para proteger os mais fracos, como eu estava dizendo. Quais são os direitos? São esses que estão na lei, aí. Nunca a CUT vai admitir a perda de 13º, licença gestante, fundo de garantia. Isso nós não abrimos mão, nenhum sindicato nosso. A orientação nossa é sequer admitir a possibilidade de flexibilizar alguns desses direitos. Isso é um princípio que nós defendemos e ao qual somos irredutíveis.

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