GERAL

Informação é arma da guerra

Renato Dalto / Publicado em 19 de novembro de 2001

Na noite de 7 de outubro de 2001, 50 mísseis disparados pelo exército norte-americano caíram sobre as cidades de Cabul, Jalalabad e Kandahar, no Afeganistão. Mas a versão oficial vinha permeada por um eufemismo. Assim que os ataques começaram, o presidente George W. Bush prometeu jogar dos aviões alimentos e remédios “para os sofridos e famintos homens, mulheres e crianças do Afeganistão”. Era uma “ajuda humanitária” depois do bombardeio.

Os mísseis zumbiam no ar e as palavras rebuscavam nomes pomposos. A operação levava o nome de “liberdade duradoura”, uma retaliação ao terrorismo. Os EUA contavam mais de cinco mil vítimas do maior atentado terrorista da história. A guerra era a vingança. E a comoção mundial, aliada emocional de primeira hora.

Foram 27 os dias em que se prepararam bombas, palavras, ameaças e a ação militar. A guerra estava anunciada desde 11 de setembro, quando três aviões pilotados por terroristas destruíram os símbolos do capital financeiro – as duas torres do World Trade Center, no coração de New York – e uma parte do Pentágono, totem do poderio militar norte-americano. A grande pátria ferida mergulhava numa grande conclamação. Por exemplo: duas grandes revistas norte-americanas, a Time e a Fox, parecem até ter combinado suas capas. A Time estampava : “Uma Nação Indivisível” e a Fox, “América Unida”.

Os EUA começaram a embalar o mundo com seu hino de batalha. “O atentado foi numa terça-feira e no sábado, num show para arrecadar fundos para as vítimas, estavam todos os ícones pacifistas, Willy Nelson, Neil Young, Sting, U2, Mohamed Ali. Aquilo era um canto de guerra” interpreta Delmo Moreira, editor executivo da revista Época.

O saldo das guerras costuma se traduzir em perversas contabilidades de destruição: milhares de mortos, cidades destruídas, crimes hediondos que só aparecem bem depois na história recontada. Mas uma guerra muitas vezes se decide longe dos campos de batalha. A arma é a informação. Ou, talvez, o primeiro alvo, ou pior, a primeira baixa. “Em tempo de guerra, a primeira vítima é a verdade”. A frase, do senador norte-americano Hiram Johnson ( 1866 – 1945), refere-se ainda a 1917, quando os Estados Unidos se preparavam para entrar na Primeira Guerra Mundial. É quando a versão dá ao fato as cores que mais convêm.

Fatalismo nos dois lados do front

A guerra contra o Afeganistão, embalada pelo canto de guerra da América ofendida, traz como arranjo uma antiga ladainha carregada de fatalismo religioso: a luta do bem contra o mal. E cada lado elege o inferno como alvo. Para os Estados Unidos, o satã atende por Osama Bin Laden, líder do grupo fundamentalista Al Qaeda e provável mentor dos atentados que abalaram New York e o mundo. Para os fundamentalistas, os EUA representam o grande satã.

TV estatal árabe fura a filtragem de informação e mostra o lado indigesto do conflito

Reuters

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TV estatal árabe fura a filtragem de informação e mostra o lado indigesto do conflito

Em meio a essa antiga dicotomia, o mundo está mais ágil, a informação circula mais rápido, a cultura da tragédia como espetáculo é uma regra seguida à risca pelos meios de comunicação. Tanto que o planeta assistiu a quase toda a destruição das torres do World Trade Center. Quando o segundo avião se chocou contra a segunda torre, as grandes redes americanas comandavam uma rede mundial transmitindo o grande incêndio. Redes on line, satélites, notícias instantâneas, comunicação via internet, estabelecem diferenças fundamentais na guerra de informações. Há cada vez mais versões e opiniões em torno de cada fato.

Um fato novo nesta guerra é a Al-Jazeera, canal estatal do Catar, assistida por 40 milhões de muçulmanos, e que vem mostrando o conflito cumprindo a regra básica de ouvir os dois lados. Foi para a Al-Jazeera que chegou a fita com o pronunciamento de Osama Bin Laden no dia em que a guerra começou. As imagens correram o mundo e aumentaram o pânico nos Estados Unidos. Tanto que a chefe do Conselho de Segurança Nacional, Condolezza Rice, pediu para as imagens serem exibidas com cautela, pois poderiam estar sendo passados alguns códigos para o mundo muçulmano. “
A gente sabe que, na prática, a Al-Jazeera pode ser acessada direto, via satélite ou pela Internet, mas as TVs americanas atenderam ao pedido de prudência, apesar do ridículo”, opina Moreira.

A Al-Jazeera tem mais acesso à área do conflito, o que vem incomodando a poderosa CNN. “Esta não é uma guerra para televisão”, disse o jornalista Aron Brown, da CNN. Era uma explicação para a dificuldade de conseguir imagens no campo de guerra, feitas quase sempre em videophone e quase irreconhecíveis.

A violência em dois dígitos

O jornalista Carlos Alberto Kolecza cobriu a guerra do Vietnã, um conflito convencional, com batalhas corpo a corpo e táticas de guerrilha. De longe, vem assistindo agora um conflito que, na verdade, começa bem antes de qualquer combate. “Essa revolução tecnológica, digital, a serviço do capitalismo financeiro, transforma o dinheiro em informação. Na Bolsa de Valores não se negocia moeda, mas informação financeirizada. Pois bem, no dia 11 de setembro, uma força inconformada com as decisões políticas emanadas da cabine de comando do capitalismo financeiro, transforma a violência em informação”, analisa Kolecza. É a resposta ao que o jornalista Ignácio Ramonet, do Le Monde Diplomatique, chama de “Globalitarismo”. Ou seja, a ditadura da globalização.

Kolecza: a revolução tecnológica transforma dinheiro em informação

Foto: René Cabrales

Kolecza: a revolução tecnológica
transforma dinheiro em informação

Foto: René Cabrales

O que nasce desse choque da informação transformada em terror é um mundo atônito, com novas notícias e ameaças a cada dia. Do atentado veio a guerra, da guerra, a ameaça do Antraz e outros temores respingando. O conflito que vai se estender em direção à Malásia, o temor da ameaça da guerra nuclear. A face bélica da realidade global mostra os dentes. “A guerra é o fruto envenenado da globalização”, conclui Mino Carta em artigo na revista Carta Capital.

Censura e matança pasteurizada

Há uma enorme perplexidade no ar, ao lado de versões contando, cada uma a seu modo, os lances de batalha. O fotógrafo Hélio Campos Mello, diretor de redação da Isto É, cobriu a Guerra do Golfo, em 1991, pela Agência Estado. Ao entrar no Iraque, no dia 2 de março, ao lado do repórter William Waack, foi preso. Solto dez dias depois, com os filmes, vendeu fotos para o mundo todo. “Aquilo tudo era um grande videogame, com uma tecnologia impecável, com mísseis inteligentes que atacavam só alvos militares. Quando entrei no Iraque, fotografei uma verdadeira carnificina, com dezenas de mortos na saída do Kuwait, bombardeados por aviões e tropas britânicas”, revela Mello. Era a face proibida da guerra.

“Depois que o conflito começa, a opinião pública vai esquecendo o patriotismo para cair na real”, afirma. A cada guerra, chegam imagens que mudam tendências. Como no Vietnã, com crianças em pânico atingidas pelo gás napalm ou o instante em que o chefe de polícia sul-vietnamita Nguyen Nigoc Loan executa um vietcongue com um tiro na cabeça. A guerra do Iraque trouxe um novo componente para pasteurizar a comoção de uma matança. Na tela da televisão, os mísseis eram apenas pontos luminosos.
Não havia barulho, rosto, sofrimento.

Neste momento, vive-se o medo que pode chegar, singelamente, numa guerra biológica, com uma substância letal chamada antraz. Chegam também outras imagens da guerra, já não tão cirúrgicas, mas explícitas. Crianças mortas com bombas, população em fuga, a miséria medieval de um povo acuado. Também já foi vista pelo mundo a imagem sorridente de um piloto americano comemorando o sucesso do bombardeio. Começam os ataques terrestres no Afeganistão, na expectativa de derrubar o regime Talebã e encontrar Bin Laden. A “Guerra contra o Terror”, como põe a vinheta da TV Globo, pode terminar com um sangrento golpe de estado chamado “liberdade duradoura”.

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O triunfo do medo

A Guerra do Golfo, em 1991, foi um marco na cobertura de conflitos armados. Foi um marco na cobertura jornalísitica a distância. A imagem dos pontos luminosos no céu aboliu as marcas humanas. Falava-se em bombardeios cirúrgicos e era tanta explicação para amenizar os bombardeios que, num determinado momento, chegou a parecer uma guerra sem dor. Viu-se, depois, que não era bem assim.

As guerras têm servido para derrubar ou sustentar governos. A mais patética dos últimos tempos foi a Guerra das Malvinas, ousadia irresponsável dos militares argentinos tentando recuperar uma ilha controlada pelos ingleses. “Os militares estavam quase caindo do poder e tentaram usar o conflito para reacender o patriotismo do povo”, diz Danilo Ucha, que cobriu o episódio para o Jornal Zero Hora. Mas era também um conflito coberto a distância. “Depois do Vietnã, não se viu mais guerra. Nas Malvinas, o navio argentino General Belgrano afundou com 800 jovens, e não há qualquer registro. A guerra do golfo foi mais fechada e essa de agora está mais fechada ainda”, observa.

É uma grande contradição. A informação é instantânea, mas não há rosto, cor ou nome que dimensionem a extensão dos conflitos. Os talebans, que controlam o Afeganistão, mostram a destruição causada pelo bombardeio a jornalistas escolhidos. E os dois lados cantam a supremacia pelo número de baixas do inimigo.

E mesmo um componente novo, como a guerra biológica com o uso do antraz(x), faz da guerra uma ameaça surda, onde um simples envelope carrega o medo. “O terror lida com a fragilidade inerente à espécie. O Antraz não é contagioso, mas o medo sim”, compara Delmo Moreira. E, nesse sentido, expõe uma verdade dura de aceitar, mas real. Ao espalhar o pânico, o terror conquistou sua vitória.

A guerra, entretanto, promete ser longa e se expandir em outras geografias e de formas até agora inimagináveis. Se o inimigo é o terror, não é a luta contra um estado ou um território. Toda informação terá de lidar com o inusitado. É a primeira grande guerra do novo milênio e seus símbolos: a globalização, a internet, o planeta aproximado por tantas diferenças. Uma potência superdesenvolvida em tecnologia de informação e de guerra e um país medieval mergulhado na miséria. E uma grande nuvem de irracionalidade com bombas e bactérias onde ninguém sabe qual será o próximo alvo.

Razão versus maniqueísmo

Foi pela Internet, a grande rede de informação planetária, que circularam textos de escritores contemporâneos recusando a manipulação maniqueísta de que se tratava de uma guerra da luta do bem contra o mal. Um longo texto de um norte-americano, o escritor Gore Vidal, chamou a atenção pela contundência com que toca na ferida da empáfia americana, sua mistura de paranóia e arrogância, seus mananciais de soberba. No artigo “Algo de novo na Terça-feira Negra”, Vidal vai direto na ferida:

“(….) o fato é que não temos o hábito de analisar por que qualquer coisa acontece, a não ser que seja para atribuir a outros a culpa por nossos erros. Num mundo em que o demônio está constantemente à espreita, andando para cima e para baixo e nos atormentando por sermos tão bondosos, nossa imprensa quer que acreditemos que Bin Laden é simplesmente mais uma manifestação do mal puro e simples, de modo que somos obrigados a invocar a cláusula cinco da Otan e detonar todos os diabos que lhe derem abrigo, para ensinar a eles a lição que nós mesmos jamais aprendemos: que na história, assim como na física, não existe ação sem reação”.

Galeano se recusa a aceitar a divisão do mundo proposta por Bush

Foto: René Cabrales

Galeano se recusa a aceitar a
divisão do mundo proposta por Bush

Foto: René Cabrales

O português José Saramago, prêmio Nobel de literatura, preferiu criticar o fatalismo de ambos os lados e atribui às religiões, sem distinção, a raíz de toda intolerância. Saramago denomina de “fator Deus” algo “terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, essa que não respeita senão aquilo em que manda crer, essa que depois de ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta”.

O escritor uruguaio Eduardo Galeano se recusa a aceitar a divisão do mundo proposta pelo presidente George W. Bush. “A situação internacional é muito mais complexa do que pretende a definição primária de Bush, por mais que muitos de seus compatriotas decidam elevá-lo ao pedestal de estadista. E desde já, qualquer cidadão sensato de Washington, Aranjuez, Rawalpindi, Catamarca, Valparaíso, Cidade do Cabo, Cochabamba, Paysandú, Guatemala, Lahore, São Paulo, ou a mais remota aldeia do planeta, tem direito de não se sentir parte de nenhum dos dois lados em que Bush pretende dividir o mundo”.

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