O francês Bernard Charlot é doutor em Ciências da Educação pela Universidade Paris X. É professor-pesquisador na Universidade de Paris VIII e criador e diretor da equipe de formação doutoral que realiza pesquisas sobre Educação, Socialização e Comunidades Locais (ESCOL). Realiza estudos sobre a relação com o saber, relação com a escola e assuntos relacionados à territorialização das políticas educativas. Autor de nove livros e organizador de mais cinco, entre eles três com traduções no Brasil, e outros na Itália, Espanha e Grécia.
Um dos conferencistas convidados para o Fórum Mundial de Educação, em outubro em Porto Alegre, o professor Charlot mantém relações profissionais e pessoais com o Brasil e respondeu a entrevista por telefone, de Cuiabá, onde permaneceu com a família até o final de novembro, retornando depois para Paris, onde reside.
Extra Classe – Há 12 anos o senhor criou na França a ESCOL, uma equipe que realiza, entre outros estudos, a relação com o saber e a relação com a escola. Atualmente quais são as pesquisas que o senhor dirige?
Bernard Charlot – Estamos trabalhando com três questões básicas: qual o sentido para uma criança de ir à escola; qual o sentido de estudar e qual o sentido de aprender, quer na escola quer fora. Não é surpreendente quando um aluno reprova na escola porque não estudou. Então tem que se pensar em outra questão, qual é o sentido para ele de estudar. Porque para o aluno, a idéia de estudar muitas vezes é diferente da idéia do professor.
EC – Quando começou o seu interesse pela questão do ensino para os adolescentes?
Charlot – Eu comecei a pesquisar o jovem na escola já faz tempo, em 76 publiquei um livro muito conhecido no Brasil que se chama a Mistificação Pedagógica (Editora Zahar).
EC – Como o senhor analisa a questão do nascimento de uma sociedade da informação em detrimento de uma sociedade do saber?
Charlot – Estamos entrando na sociedade da informação o que não é a mesma coisa que uma sociedade do saber. A informação é um enunciado, que às vezes pode ser usado para ganhar dinheiro. O saber é um conhecimento que produz sentido no mundo, na vida, nos outros, em mim mesmo. Estamos entrando na sociedade da informação, mas talvez estejamos saindo da sociedade do saber…
EC – Enquanto professor universitário como o senhor analisa a greve nas universidades brasileiras?
Charlot – Não posso analisar, pois sou um estrangeiro no Brasil, mas posso responder fazendo uma comparação entre o que está acontecendo nas universidades francesas e o que está acontecendo nas universidades brasileiras. Em primeiro lugar, temos um apoio forte do Estado. Na França quase não temos universidades particulares, tampouco são católicas. Em segundo lugar, o docente, não apenas o universitário, pode ter uma dedicação verdadeira. Ele trabalha apenas para a escola, não trabalha em outros lugares. Quando o docente tem que ficar correndo para ganhar dinheiro, ele não tem tempo para preparar as aulas, para refletir, para ler, e isso é fundamental para ele.
EC – Dê um Exemplo:
Charlot – Na França, um casal de docentes da escola pública não é rico, mas ele pode comprar um apartamento, pode trocar de carro a cada cinco anos. Eles não têm problema com o ensino dos filhos, porque lá a escola pública é boa, também não têm problema com as questões de saúde, porque lá a saúde é de graça. O docente não tem problemas com questões da sobrevivência. Também há outra diferença que é com relação às greves. Na França, quando um funcionário faz greve, ele perde o seu salário e não tem possibilidade de recuperação. O que está acontecendo lá é que o sindicato paralisa um dia para avisar o governo de que há um problema e que tem que se negociar. Se o governo não responder, são feitos dois ou três dias de greve, mas os funcionários não ficam muito tempo em greve, não só porque vão perder o salário, e, por outro lado, há um sistema de negociação, de expectativa de construir um consenso, um diálogo.
Diferenças e semelhanças
“A escola desconhece ou se recusa a levar em conta as especificidades culturais dos alunos. Essa situação é anterior à globalização, que não é a culpada por tudo o que não vai bem em nossa sociedade ou em nossa escolas. Culturalmente, a escola é o mundo do homem branco, macho (embora a maioria dos professores seja de mulheres), de classe média.”
“ O mal de que sofre o descendente de argelinos na França ou o descendente de escravos negros no Brasil não é que não reconhece sua diferença, mas que não reconhece sua diferença e, ao mesmo tempo, sua semelhança.”
Mundialização – solidariedade
“É preciso entender que não há hoje duas opções (a favor da ou contra a mundialização), mas
três: defender o mundo atual, o recente, um mundo em que cada um se organiza no seu âmbito, defendendo seus interesses, sem se preocupar muito com o que acontece em outros lugares; aceitar a globalização neoliberal que não é uma mundialização;
mobilizar-se para construir um mundo solidário, uma mundialização-solidariedade.”
Cultura e resistência
“É preciso ter cuidado ao relacionar a educação à comunidade, para não adaptar demais o jovem a uma situação de opressão, de sobrevida. Para que o jovem desenvolva uma cultura de resistência, de luta, de mudança, é preciso que a escola lhe permita compreender que a vida é diferente em outras classes sociais e em outros lugares, que já foi diferente no passado e que pode ser diferente amanhã.”
“A escola deve levar em conta a cultura da comunidade, mas deve também ampliar o mundo da criança além da comunidade. Claro, isso pode levar também a que a criança saia da comunidade em vez de lutar pela comunidade. Mas é preciso aceitar esse risco: o direito à diferença é um direito e não uma obrigação, e o indivíduo tem também o direito de se afirmar como diferente do grupo no qual nasceu.”
EC – O mundo inteiro vive uma lógica de desenvolvimento econômico. Quais são, na sua opinião, os reflexos positivos e negativos quando esta lógica está voltada para a educação?
Charlot – Por um lado, essa questão de ligar a educação ao desenvolvimento econômico possibilitou na França que camadas populares pudessem ingressar na escola na década de 60. Agora estamos pensando em elevar 80% de cada geração até o que seria aqui o fim do ensino médio; ainda não conseguimos, mas já temos 62% de uma geração que atinge o fim do ensino médio, mais aproximadamente 30% que não o termina, mas que recebe uma educação profissional do sistema escolar. Restam 10% que quase é a mesma porcentagem dos países do chamado Primeiro Mundo que estão com muitos problemas.
EC – Massificar é democratizar a educação? Como se dá este debate em seu país e o que o senhor pensa a respeito?
Charlot – Existe na França um debate importante para saber se esse movimento deve ser chamado de democratização ou de massificação. É certo que, por um lado, houve uma massificação, mas a questão da democratização é mais complexa. É esse também o problema no Brasil porque hoje em dia o Brasil consegue escolarizar muitos jovens, acho que 90% da educação fundamental, mas depois aparecem muitos problemas, porque não basta apenas receber os jovens nas escolas porque passados dois ou três anos esses jovens ainda não sabem ler. A questão importante é como formar os alunos que as escolas estão recebendo. Há ainda uma outra questão que é um efeito profundamente negativo: a idéia de que o aluno vai à escola apenas para ter mais tarde um bom emprego. Isso é uma catástrofe na França porque a missão, a função da escola é tentar entender o mundo, adquirir o saber e, de uma forma mais geral, se formar. Na França está se criando a lógica da carreira profissional e o jovem não está mais pensando em apropriar-se do saber, do sentido. Durante minha conferência em Porto Alegre, falei sobre um jovem que respondeu que a poesia é para quem quer ser poeta mais tarde, também encontramos vários jovens que nos disseram que estudar História deveria ser somente para os futuros professores de História. Isso é muito grave.
EC – O senhor usou o termo mundialização-solidariedade durante a sua conferência. O que é o projeto mundialização-soliedariedade na Educação e de que forma a educação pode contribuir para a construção dessa mundialização-soliedariedade?
Charlot – Eu destaquei que o desafio não é escolher entre mundializar e não-mundializar, porque o mundo já se abriu, mais do que antes, e não se pode voltar atrás. Não estou a fim de defender o mundo atual. Fico muito preocupado porque muitas vezes ouço discursos contra a globalização, de pessoas que estão interessadas em defender seus próprios interesses, seus privilégios, bem tranqüilos num espaço pequeno onde são dominantes, ou estão reclamando porque não podem mais decidir como chefes e não é isso que estou defendendo. Por outro lado, gostaria de ressaltar que a globalização neoliberal não é uma mundialização. Essa que esta aí é a globalização que rege o dinheiro e o poder que deixa fora os países mais pobres do mundo> Sou a favor de uma mundialização, mas com solidariedade, a favor de um mundo em que as pessoas possam viver as suas diferenças. Não posso dar uma receita, mas sugerir uma perspectiva mais universalista. A mundialização-solidariedade implica o respeito das diferenças culturais: pode se entrar na cultura apenas entrando em uma cultura, diferente de outras culturas. Ou ainda: constituo minha cultura na base das relações com o mundo, com os outros e comigo mesmo que estruturam meu meio de vida.
EC – Como se evita que o respeito excessivo a essas diferenças não se transforme em isolamento, como é visto em alguns países, por motivos étnicos ou religiosos?
Charlot – A mundialização-solidariedade implica também, para que o respeito às diferenças culturais não seja justamente um isolamento, que a cultura de meu grupo seja sempre questionada em relação à universalidade do homem e à singularidade do indivíduo. Esse princípio não é meramente abstrato, tem conseqüências muito concretas. Por exemplo, posso entender que há diferenças culturais, mas isso não faz eu aceitar que os homens tranquem suas mulheres atrás de muros ou sob véus. Pode-se falar em universalismo quantas vezes quiser, mas isso não fará eu recusar uma mulher que use um pedaço de tecido na cabeça, se ela escolheu assim para afirmar sua identidade étnica ou religiosa. Friso: se ela o escolheu, se foi ela que escolheu e se ela tinha escolha. Resumindo, a mundialização-solidariedade implica que eu reconheça o outro em sua diferença cultural, em sua identidade comigo mesmo e em sua singularidade de indivíduo.
Cristina Lima/Veraz
Cristina Lima/Veraz