O ensino jurídico está em crise. Cada vez mais se formam profissionais do direito sem as mínimas condições para o exercício das habilidades em relação às quais o curso propõe-se a capacitar. Em razão disso, fala-se, dimensionando-se a crise, que o “os cursos jurídicos estão falidos”.1
Em face de tais considerações, seria de perguntar-se, qual a razão dessa crise e o que é – se é que é – possível fazer para resolvê-la?
Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que a sociedade contemporânea organiza-se e vê o mundo com olhos diferentes daqueles em relação aos quais acostumamo-nos a trabalhar. Durante cerca de três mil anos, o homem desenvolveu habilidades para compreender o mundo a partir de idéias e conceitos talhados e registrados pela escrita, matéria-prima para o desenvolvimento do saber. Através dela foi possível descrever e visualizar o mundo para crítica e reformulação do conhecimento. Conhecer era, ao mesmo tempo, ter noção dessas idéias, desenvolver a capacidade de criticá-las.
Com a revolução tecnológica isso tudo mudou. Vivemos num mundo em que o saber não é mais uma apreensão do conhecimento reflexivo e abstrato. Para o mundo contemporâneo o conhecimento é quase sempre visual e concreto (embora essa realidade possa ser, também, virtual).
A televisão, o cinema e, mais recentemente, a internet permitem que quase tudo possa ser visto. Idéias que, outrora somente eram possíveis ser demonstradas mediante esforço de abstração, hoje podem ser facilmente visualizadas pelas pessoas. Tudo é passível de conhecimento através da visão, provavelmente um dos sentidos mais antigos do homem.
Essa revolução propiciou a onipresença de um dos principais instrumentos dessa nova forma de conhecimento: a televisão. Ela invadiu todos os lares, conquistou pessoas, tomando-lhes quase todo o seu tempo disponível. Tudo é objeto das câmaras de TV. Geografia, Religião, História, Política, etc e o conhecimento desenvolvido pela leitura pela abstração cederam espaço a mensagens cujos textos e conclusões são hermeticamente fechados por técnicas de marketing, que privilegiam a mensagem final. A leitura foi substituída por audiovisuais, quase sempre desprovidos de espaço para a crítica e reflexão (embora tragam, invariavelmente, crítica e conclusão).
Esse meio de aquisição do conhecimento possibilitou uma revolução na área das Ciências Exatas ao permitir a visualização de fenômenos que outrora somente era possível mediante experimentação. Quase tudo pode ser representado por esquemas que podem ser vistos: do big-bang à simulação dos efeitos decorrentes de uma guerra nuclear.
Todavia para a compreensão de matérias afetas às áreas das Ciências Humanas e Sociais (Filosofia, Antropologia, Sociologia, Direito, etc) essa forma de assimilação do conhecimento não consegue responder às exigências dessas disciplinas. A base teórica do direito está alicerçada no mundo do dever-ser, ou seja, num universo construído mediante abstrações, com a finalidade, entre outras, de regular a convivência humana.
Para que seja possível o estudo do direito, é necessário compreender suas teorias, sua linguagem e seus institutos através de leituras, de reflexões e do diálogo e isso não pode ser substituído eficientemente pelas novas formas de assimilação do conhecimento.
Tércio Sampaio Ferraz Junior afirma que estudar o direito “sem paixão é como sorver um vinho precioso apenas para saciar a sede. Mas estudá-lo sem interesse pelo domínio técnico de seus conceitos, seus princípios, é inebriar-se numa fantasia inconseqüente”.2
Ora, como seria possível compreender o fenômeno jurídico sem uma preparação prévia e uma razoável (e mínima) formação filosófica a instrumentalizar o educando para a compreensão de uma disciplina que se organiza a partir de um mundo abstrato (=ideal) para somente após ser aplicado ao mundo real?
A crise do direito, portanto, parece ser a crise da forma pela qual se assimila o conhecimento neste mundo da tecnologia. Não é por menos que alunos, já no primeiro ano do curso, manifestam-se insistentemente para que lhes seja propiciado acesso à prática, como se estudar direito fosse manusear processos, assistir a audiências ou fazer petições. Esse pensamento cada vez mais disseminado nas universidades, ignora que o fenômeno jurídico é antes de qualquer coisa um fenômeno cultural,3 somente sendo possível seu estudo na medida em que for possível compreendê-lo, ter claro seus institutos, sua linguagem e o método de análise do seu objeto.
E essa dificuldade não será superada somente com medidas administrativas, com meras reformulações curriculares ou com o aumento de investimento pelas faculdades de direito. A crise do ensino jurídico somente será superada quando for possível compreender-se que o direito não é um dado da natureza, mas uma construção da razão humana que precisa ser compreendida para poder ser aplicada, criticada ou – quando não se adequar à sua finalidade maior de fazer justiça – modificada.
Para superar tal obstáculo, é necessário, entre outras coisas, partir-se da premissa de que o aluno – em regra – conclui o curso de ensino médio de forma precária quanto à sua capacidade reflexiva pela falta de leituras e sem o domínio da linguagem a ser utilizada no estudo do direito.
É fundamental, portanto, o estabelecimento de um ponto de partida, comum entre professor e aluno, para que seja possível o início de uma caminhada tendo por objetivo o estabelecimento dos diálogos necessários à construção do conhecimento jurídico.
O aluno, por sua vez, deve ser incentivado a perceber no curso de direito a necessidade de leitura, estudo e reflexão, não havendo nada que possa substituir o papel a ser cumprido por ele durante esse processo, e o professor, de sua parte, precisa fazer ver que o direito, embora com suas especializações é, antes de qualquer coisa, um sistema a ser compreendido em sua globalidade.
É fundamental que as coordenações dos cursos convençam-se, de uma vez por todas, da impossibilidade da realização de qualquer avanço sem especial atenção às disciplinas que trabalham com a teoria geral do direito e de matérias especializadas.
Por fim, é importante a criação de fóruns para possibilitar o debate entre os professores das diferentes disciplinas, propiciando estudo integrado do direito, rompendo com a visão de que é possível ensiná-lo de forma compartimentada em áreas do saber hermeticamente fechadas para as demais.