Os escritores Muniz Sodré e Raquel Paiva, ambos professores da UFRJ e pesquisadores do CNPq, acabam de lançar pela Editora Mauad (153 págs. /mauad@mauad.com.br ) O Império do Grotesco. O livro analisa, ao longo da história, o “grotesco” como categoria estética e sua trajetória e influência na cultura brasileira nos dias de hoje com a exploração cruel das diferenças humanas e suas animalidades inerentes. O tema é fundamental, principalmente em tempos de Ratinho, Gugu, Faustão, Hipertensão, Big Brother, Casa dos Artistas, entre outros. Os programas também são vastamente analisados no livro. Fizemos algumas perguntas aos dois autores via e-mail sobre o assunto; eles nos responderam da mesma forma que escreveram seu livro: a quatro mãos.
Para Sodré, o tema é recorrente, pois já havia tratado do assunto em A Comunicação do Grotesco (Ed. Vozes), que foi material de estudo entre acadêmicos de Comunicação Social desde a década de 80. O curioso é que o grotesco impregna a produção cultural contemporânea no que há de melhor e pior e apenas clássicos de Bakthin e Kayser demonstram algum esforço em explicar e tentar um entendimento do assunto.
O trabalho de Sodré e Paiva lança um olhar amplo sobre esta questão desde a origem desta categoria estética até sua influência na formação de públicos devido ao seu uso intenso pelos meios de comunicação de massa. Cada vez mais proliferam programas de TV de gosto duvidoso e nos perguntamos o porquê da empatia de que desfrutam junto à grande parte da população. Se Sodré e Paiva não conseguem apresentar todas as respostas sobre isso, pelo menos jogam alguma luz para que possamos pensar um futuro melhor paras as grades de programação de TV.
Extra Classe – Onde está o grotesco na cultura de massa brasileira hoje? Como ele se manifesta?
Muniz Sodré/Raquel Paiva – O grotesco encontra-se hoje nos setores da cultura de massa voltados para a ampliação e manutenção de públicos classificados como C, D e E pelos publicitários, ou seja, os públicos das periferias de cidades como Rio de São Paulo, com escassa tradição letrada e um horizonte cultural mais comprometido com a oralidade. O apelo ao grotesco é uma evocação da cultura das feiras e das praças públicas, uma reelaboração da cultura rústico-plebéia nas cidades. São exemplos claros programas televisivos como o do Ratinho, Gugu e Faustão. Na vida extratevê, os comportamentos abstrusos do “soçaite” são freqüentemente grotescos.
EC – O grotesco está virando traço cultural brasileiro (e mundial)?
Sodré/Paiva – O grotesco não é traço exclusivo da cultura brasileira, mas aqui tem um desenvolvimento extraordinário. Talvez isto se deva ao fato de que muitas das instituições culturais e de nossos hábitos civilizatórios sejam vividos como “idéias fora do lugar”, para retomarmos a expressão do crítico paulista Roberto Schwarz. Nesse deslocamento, emergem formas paródicas, que tanto podem ter um sentido crítico quanto manifestar-se como pura e simplesmente ridículas, logo irrisórias e grotescas. Por exemplo, quando Lima Barreto dizia que os hábitos “civilizados” da elite carioca lhes foram ensinados pelas prostitutas francesas, o grotesco emergia como categoria estética compreensiva para toda uma esfera social a partir da inadequação violenta entre as formas francesas e a realidade nacional.
EC – Que conseqüências esta opção estética pelo grotesco pode trazer (ou está trazendo) para a cultura e imaginário da sociedade?
Sodré/Paiva – O grotesco pode ser crítico, como assinala o livro. Mas a opção estética pelo grotesco escatológico ou teratológico, com fins meramente comerciais, tem, como conseqüência principal, uma visão caricata da gente pobre brasileira. De repente, aprende-se a rir do sofrimento ou da miséria dos outros, esquecendo-se da responsabilidade solidária. Esse tipo de grotesco implica uma exploração cruel da diferença humana.
EC – Como diferenciar a opção artística pelo grotesco enquanto expressão justificável e sua aplicação irresponsável?
Sodré/Paiva – A diferença entre o crítico e o irresponsável é feita pelo próprio equilíbrio estético da obra ou do produto cultural. Não há receitas prévias, é preciso avaliar cada caso, a fim de que a categoria estética do grotesco não se torne uma etiqueta do moralismo cultural a ser colada de forma preconceituosa em produções populares.
EC – Quando vocês escreveram O Império do Grotesco, vivíamos já uma enxurrada de programas que exploravam este recurso de linguagem. Por incrível que pareça, do ano passado para cá, as grades de programação de TV valorizaram ainda mais este tipo de coisa. Como vocês avaliam isso?
Sodré/Paiva – A valorização do grotesco pela televisão contemporânea, ou seja, a enxurrada de baixarias, é uma resultante da competição acirrada pela audiência na tevê aberta. Aparentemente, findas as ilusões de uma televisão culturalista (padrão de excelsa qualidade), o espaço televisivo tornou-se uma espécie de terra de ninguém, onde vale tudo para se arrebanhar pontinhos no Ibope. Todo este fenômeno é sintoma do descaso do Estado para com a cena pública (já que não há investimentos consistentes numa rede pública de televisão) e do descompromisso do empresariado midiático com a ética social imediata. O rebaixamento de padrões impõe-se como regra de ouro da programação destinada a conquistar audiência a qualquer custo.
EC – O que atrai tanto o público para este gênero estético?
Sodré/Paiva – O que atrai o público para o grotesco é a fácil possibilidade de identificação e decodificação dos elementos da obra ou produto. O grotesco implica freqüentemente uma mescla violenta de elementos contrários, a maior parte dos quais procede do universo dito popular. A afinidade de códigos entre produtor e consumidor propicia o interesse.
EC – Não é preconceituso considerar que apenas as classes mais baixas se sintam atraídas pelo grotesco?
Sodré/Paiva – Em certos casos, há preconceito, sim. Quando a televisão decide a priori rebaixar os seus padrões, está agindo na base do preconceito quanto ao gosto do público. Só que esse preconceito costuma funcionar industrialmente. Mas, na avaliação geral do grotesco como categoria estética, o preconceito pode estar ausente. Trata-se na verdade de jogar com o que a comunidade de gosto (que está por trás de toda e qualquer estética) considera “elevado” e “rebaixado”. É com referência a esta dicotomia que se instala o grotesco.
EC – Vocês mencionam fatos da vida política no início de seu livro. Como se dá o grotesco no campo político?
Sodré/Paiva – Grotesco e políticos: seria preciso uma pesquisa específica do assunto. Os temas são o comportamento comportamento dos parlamentares na Câmara, os discursos incongruentes de ministros e deputados, as imagens estapafúrdias, a exemplo do presidente da república enfeitado de borla e capelo na Universidade de Coimbra, a boca mole e aberta, o riso desconjuntado. O material é vasto.
EC – Que marcas tudo isso deixa na cultura brasileira neste início de milênio em comparação com o passado?
Sodré/Paiva – O grotesco deixa marcas na cultura brasileira, porque esta última se apresenta nacionalmente como um monopólio oficial de idéias administrado por elites, em geral eurocentradas. Como a heterogeneidade simbólica caracteriza o Brasil real, as diferenças culturais fissuram as construções por demais artificializadas do monopólio oficial, mostrando uma realidade que não se coaduna necessariamente com as idealizações. O grotesco resulta desses deslocamentos, dessas torções freqüentemente irrisórias.
EC – Que mecanismos o estado e a sociedade devem trilhar para evitar o “grotescalhamento”?
Sodré/Paiva – Não se pode evitar o “grotescalhamento”. Ele é recorrente e eterno, como o riso.
EC – Como filmes a exemplo de O Homem-Elefante, O Incrível Exército Brancaleone e obras que recorrem ao grotesco como forma de expressão podem ser usados como referência de olhar crítico e ao mesmo tempo cruel sobre esse assunto? Como a arte apresenta novos raciocínios a esse problema?
Sodré/Paiva – Filmes como Brancaleone e o Homem-Elefante são obras de arte grotescas. O grotesco não é necessariamente algo a ser evitado. Ele pode ser um modo de olhar as estruturas sociais ou os jogos do poder de um modo capaz de expor o que desejaria permanecer escondido. Vale lembrar que quadros famosos de Goya e outros grandes mestres da pintura pertencem à estética do grotesco. Charles Chaplin, idem. E assim por diante.