Fotos: René Cabrales
O Extra Classe – Fale um pouco dessa questão da numeração das obras como livros, CDs, publicações científicas ou literárias, editadas no Brasil. A indústria cultural rouba os artistas?
Lobão – Seria a numeração de toda a produção de conhecimentos. Seriam livros, discos e obras científicas. Quer dizer: obras de ciências sociais, de juristas, inclusive. O próprio ministro (da Justiça, Miguel Reali Jr.) acabou de lançar uma obra científica sobre legislação e será beneficiado com essa lei… Então, o que aconteceu? Para começar eu recebi um telefonema da deputada federal Tânia Soares, de Sergipe. Ela tinha lido uma entrevista de Zeca Baleiro na revista Caros Amigos em que se falava da questão dos direitos dos artistas sobre as obras gravadas e sobre a dificuldade de controle das quantidades editadas, da falta de numeração e tal. Daí ela falou que queria levar um projeto para a Câmara Federal sobre o assunto. Eu, a princípio, fiquei meio cético em relação a isso, mas falei que era legal, que tinha mesmo que numerar as obras. Daí passou-se um ano e meio, esse projeto ficou meio na surdina e agora, algumas semanas atrás, voltou à tona já em caráter de aprovação final no Congresso, quando ela me ligou novamente. Foi quando eu conversei com outras pessoas interessadas no assunto, acabei conversando com Beth Carvalho no Rio de Janeiro, e nós dois fomos à Brasília pedir a aprovação imediata desse projeto apesar das contestações das gravadoras de que não existiria um sistema ideal para a numeração em série de CDs , embora a gente saiba que há possibilidade, tanto que o meu CD, que é vendido em bancas de jornais do Brasil inteiro, é numerado. Daí surgiu a história de que a numeração encareceria ainda mais o produto final, o que também não é verdade, pois seria um custo de no máximo 1 centavo a mais por disco, ou seja, zero vírgula zero um real. Não é nada.
EC – Mas como ficou a história da lei?
Lobão – Bom, a deputada me ligou novamente há algumas semanas, justamente quando eu estava saindo em excursão pelo Nordeste, para me dizer que a inclusão da lei, ou melhor, do artigo, pois na verdade não é uma lei, mas um artigo, o artigo 28 que vai ser incorporado à Lei dos Direitos Autorais, promulgada em 1998, havia sido aprovada por unanimidade na Câmara dos Deputados. Mas ironia desse lance é que esse artigo foi votado numa brecha causada pelo próprio lobby da indústia fonográfica que procurava uma maneira de criminalizar a pirataria.
EC – Mas a pirataria também é uma realidade no Brasil. Está por toda a parte, no meio da rua.
Lobão – Sem dúvida, mas existe uma coisa que eu considero pior que é a pirataria oficial, feita pela própria gravadora com o artista. Eu viajo pelo Brasil inteiro e vejo nos meus shows milhares e milhares de pessoas com meus discos nas mãos e na maioria das vezes são discos oficiais. Daí a gravadora vem me dizer que o disco tal vendeu 40 mil cópias, mas eu vejo muito mais discos nas ruas, nas mãos das pessoas do que o número que me é apresentado. Então eu fico com razão para desconfiar de alguma coisa. E tem coisas piores como essas coletâneas que são lançadas a três por quatro, sem qualquer critério de seleção sem respeitar cronologias, fases do artista. Ou seja, o artista não tem direito nenhum sobre sua obra depois que ela passa a pertencer a uma gravadora. Já vi coletâneas minhas com músicas de épocas passadas e a capa apresenta uma foto mais atual, tipo tentando mostrar que é um disco novo quando não é.
EC – Mas você deveria ganhar dinheiro com isso. Se a gente comparar, nos Estados Unidos, um artista que emplaca um único sucesso em sua vida, às vezes vive dos direitos dessa música por muito tempo. Você, por exemplo, também tem mais de um sucesso nacional, já tendo sido gravado até pelo João Gilberto. Dá para viver de disco?
Lobão – Mas é aí que a coisa pega: o artista não ganha dinheiro com disco no Brasil. Eu nunca na minha vida ganhei dinheiro com disco. Criou-se um mito no Brasil de que o artista só ganha dinheiro com shows. No exterior é o contrário, o cara faz shows para divulgar o disco. Aqui o cara faz shows para poder viver. Nos últimos dez anos, recebi uma quantia ridícula relativa a direitos autorais nos pagamentos que são feitos trimenstralmente. No entanto, nesse mesmo período foram editadas várias coletâneas com gravações minhas que devem ter vendido bastante.
EC – Você conseguiu vender mais de 100 mil cópias com o esquema independente de vendas em bancas de jornais no Brasil inteiro – do disco A Vida é Doce – e agora parece seguir o mesmo caminho com Uma Odisséia no Universo Paralelo. Isso pode significar o surgimento de um novo nicho de mercado, diferente do mercado fonográfico habitual?
Lobão – Se a gente for fazer uma análise dessa questão das grandes empresas do mercado fonográfico e a produção independente de CDs, você vai ver que lá no começo do século 20, quando surgiram os gramofones, os grandes editores de partituras achavam que estavam sendo passados para trás, que estavam sendo pirateados. Mas era somente uma nova tecnologia surgindo. Agora, com a aprovação desse artigo da Lei dos Direitos Autorais, que exige a numeração das obras, a indústria fonográfica está num beco sem saída porque não vai mais poder dissimular os números.
EC – Como é essa relação com rádio? A maioria dos artistas considera importante ver suas músicas rodando no rádio como forma de divulgação. Como é isso na prática?
Lobão – Eu não toco no rádio porque não tenho dinheiro. Não pago “jabá”(gíria para definir os valores que as gravadoras pagam às emissoras de rádio e TV para veicularem seus artistas). Tenho nome, mas não tenho dinheiro. Já se disse que o jabá não pode ser penalizado por não ser um crime previsto em lei, que é mais uma questão de suborno branco, uma coisa disfarçada que nenhum dos lados confirma nem desmente explicitamente. Mas é uma coisa que poderia ser enquadrada como falsidade ideológica. Afinal o cara vai lá no microfone e anuncia tal música como a segunda colocada e o disco mal saiu, quase ninguém conhece. A gente tem de desconfiar dessas coisas. Todo ano tem um cartel que decide qual a estética musical vai predominar, quais os nomes que vão estourar. É tudo vergonhoso. Quando você pede a alguém para confirmar o jabá, ninguém confirma, mas existe. E daí o meu disco não toca porque eu não pago. Aí no Rio Grande do Sul mesmo, já ouvi um sujeito de rádio me dizer que gostava do meu disco, tinha em casa e tal, mas não rodava na rádio porque a rádio não recebia para isso. Daí a solução é tocar em rádios comunitárias. Eu não sou a favor de rádios piratas, sou a favor de rádios livres. Mas é preciso ficar atento, também não dá para confiar em rádios ditas comunitárias que na realidade são dominadas por pastores religiosos, por exemplo.
EC – Você costuma dizer que não é roqueiro até porque essa expressão carrega uma forte carga de preconceito. Como você se enquadraria na cena atual da música popular brasileira, então?
Lobão – A mídia usa a palavra roqueiro como forma de desdém. Quando Cássia Eller estava viva, ela era a cantora Cássia Eller; quando ela morreu as notícias falavam da morte da roqueira Cássia Eller. Eu sou rock, não faço rock necessariamente.
EC – Falando em CDs independentes, você se filiou à Agadisc, Associação Gaúcha de Discos Independentes. Por que essa aproximação com o Sul?
Lobão – Eu acho que Porto Alegre e o Rio Grande do Sul atingiram um nível de qualidade de vida muito bom nos últimos anos. Isso abarca uma produção cultural muito grande independente do centro do Brasil. Na área da música, muita gente está produzindo aqui, gravando discos, sem precisar se apoiar nas grandes gravadoras. Porto Alegre conseguiu uma visibilidade muito positiva com eventos como o Fórum Social Mundial.
EC –Você pretende lançar artistas daqui pelo seu selo, além de lançar seus próprios discos?
Lobão – Creio que há possibilidade disso. Tenho planos para lançar uma série de discos de outros artistas, sempre seguindo esse esquema das vendas em bancas. Vou começar com alguns nomes do Rio de Janeiro, onde conheço melhor o mercado por ser de lá embora confesse que o Rio me atrai cada vez menos como cidade. Em Samba da Caixa Preta, que está no disco novo ao vivo, eu nego tudo o que está se construindo no Rio. Sou carioca, mas não suporto mais o Rio folclorizado. Além disso o Rio virou uma coisa baianizada. E tem toda essa barra da violência urbana que está tornando a cidade simplesmente ingovernável. A canção tem um pouco de humor, mas a barra é pesada. Agora, tem muita gente boa fazendo música no Rio, como Maurício Negão, que eu pretendo lançar pela Univeso Paralelo. Afinal, até mesmo as gandes gravadoras entraram na minha jogada das vendas em bancas. O disco do Supla, que dizem ter vendido 600 mil cópias, só decolou quando a gravadora decidiu me imitar e jogar o disco nas bancas a um preço bem mais acessível.
EC – Você fala muito em número de vendagem. Essa é sua preocupação básica? Como é que fica a obra, a música?
Lobão – Quando eu falo que quero vender 350 mil cópias desse novo disco, é uma coisa de confrontação com a indústria. Vai ser importante politicamente que as pessoas saibam o que é vender essa quantidade de discos no país todo mesmo sendo ignorado pela maioria das rádios que não toca o meu disco. Além disso é um disco com 75% de músicas desconhecidas do grande público. Ou seja, eu estou passando informação. E quanto mais pessoas se interessarem e tiverem acesso à essa informação, tanto melhor.
EC – E é bom para o bolso também, ou não é?
Lobão – Mas isso é uma conseqüência de todo esse meu trabalho. Você vê que vendendo CD em banca, numerado, tudo direitinho, por um preço de R$ 11,90, quando o CD mais barato das grandes gravadoras não baixa de R$ 19,90, eu ganho ainda três vezes mais do que ganhava nas gravadoras. Espero que essa atitude de lançar discos em bancas e de questionar o tipo de relação que existe até hoje entre gravadoras e artistas se espalhe mais entre os músicos.
EC – Por que você acha que resolveram aprovar esse artigo sobre a numeração das obras culturais? Não foi só por pressão da classe artística, certamente.
Lobão – Não, mas é bom deixar claro que uma quantidade muito grande de artistas assinaram a moção de apoio que a gente espalhou pelo país, via Internet. A gente conseguiu a adesão de centenas de artistas. E o mais irônico nisso é que assinaram a favor artistas que estão há anos em grandes gravadoras como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Marisa Monte, Titãs, Zeca Pagodinho, Zezé de Camargo & Luciano… Enfim, a maioria quer a numeração dos discos e dos livros e de todas as obras culturais editadas no país. Desde a revolução industrial, do começo da fabricação em série, a numeração das peças é uma realidade. A indústria automobilística numera todos os seus carros. É, inclusive, uma maneira de se ter um controle de qualidade, de poder avaliar lotes com defeitos. Mas não creio que esse artigo sobre a numeração esteja sendo aprovado somente por isso ou porque o Congresso se preocupa com o bem-estar dos artistas, que aliás é sempre a desculpa usada pela indústria fonográfica em Brasília para conseguir novas vantagens. Acho que a aprovação se deve mais ao fato de estarmos em um ano eleitoral e os artistas estão em voga, a gente sempre tem a atenção da mídia. Então acho que basicamente por isso está sendo aprovado, embora as gravadoras já estejam chiando.
EC – O que você espera do próximo presidente?
Lobão – Na verdade o que tenho é a expectativa de um presidente da República que restitua a identidade do país nesse contexto de globalização que a gente está vivendo há muito tempo. Eu espero um presidente que seja capaz de dar um rumo ao país em vários sentidos, não apenas politicamente. Eu sou um cara que faz música, que vive dentro de uma realidade cultural. Então tenho expectativas quanto a isso. Mas também me preocupo com educação, saneamento e agricultura. Nós precisamos de um governo que saiba impor nossa identidade como país dentro da comunidade mundial. Eu insisto nessa coisa da identidade porque nós vivemos uma grande crise. Nós não temos mais referenciais próprios.