O sonho do esperado descanso depois de uma vida de trabalho está virando pesadelo para muitos brasileiros. O que deveria ser algo banal como chegar ao balcão do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e dizer: “Estou com a documentação para encaminhar minha aposentadoria (ou pensão)” pode ser o início de um jogo de gato-e-rato, no qual quem perde, geralmente é a ponta mais fraca, ou seja, quem busca o benefício. Só para se ter uma idéia, neste ano, conforme dados do INSS no Rio Grande do Sul, a média de novos requerimentos de benefícios atingiu 33 mil ao mês. Desses, seis mil foram indeferidos. Ou seja, de acordo com esta média, no primeiro semestre de 2002, cerca de 18% das solicitações, totalizando 36 mil, foram indeferidos. E não raro, mesmo após as várias recusas do INSS, comprova-se que, muitas vezes o solicitante realmente tinha direito ao benefício negado. Tal como o personagem de Franz Kafka, Joseph K em O Processo, milhares de pessoas enfrentam uma “via-sacra” árdua e cheia de desinformação, ora passando pelo despreparo de funcionários, ora esbarrando em entraves burocráticos, economizando assim, mesmo que sem querer, os já parcos recursos da Previdência. Por outro lado, o mesmo grau de dificuldade parece não existir quando se trata de evitar as fraudes de colarinho branco, realizadas por quadrilhas de funcionários, assim como para fiscalizar ou deter os calotes de empresas e do próprio Estado, responsáveis pela fatia majoritária do rombo que sangra os cofres da Previdência, o que se constata diarimente pelos escândalos divulgados pela imprensa.
INSS: o sonho se transforma em pesadelo
A professora Ana Emília Bered Pereira, da rede particular de ensino médio, está na segunda tentativa para conseguir sua aposentadoria depois de sete meses de peregrinação. A primeira ocorreu em dezembro, um mês após completar 48 anos de idade. “A primeira dificuldade que enfrentei foi para conseguir a relação de documentos, porque no posto que procurei (na Avenida Erico Verissimo) não informaram o que eu precisaria”. Auxiliada pelo marido, o administrador Sérgio Matheus Pereira, juntou o que considerava básico para requerer o benefício. Ao retornarem ao posto, foram informados de que faltava a listagem de recolhimentos. “Percorremos uma a uma as escolas onde Ana trabalhou”, conta Sérgio. Com o material na mão, retornaram ao INSS. “Levamos meia hora para tirar uma ficha, mais duas horas sentados, esperando pelo atendimento”.
A espera pode ser incômoda, mas o pior ainda estava por vir. “Havia várias pessoas com o mesmo intuito que o nosso e só uma moça para atender. Quando chegou a nossa vez, depois de eu alertá-la de que nós e outras pessoas ainda não havíamos sido atendidos, faltava meia hora para o posto fechar. Colocamos a documentação na mesa. Aí a moça disse que não poderia encaminhar porque às 16 horas iriam desligar o sistema. Argumentei que faltava meia hora e que só queríamos entregar os documentos”. A servidora insistiu que não seria possível.
Tempo perdido, e Sérgio lembra: “O sangue subiu e decidimos procurar outro posto, porque naquele não tinha mais ambiente”. Foi quando chegaram ao posto do IAPI. Entraram em outra fila, mais demorada, com mais gente. Quando foram chamados, ouviram do atendente algo do tipo “Ah, isso é aposentadoria de professor, não tenho idéia de como proceder”. Sérgio conta que o servidor não procurou auxílio de outra pessoa e murmurava coisas que o casal não entendia.
“Aí ele pediu certidão para aposentadoria especial, por atividade insalubre. Quer dizer, ele julgou da cabeça dele aquilo”, diz o administrador. Em seguida, o funcionário entregou a eles mais um formulário. Sem mais nada a fazer, o casal retornou às escolas em que Ana trabalha e em que já trabalhou. Muitos representantes de escolas acharam engraçado aquele pedido e eles ouviram coisas como “Mas que insalubridade vocês querem?”. Foram orientados pelos setores de departamento pessoal a fornecer uma declaração de que a professora trabalhou em sala de aula. Foi o que fizeram.
A resposta ao pedido viria pelo correio, disse o INSS. Passaram janeiro e fevereiro. Em meados de março, Sérgio, que acompanhava o caso pela internet, leu que faltava um documento, sem dizer qual. Ele voltou ao posto, enfrentou mais uma longa espera. Ficou sabendo que o que estava faltando era a ficha para atividade especial. “Respondi que o encaminhamento não era aquele. As escolas argumentaram que não poderiam preencher aquele formulário por não ser pertinente. Inclusive, recebi cópia da Lei sobre isso, e a informação de que esse pedido nunca tinha sido feito a nenhum professor”.
Passados março e abril, em maio veio outro comunicado via internet, avisando que faltava documento, também sem dizer qual. Era o diploma. “Mas por que não avisaram isso lá no início?”, reclama Sérgio. Tiraram cópia autenticada dos três diplomas da professora. “Imaginei que, quando pediram o diploma, já estava tudo acabado”, ele diz. Esperaram mais um mês e, pela internet, ficaram sabendo a resposta: indeferido.
Por quê? No processo foi anexada uma certidão de serviço público de Ana, que conta o tempo de 19 anos, 10 meses e 25 dias. Após isso, ela largou o Estado e ficou somente com as escolas particulares. Ela juntou as certidões dessas escolas que fecham, no total, 25 anos de serviço. “O processo foi indeferido por falta de tempo porque eles julgaram provado só o tempo do Estado”, diz Sérgio.
O casal entrou com recurso. Ao serem atendidos, explicaram que não foram somados este e aquele tempo. “Nos passaram uma semichefe. Com ela somaram os 25 anos. Quando pensei que estava pronto e que até poderíamos rasgar o recurso, ela disse que, com a nova legislação da Previdência, a Ana teria de cumprir um pedágio, que é o acréscimo de 40% ao tempo”.
Com essa nova notícia, depois de seis meses de luta, Ana e Sérgio desistiram daquele processo. Entraram com um novo, por meio de um advogado, começando do zero, em outro posto do INSS. Após 52 dias de espera, a boa notícia. Ana Emília está aposentada. Mas ela não esquece os problemas que enfrentou para conseguir o que é um direito de trabalhador. “Gostaria de saber por que dão orientação errada e cada posto age de uma forma. Tenho duas colegas que entraram com pedido no posto do Lindóia e, em 20 dias, foram atendidas”.
Não esqueça
Ao procurar um posto do INSS, não esqueça de levar
os seguintes documentos:
Número de identificação do trabalhador (PIS/PASEP);
Documento de identificação de requerente (Carteira de Identidade e/ou Carteira de Trabalho de Previdência Social);
Cadastro de Pessoa Física – CPF do segurado, se tiver;
Carteira de Trabalho e Previdência Social ou outro documento que comprove o exercício de atividade e/ou tempo de contribuição para períodos anteriores a julho de 1994;
Obs.: No caso de professor, também diploma registrado em órgãos competentes federais e estaduais ou qualquer outro documento que comprove a habilitação para o exercício do magistério.
Finais felizes, nem sempre
O final feliz da professora ainda está distante para muitos com o mesmo desejo. Basta ficar umas duas horas em frente a um posto do INSS para perceber a sucessão de dificuldades de quem procura um benefício, seja aposentadoria ou pensão. Essa experiência foi feita no posto do Partenon.
Com a carteira de trabalho na mão, o pedreiro André Rodrigues, 58 anos, mostra que tem 28 anos naquele documento mais seis de contribuições como autônomo. Ele entregou sua papelada há dois meses, “mas até agora nada”. Quando foi atendido, disseram-lhe que a resposta viria dentro de dez dias, por carta. “Hoje vim aqui para ver se eles têm alguma coisa para me dizer, porque estou sem trabalho e sem aposentadoria”.
A doméstica Jurema Cunha, 51 anos, está há sete anos esperando receber uma pensão a que tem direito pela morte do companheiro com quem viveu 20 anos. No dia dessa entrevista, ela ficou sabendo que seu pedido fora arquivado por falta de provas. “Eles tinham pedido três comprovantes para saber se de fato eu vivia com ele. Levei conta conjunta, trouxe a nota com o preço do velório, o auxílio funerário que recebi. Eles acham que isso não é prova”.
A pensão pretendida é de um salário mínimo, que faz falta no orçamento de Jurema. Por isso, ela decidiu lutar até o fim, até porque, para ela, é uma questão de honra o reconhecimento da convivência marital. “Aqui eles sempre me trataram mal, me fizeram ir e voltar várias vezes, pensando que vou desistir, mas eu vou lutar, porque sei que tenho esse direito”.
Há ainda os casos de incapacidade para o trabalho, que se arrastam por longos períodos, casos traduzidos no desespero do vendedor Eli Gonçalves Santos, de 47 anos. Trabalhando com a venda e colocação de pisos e azulejos, um dia ele caiu de um andaime e fraturou o crânio. Foi em maio de 2000. Ficou 30 dias no hospital. “A firma me segurou um pouco, porque sou bom funcionário, mas eles não conseguiram mais. Me dá muita tontura, até com psiquiatra estou me tratando”.
Desde janeiro ele busca auxílio-doença junto ao INSS. “Estou com o pagamento em dia, acabei de passar pela perícia e o médico me tratou como um cavalo, não deixou nem eu dizer o que eu tenho. A minha situação é essa, não estou encostado e não recebo da firma. O meu patrão disse que vai vir aqui falar com eles, porque só estão me levando no bico, dizem que vão fazer uma análise. Que análise, se a minha situação é essa? Já ando cansado de ficar caminhando de lá para cá”.
A cozinheira Selma Soares, 56 anos, caiu dentro de uma câmara fria, em 1999. Com 25 anos de carteira assinada, sem insalubridade, ela já está há dois anos no seguro-acidente. As dores não a deixam trabalhar. “O ortopedista disse que eu não vou ficar boa, que vou ficar assim para o resto da vida”. Como o pedido de aposentadoria foi recusado pelo INSS, ela entrou com um recurso. “Eles disseram que tenho de trabalhar por mais quatro anos, mas o meu trabalho é cozinhar para 300 pessoas e eu não tenho mais condições”.
O servente de obras Arnaldo Antônio Florêncio, 56 anos, começou a trabalhar ainda menino, mas só tem 10 anos registrados em carteira. Há um ano fez uma cirurgia para retirar um câncer na próstata e ficou sem condições de trabalhar. “Eu me sinto mal, não tenho forças”. Com incontinência urinária, ele até que tenta fazer alguns biscates, mas não consegue. Junto ao INSS ele tenta uma solução definitiva para o seu problema.
Obstáculos são crescentes
A dificuldade em obtenção de benefícios junto ao INSS está tão grande que já há escritórios de advogados e assessorias jurídicas em entidades sindicais especializadas no assunto. O advogado Paulo Villas-Boas trata apenas dessas questões há anos e garante que seu escritório está sempre cheio. “Tenho muitas e muitas ações”. Conforme ele, atualmente o segurado ou dependente vem encontrando mais dificuldades em função de as leis virem se alterando, criando progressivamente mais obstáculos.
Villas-Boas conta que, no antigo IAPI (Instituto dos Industriários), havia um funcionário, chamado informante habilitado, que fazia de tudo para orientar o segurado. “Hoje não existe mais isso”, diz, acrescentando que a falta de orientação é um problema a mais a ser enfrentado. O advogado ainda comenta uma propaganda do Governo Federal sobre a inversão do ônus da prova, que deixa de ser do segurado, passando a ser responsabilidade do INSS. “Mas se há um período vago, se uma empresa foi extinta e não se localiza ninguém, o INSS só diz que não tem tempo de serviço e fim de história”.
A assessoria jurídica do Sinpro/RS abriu uma especialidade para atender casos na área previdenciária, a cargo da advogada Mebel Wolff Salvador. Para ela, os problemas com o INSS vêm de longa data. “Há diversidade de entendimento de posto para posto. Muitas vezes, o que um concede, o outro não, o que é inconcebível numa autarquia federal. Há coisas que são pacíficas e devem ser consideradas”. No caso específico do magistério, ela informa ser necessária a comprovação de 25 anos efetivos de trabalho. “Há postos com a tendência a descaracterizar esse direito do magistério, aposentando proporcionalmente”.
Mebel diz que muitos se conformam com a negativa da instituição, sem saber que têm direito à aposentadoria integral. E há os casos em que as pessoas se dão conta e acabam entrando na justiça. A advogada acredita que o INSS vem apostando no judiciário, já que as soluções são sempre demoradas. “Fiz um parecer para uma professora levar ao INSS. A funcionária que a atendeu disse saber que ela tinha direito, mas o sistema não calculava. Isso cai na via judicial e leva anos para resolver”. Mebel orienta os professores já aposentados a compareceram no Sinpro, pois está sendo feita a revisão dos benefícios.
Em nome do INSS, a gerente executiva em Canoas, Magda Rodrigues Biscalha, nega que haja diferença de interpretação de posto para posto. “A orientação é única, porque a legislação é a mesma e serve para todo o país”. Ela credita que os problemas ocorram, na maioria das vezes, porque o requerente não encaminha a documentação completa. “Quanto à demora no atendimento, isso depende da demanda em cada agência”, acrescentando que a agilidade constatada no posto Lindóia se dá porque não são prestados uma série de serviços, como perícia médica. “Contamos com mão-de-obra terceirizada por carência muito grande no quadro de funcionários, mas não é isso que determina o atraso e sim a condição da documentação apresentada”. Magda diz ainda ser impossível falar das dificuldades de forma generalizada, pois “cada caso é um caso, cada um tem sua vida profissional avaliada”.
No Estado, este ano, a média de novos requerimentos de benefícios em geral atingiu 33 mil por mês. Desse total, Magda acredita que são concedidos 27 mil. Ou seja, em seis meses, 36 mil deixaram de ser concedidos.