GERAL

Carne negra,… de primeira

Valéria Ochôa e César Fraga / Publicado em 5 de abril de 2003

Foto: Divulgação

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Elza Conceição Soares nasceu no dia 23 de junho de 1937, no Rio de Janeiro. Aos 13 anos de idade começou a participar do programa de calouros de Ary Barroso, sempre ganhando a nota máxima. Seu primeiro sucesso veio com o compacto Se Acaso Você Chegasse (Lupicínio Rodrigues/F. Martins). Depois de gravar seu segundo disco, Bossa Nova, viajou para o Chile em 1962, como representante do Brasil na Copa do Mundo, onde se apresentou ao lado Louis Armstrong, lenda do jazz americano. Em seguida Elza mudou-se para São Paulo, onde passou a se apresentar em teatros e casas noturnas. Em 1999, foi considerada pela BBC de Londres, a melhor cantora brasileira do milênio. O seu último lançamento é o CD Do cóccix até o pescoço (2002). Nele, Elza abre caminho para o funk e para o rap, colocando no mesmo repertório compositores como Caetano Veloso, Jorge Benjor, Chico Buarque, Marcelo Yuka e Seu Jorge, entre outros.

Elza Soares estará em Porto Alegre, no dia 25 de maio, para um grande show, no Parque da Redenção, em comemoração dos 65 anos do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS). O evento, que contará ainda com apresentação do músico/compositor Nei Lisboa e do Coral do Cecune, já tem o apoio confirmado da Secretaria de Estado da Educação.

Extra Classe – Por que a carne mais barata é a negra?
Elza Soares
– Porque é. A gente sabe que pro negro tudo é muito difícil, é cota para colégio, cota para ator. Você não vê o destaque do negro em primeiro, em nada, ele não é protagonista em nada. Então a carne mais barata do mercado chama-se de carne negra.

EC – É protagonista pelo menos na música…
Elza
– Pelo menos, é alguma coisa, no futebol também, mas a gente buscou essa música porque é do Marcelo Yuca (ex – O Rappa) e do Seu Jorge (artista emergente do samba-rock), então achei que era uma música forte e taí no cd, e eu gosto muito dela.

EC – Você ficou bastante tempo nos Estados Unidos, e a gente está agora com uma guerra acontecendo, como você vê essa coisa da cultura norte-americana e o apoio da população à guerra?
Elza
– Eu acho muito triste. A guerra é sinônimo de carnificina, acho que matar gente é sempre muito triste. A morte em geral é muito triste. A guerra é uma coisa que todo mundo detesta ou deveria. Eu, pelo menos, odeio. Não convivi com ela, mas só de pensar me causa calafrios. Acho que o ser humano é muito difícil de entender.

EC – A gente vê que os índices de aprovação do povo americano para a intervenção no Iraque têm diminuído, mas ainda são favoráveis à guerra. Você acha que existe muita influência da cultura do povo americano nesse sentido? Eles vêem as coisas diferente do resto do mundo?
Elza
– Só pode ver de forma diferente, porque eu não vejo isso, eu vejo na guerra só tristeza e não seria favorável a ela nunca. Eu não sei se por ser brasileira, por gostar de carnaval, por gostar do amor, por gostar das pessoas, da alegria, da paz, acho que a guerra é uma destruição total da paz e não se pode construir a paz com guerra.

EC – Você falou em artistas novos como Marcelo Yuca , Seu Jorge que têm despontado até como uma forma de renovação, e, fora da tão falada MPB. Gostaríamos de saber o que é e quem faz música brasileira hoje? Se ela existe realmente enquanto música brasileira, ou se o gênero vive da sua história? Como você vislumbra o cenário atual?
Elza
– Eu acho que música brasileira é música brasileira de qualquer jeito, você cantou no Brasil é música brasileira. Eu considero o Cidade Negra fazendo música dentro do Brasil, eu acho que música brasileira é isso agora. É lógico que tudo tem uma renovação. Você não pode querer cantar uma vida toda Noel Rosa, Cartola, tem que se cantar também, porque é lindo demais, mas não achar que é só isso. São, de fato, coisas maravilhosas, mas acontece que não passaram para nossa juventude essa música, a nossa juventude foi muito estimulada dentro do Rock and Roll, e eu acho que o samba, a própria MPB ela tem esse gás, ela tem esse calor, só que a gente não mandou para eles isso aí. O que se faz hoje também é música popular brasileira, sim, independente da sigla.

EC – Inclusive o pessoal do Rock?
Elza
– Inclusive o pessoal do Rock and Roll, eu tenho paixão pelos Titãs, gosto do Cidade Negra. Eu fiz agora um trabalho lindo com o pessoal do Pedro Luís e A Parede, isso é música popular brasileira. Participei agora do carnaval da Bahia no 2222 com o Gil, então eu acho que a gente tá fazendo música popular brasileira.

EC – E quem são os artistas que apontam para essa renovação?
Elza
– O que eu tenho prestado atenção… como eu tinha dito: Cidade Negra, Pedro Luís e a Parede, O Rappa. Gosto muito dessa gente. Zeca Pagodinho!! Quer melhor que Zeca Pagodinho, eu amo esse cara, gosto muito.

EC – Como você definiria a fase atual da sua carreira depois deste disco que, dá para se dizer, é um sucesso? E como você classificaria o seu trabalho?
Elza
– É um sucesso, graças a Deus. Olha eu acho que não sou rotulada, quem tem rótulo é refrigerante, quem tem rótulo é bebida, eu não sou rotulada, eu quero cantar. Acho que, quando você é vinculada a alguma coisa, fica aprisionado num estilo, fica acorrentado. A escravatura já passou, você tem liberdade para ir e vir, quando Deus te dá o dom de você cantar, você tem que usar tua voz.

EC – E o disco Do Cóccix até o pescoço é bem isso, é difícil classificar para qual prateleira vai o disco da Elza Soares…
Elza
– É, eu acho que é isso. A gente tá aí para ousar, eu gosto, eu tenho atitude, eu sou ousada, eu gosto de brincar com a voz, eu uso a voz que Deus me deu.

EC – O fato de estar fora de uma grande gravadora, é melhor ou pior para a música que você faz?
Elza
– Eu acho que ser independente é a liberdade geral, acho que se hoje eu estivesse em uma grande gravadora, com um cast muito grande – é muita gente para trabalhar, talvez não tivesse condições de dar a atenção devida para uma artista só.

EC – E o processo industrial acaba tolhendo de alguma forma?
Elza
– Completamente, eles determinam o que cantar, aí você tem que cantar aquilo que eles querem. Eu não gosto disso, eu gosto de cantar aquilo que o povo gosta, que eu quero.

EC – Você tem noção da sua importância e grandeza, não apenas pelo que você faz, mas pelo que representa sendo mulher, sendo negra, tendo uma voz que é inimitável? 0 que você se sente em relação a isso, com uma trajetória como a sua?
Elza
– Olha, te juro por Deus que é muito sério falar isso, eu falo do fundo do coração. Eu nunca parei para saber a importância que tem a Elza Soares, só quero ter saúde para continuar fazendo isso. Mas eu nunca me considerei melhor que ninguém nem pior. Eu não quero ser mais do que ninguém, só quero ser um pouquinho melhor que eu. Eu só procuro ser melhor do que eu mesma. Agora, se eu tenho alguma importância, isso acho que é meio bobo, a gente pode se perder dentro disso, se apegar nessa coisa que é provisória, uma passagem e ficar meio lost in the space (perdida no espaço), eu prefiro ser a Elza da Conceição Soares, a Elza Soares é no palco. Prefiro carregar minha humildade sem ser idiota. Tem muita gente que diz ser humilde e no fundo não tem humildade nenhuma, acho que a humildade é isso que te passo, eu sou isso, eu não sou mais que isso, gosto de passar, cozinhar, namorar à beça… estou casada, felizmente com o Luciano Gando. A gente vive feliz, às vezes eu levo a comida no prato para ele, vou para cozinha, acho isso maravilhoso, isso é ser gente, eu não quero deixar de ser assim.

EC – No Cóccix há a participação de várias gerações, pessoas de vários estilos, queria saber onde começa o trabalho de um (Zé Miguel), e de outro (Elza Soares). No repertório ou é difícil saber?
Elza
– Acho que é difícil saber, ali houve um casamento, uma integração, um respeito a gente se familiarizou maravilhosamente bem. Houve um respeito mútuo, o Zé Miguel me dizia uma coisa e eu respeitava, às vezes eu perguntava, Zé o que você acha disso?… eu acho normal essa troca. E foi assim que a gente fez um trabalho, esse trabalho. Foi assim que saiu o disco Do Cóccix até o Pescoço.

EC – E essa abordagem moderna nos arranjos com mistura de instrumentos acústicos com eletrônicos, Rap, MPB, Chico Buarque… Partiu do que essa idéia?
Elza
– Isso sempre foi um sonho meu, eu sempre quis fazer justamente uma coisa assim bem louca, acho que pode ser ainda muito mais louco. A música popular brasileira é muito rica, e, se você começar a buscar, vai encontrar coisas maravilhosas, você pode ousar tudo, usar e abusar.

EC – E esse abuso todo a gente já pode esperar para o próximo trabalho. E o que vai ser o próximo trabalho?
Elza
– Pode esperar, ainda não sei se fico de cabeça para baixo ou não. Tudo é possível. Ainda não é hora de falar sobre isso.

EC – Então vai ser uma surpresa?
Elza
– Eu acho, ainda tem muita coisa para se fazer.

EC – Já está pensando nele, já tem alguma coisa engatilhada?
Elza
– Não, por enquanto eu penso no Do Cóccix até o Pescoço. Ainda não deu para desvincular, está muito recente, mas ainda penso em ousar muito mais, penso em ser mais criativa. (nota do redator: em off os produtores nos adiantaram que há previsão de início dos trabalhos no novo disco para o segundo semestre com direção artística de Zé Miguel Wisnick)

EC – Gostaria que você fizesse uma avaliação do seu momento agora, a sua vida, a sua história é cheia de lutas, vitórias, perdas. Queria saber como a Elza se sente hoje?
Elza
– Me sinto com os pés no chão, com cabeça no céu, eu acho que sempre fui vitoriosa apesar das porradas,… das grandes pancadas. Eu nunca escondi as pancadarias que tomei da vida, mas acho que também que bati bem. Apesar de tudo, sou uma vencedora, e como vencedora não tenho muito que reclamar não, só tenho que pedir mais forças a Deus para continuar lutando e vencendo quando possível e não perdendo tanto quanto o possível.

EC – O que é a música para você?
Elza
– A música para mim é um sedativo, meu remédio. Cantar ainda é um remédio bom. Quem deu o título do livro Cantar para não enlouquecer em meu livro (biografia de Elza Soares) fui eu, porque foi quando eu perdi meu filho. Quando eu canto, eu esqueço todas as dores, quando canto, é a medicina cantada. Quando você faz aquilo que você gosta e que você sabe fazer, você faz com muito afeto, muito carinho, e a música é uma religião, é uma prece, uma oração que você está fazendo.

EC – E quando você canta, canta para quem?
Elza
– Quando eu canto, canto para todos os que estão presentes, canto para todos mesmo. Quando estou amando, eu canto muito para quem estou amando também, mas primeiro canto para Deus.

EC – Qual é a tua avaliação do momento atual do País?
Elza
– Acho que a minha experiência é a de muitos brasileiros. Com o Lula, o Brasil ficou com cara de Brasil, ficou menos americanizado. Muita gente se vestiu de brasileiro e vejo hoje todo mundo falar em acabar com a fome. Mas primeiro você tem fazer o cidadão acabar com a hipocrisia. A gente precisa de pessoas honestas. Não há muita gente honesta, precisamos de mais empregos, só assim você dá um aspecto melhor ao país, porque povo melhor do que este não existe, um povo que suporta tudo com resignação. Hoje eu já vejo o país buscando mais, as pessoas se integrando mais em prol de uma coisa melhor.

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