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Extra Classe – Qual é o impacto que a entrada no mundo da informática pode ter no livro como suporte tradicional?
Roger Chartier – Em primeiro lugar, devo dizer que não estamos todos dentro deste mundo do texto eletrônico. Me parece que é uma grande ilusão, uma falta de percepção aguda pensar que haja, hoje em dia, a generalização da presença desta técnica. Sabemos que as condições econômicas, culturais e sociais do acesso das pessoas a esta nova realidade da comunicação não estão distribuídas igualmente. Só para se ter uma idéia: no mundo da internet, 50% dos sites são em inglês, 5% são em espanhol e somente 3% são em português. Há uma discrepância muito grande nos endereços das novas tecnologias. Mas devemos aceitar a idéia de que hoje em dia há setores importantes da população que manejam, utilizam e lêem com o computador e provavelmente isso vá se difundir mais no terceiro milênio. O que me parece é que é preciso fazer um diagnóstico mais preciso, agudo, quanto ao que vai mudar para a cultura escrita, seus gêneros e textos, ao serem produzidos na frente da tela. Aí me parece que o mais importante é considerar a idéia de que a leitura frente à tela é fundamentalmente uma leitura fragmentada. É como se extraíssemos fragmentos de um banco de dados, de um livro eletrônico, de um jornal eletrônico. Bom, esta dimensão, por sua vez, é um recurso muito importante para os textos cuja estrutura é a fragmentação: dicionário, enciclopédia e livros de referência, mais do que para as obras que exigem outro tipo de relação com o texto, como, por exemplo, a compreensão de sua coerência, totalidade e identidade. Neste caso, este tipo de leitura é largamente inadequada. Se tenho razão, haverá uma coexistência entre textos cuja estrutura encontra na nova técnica um suporte particularmente eficaz e outros para os quais é preciso uma forma mais clássica.
EC – O senhor acha que essa mudança de tecnologia terá uma implicação nos romances, novelas e contos?
Chartier – Depende se falamos dos textos que já existem, que conheceram uma história através de diversas formas antes de chegar a uma possível existência eletrônica. E estes são os textos que constituem a maioria. Vemos que aí há um impacto. Uma tradução disso é que muitas das editoras que haviam tentado abrir um mercado para novelas ou ensaios, na forma eletrônica, renunciaram, nos últimos anos, enquanto sabemos que há edições de enciclopédias que têm agora unicamente uma edição eletrônica. Se vê muito bem a diferença da relação da nova técnica com tal ou tal gênero de texto. Se pensamos nos textos novos, que se escrevem sobre a tela, a questão é um pouco diferente porque a criação, mesma, do texto pode incluir esta fragmentação e segmentação. Particularmente também tem uma lógica não-linear que a nova tecnologia permite e se pode criar livros de histórias e novelas que aproveitam estas possibilidades. É um caso totalmente diferente. Me parece que há um futuro para a edição eletrônica, mas particularmente para os textos pensados, escritos dentro desta nova técnica, não para o patrimônio literário clássico. E é útil ter uma forma digital, é possível com a invenção do e-book, mas isso não está tão popular como o foi no momento de sua invenção, essa idéia de ter consigo uma pequena biblioteca portátil… Me parece que fundamentalmente o mundo dos objetos impressos e os gêneros tais como ensaios, livros de história ou de estudos e novelas vão manter uma forte vinculação. A forma clássica do livro e esses gêneros vão se manter juntos.
EC – Os novos textos, feitos na tela, deverão ter um impacto ainda maior na idéia da intenção do autor, na idéia de uma identidade na obra de arte? Só a literatura clássica, feita antes do computador, é que manteria, assim, essa idéia de identidade e de unidade?
Chartier – Sim, esse é o problema da autoria no texto eletrônico. Se será como algo que temos conhecido e praticado. Evidentemente você tem razão: há algo como uma desaparição da assinatura do texto, do nome próprio e este texto aberto, móvel, maleável é, por definição, coletivo, múltiplo, polifônico e nesse caso se apaga a identidade e a soberania do autor. Se pode pensar que para a nova criação é uma possibilidade interessante em que se pode aproveitar o autor aceitando o sacrifício de sua própria autoridade. Se pensamos nos textos do passado, que foram escritos totalmente em outro contexto, pelo menos a partir do século XVIII, com a estabilização do nome próprio, da idéia de autor, que era condição para a propriedade literária, vemos que esta desaparição é uma forma de traição para a relação com as condições históricas de produção das obras. Também para isso não há uma reposta global, universal, mas sim para a relação entre o tipo de tecnologia e o tipo de texto em termos de seu gênero e em termos de seu momento histórico de produção.
EC – Neste sentido, qual sua opinião quanto à idéia de um cânone ocidental, ou seja de uma autonomia do texto literário em relação à realidade, contendo uma unidade e uma identidade próprias, criadas pelo autor, por sua intenção?
Chartier – Historicamente, o que corresponde ao paradigma da literatura canônica, do que se acreditava nos séculos XVII, XVIII, XIX e XX, não foi sempre a realidade. A produção literária medieval é largamente coletiva e para muitos gêneros do Renascimento nem se exigia originalidade ou singularidade. O repertório dramático da Inglaterra elizabetana é um repertório no qual as mesmas histórias estão retomadas em muitas obras, estão continuadas, revisadas, reescritas, de maneira que não devemos cair na idéia de uma definição universal da literatura. Me parece que é fundamental entender a historicidade do conceito de literatura. Os gregos não escreviam literatura, Shakespeare não escrevia literatura, a literatura como tal. Não quero dizer que não escreviam obras poéticas ou dramáticas que tivessem como fim produzir um prazer, uma emoção ou uma reflexão, mas que a literatura – com todos os seus traços: nome próprio do autor, a idéia de que é uma obra singular, original, de que há a intenção do autor como dominante para o sentido – é uma realidade histórica muito recente, na escala da história da humanidade e da qual vemos, quem sabe, a fragmentação. Também os desafios lançados por estas novas ténicas nos obrigam a lembrar que durante muitos séculos estes critérios que, para nós, formam a Literatura, não existiam.
EC – São uma invenção romântica…
Chartier – Do século XVIII e XIX, com a propriedade literária, copyrigth, originalidade, a consagração do escritor, a figura do autor como aquele que fala com os poderes ou com Deus. Victor Hugo, como paradigma, é uma invenção do século XIX.
EC – Mas não havendo mais estes critérios, nem a especificidade, nem identidade, como dizer que uma obra de arte literária é boa ou ruim? Qual a possibilidade da crítica literária e como fica possível estabelecer os limites entre o que é literário e o que não é?
Chartier – Me parece que um dos critérios é a capacidade de algumas obras ou textos permitirem a reinterpretação. Neste sentido a leitura de literatura seria uma releitura. É claro, como dizia, que Shakespeare não tinha nada que ver com o modelo paradigmático do escritor romântico e quando escutamos “to be or not to be”, o momento mais fundamental do teatro ocidental, a interpretação moderna, espontânea é metafísica, quando se questiona sobre o ser, ou uma interpretação romântica, é a melancolia. Mas nos tempos de Shakespeare essas mesmas linhas significavam que to be or not to be era um exemplo de uma gramática. Desta maneira, vemos que há um deslocamento total do sentido. Para Shakespeare este momento de Hamlet não teria nada de metafísico nem de romântico. A força da obra, e que define não sei se a literatura, mas certas categorias de textos, é o que permite essas séries de reinterpretações através do tempo e das culturas, enquanto que muitas obras do passado não o permitem. Este é um critério, não sei se é bom ou ruim, mas quem sabe há peças de Marlowe que são mais fortes, mais belas, melhores que as de Shakespeare. Através desse processo de reinterpretação, vemos que há obras que são capazes de superar os limites de seu tempo justamente porque estão profundamente arraigadas em seu tempo. Lembro do exemplo de um texto de Borges em que ele cita um verso de Virgílio em que o sentido dos antigos é completamente inverso ao sentido moderno. A capacidade literária de um texto é justamente, me parece, a capacidade de permitir, sugerir uma pluralidade de interpretações.
EC – Falando nisso, Umberto Eco, em Obra Aberta, sugere esta abertura toda na obra de arte. Porém, depois de publicar O Nome da Rosa, vem um outro livro dele chamado Interpretação e Superinterpretação, com Richard Rorty e outros, em que ele admite haver limites para a interpretação, a partir dos quais a leitura vira uma superinterpretação. São reflexões dele em função de todas as interpretações que o público leitor fez de O Nome da Rosa, e que teriam resultado em uma falta total de unidade de sentidos. Como o senhor vê esta contradição?
Chartier – É a contradição própria dos autores que por um lado estão abertos para esta liberdade do leitor, para a contribuição do leitor na produção de sentidos e que ao mesmo tempo foram plasmados dentro do paradigma que você mencionava, do autor como tendo domínio do sentido. Eles têm uma grande dificuldade para aceitar este jogo das interpretações, mas me parece que esta é uma contradição incorporada dentro de um autor dos séculos XX e XXI, que por um lado é herdeiro de um modelo ilustrado e romântico, do autor que é o dono do sentido, e que por outro lado é herdeiro das teorias semióticas do século XX, em que há a morte do autor, com Barthes, e a historicidade da função do autor, em Foulcault, ou mais presentemente a idéia da obra aberta à contribuição do leitor e à produção de sentido. E essas duas vias são largamente contraditórias. Realmente nesses dois livros de Eco se vê claramente esta contradição. Eu penso, como historiador, que há limites às interpretações, mas não são limites do leitor como indivíduo singular, mas que são os limites de um sistema mental, uma organização psíquica de um mundo social que faz possível a interpretação em um dado momento. Se essas condições mudam, por exemplo, no caso de Hamlet, se há no século XIX o Romantismo, se há Kierkegaard e a metafísica do ser e se há o existencialismo, mudam as condições da interpretação e o espaço possível da interpretação. E se um texto resiste a essas interpretações é uma razão pela qual há esse jogo histórico de reinterpretações do mesmo texto. Me parece que os limites da interpretação vêm fundamentalmente da plasmação dos indivíduos como seres sociais, ou seja que dependem da organização de um certo tipo de modelo social, da internalização da censura, dos sentimentos, dos afetos, das emoções e dos sistemas de representação mental. Aí se vê que há interpretações impossíveis, não porque sejam absurdas, mas impossíveis historicamente.
EC – O senhor acha que há uma diferença entre o modo dos historiadores e cientistas e o dos escritores de verem a literatura? Os escritores não sabem o que estão fazendo? Pelo que o senhor falou, eles parecem não apenas fazer, mas também acreditar numa ficção…
Chartier – Os escritores têm essa idéia de que a escrita não tem dependências, de que está autônoma. Mas essa necessidade interna da produção escrita não significa que ela corresponda a este mito, porque o escritor vive dentro de um mundo social, com certas condições e determinações mentais, afetivas e econômicas, mesmo que precise apagá-las para pensar seu gesto criador como original, destacado das contingências… Bem, as realidades sociais são completamente diferentes. Não se vive da escrita, mas se deve buscar uma série de outros dispositivos sociais que permitam viver: copyright, publicações, editoras etc. Dessa maneira, não há nada mais material que a literatura… E mais social, mas não acuso os escritores por dizerem isso. Podem dizer. No gesto criador talvez seja necessário esquecer essas coisas.
EC – Os escritores não sabem como funciona seu trabalho frente à realidade?
Chartier – Sabem, mas acho que é como a contradição de Eco. A contradição da dinâmica própria de um gesto criador que efetivamente no momento da criação não pode pensar-se dependente. É um gesto absoluto, de liberdade, mas a liberdade é uma ilusão a que os homens se dão para não pensar que estão determinados.