Foto: René Cabrales Foto: René Cabrales
Ficção? Filme de Elio Petri*? Nada disso. O enredo poderia ter transcorrido, por exemplo, no campus da PUC/RS, em Porto Alegre, onde funciona a People Beauty Estética & Cabeleireiros, que atende a uma clientela formada por alunos, professores e funcionários da universidade. A instituição gaúcha não é um caso isolado. De 20 anos para cá, alastrou-se pelo mundo afora um modelo de cidade universitária que busca facilitar, ao máximo, a vida dos que permanecem dentro dela por quase todo o dia. A instalação de verdadeiros shopping centers nos campi é uma tendência que tem como referência universidades como as de Warwick (Inglaterra), Cambridge e Atlanta (Estados Unidos) ou Quebec (Canadá). No Brasil, chegou na década de 90, mas ainda é incipiente.
A maior parte das instituições de ensino superior do país engatinha nessa tarefa. A USP, por exemplo, só agora começa a desenhar sua área de serviços e compras, enquanto a Unisul, de Florianópolis, sonha implantar uma arena multiuso para atividades de cultura e esporte, aberta ao público externo. No Rio Grande do Sul, PUC, UCS (Universidade de Caxias do Sul), Ulbra e Unisinos já tomaram a iniciativa de atender aos anseios dos alunos. O Centro de Serviços da PUC/RS, por exemplo, surgiu em 1997. Hoje, circulam por ali cerca de 15 mil pessoas por dia. Conta com três livrarias, restaurante, cafeteria, farmácia, agência de correios, cinefoto, lojas de bijuterias e presentes, além de uma agência bancária e quatro caixas eletrônicos.
“Antes, não havia opções no campus. Se o aluno queria comprar remédio para dor de cabeça, precisava sair”, lembra o gerente de eventos e espaços físicos da PUC/RS, João Carlos Gasparin. O Centro de Serviços foi criado após uma pesquisa que identificou as principais necessidades dos cerca de 30 mil alunos da instituição. Apenas duas lojas não vingaram – cds e informática. Uma das mais antigas arrendatárias é a livreira Lussana Soares de Souza, dona da Livraria Editora Acadêmica. O pai dela foi pioneiro ao instalar uma pequena livraria no prédio 5 da PUC/RS há 25 anos. “É uma vida inteira em contato com a comunidade acadêmica. A gente conhece o cliente pelo nome”, diz Lussana.
Mas o salão de beleza é um caso à parte. Como não constava da lista preliminar de serviços que seriam oferecidos, houve um clamor do público feminino para que fosse instalado. Uma das freqüentadoras assíduas é a professora da Faculdade de Odontologia, Maria Antonieta Lopes de Souza. Se alguém perguntar a ela quais serviços utiliza lá, a resposta está na ponta da língua: “Todos!” Já fez massagem e bronzeamento artificial, não de forma sistemática. O mais comum é fazer unha e cabelo. “A vantagem é não precisar se deslocar. Além disso, o carro fica em segurança no estacionamento.”
Outro aspecto é o convívio propiciado pelo salão de beleza, ao reunir alunos e professores de diferentes áreas de conhecimento. “Por incrível que pareça, há uma produtiva troca de idéias sobre questões relacionadas à pesquisa e ao ensino”, afirma ela. A professora da PUC chega a comparar a conversa do cabeleireiro aos debates travados nos restaurantes universitários, nos anos 60, que foram fechados pelo regime militar, em certa ocasião, por favorecer a aglutinação de estudantes. “Juntava gente que pensava e que não pensava, o que era considerado perigoso pelos militares.” Questões políticas à parte, o salão de beleza quebra muitos galhos. Por isso, um crescente público masculino dá uma escapada no People Beauty. “É prático. Professores passam aqui para arrumar o cabelo antes de palestras”, conta a proprietária Natália Venturine.
Se alguém se espanta com o fato de um salão de beleza fazer tanto sucesso em um campus universitário, não deve se surpreender com a variedade de pontos comerciais e serviços da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Tem até cinema e loja de langerie. Na Galeria Universitária, foram instalados lavanderia, correios, agência de viagens, farmácia, duas livrarias, salão de beleza, loja de conveniência e cinco agências bancárias. Não faltam roupas esportivas ou de grifes da moda nas vitrines. A praça de alimentação inclui dois restaurantes, lanchonete, pastelaria e confeitaria. “A estratégia é ocupar os espaços para satisfazer o usuário”, diz a Pró-Reitora de Ação Comunitária, Corina Michelon Dotti. A UCS tem 35 mil alunos, procedentes de 75 municípios no Estado.
Uma cidade dentro do campus
A Unisinos está desenhando o formato do mix de lojas e serviços que pretende oferecer em São Leopoldo. Os estudos fazem parte do projeto Unicidade, que inclui também o fomento ao desenvolvimento da região compreendida num raio de 100 km do campus. Na verdade, o novo modelo dos campi determina um movimento de reciprocidade – as instituições investem para suprir os anseios da comunidade interna, ao mesmo tempo em que ampliam a oferta dos serviços ao público externo. Estão cada vez mais parecidas com verdadeiras cidades. “Em todo o mundo, as universidades buscam um elo com a comunidade em que se inserem. A sociedade se apropria do campus”, diz Thomas Assumpção, engenheiro paulista com pós-graduação em marketing, que assessorou a Unisinos a formatar o projeto Unicidade.
No campus do Vale dos Sinos, onde circulam aproximadamente 31 mil estudantes, já existem farmácia, banco, livraria, lanchonetes, restaurantes, agência de viagens, despachantes e correios, entre outros serviços. Haverá uma remodelagem do Centro de Convivência, que concentra a área administrativa e comercial da instituição. “No momento, estamos realizando consulta junto à comunidade acadêmica para detectar quais são as prioridades. Fazemos reuniões e discussões via web para que todos possam opinar”, diz o diretor de administração do campus, Roberto Haleva. Uma das novidades confirmadas é a implantação de um centro de educação infantil (creche), que passará a funcionar ainda neste semestre.
Em parceria com o IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), a universidade lançou um concurso público nacional para a construção do Complexo de Desporto e Lazer, que ocupará 12 mil m2 do campus, com arena multiuso e piscinas térmicas, abertas à comunidade externa. Há também a possibilidade de instalação de uma livraria de grande porte. Além disso, a Unisinos planeja instaurar lojas e restaurantes que atendam ao conceito de pesquisa da universidade. “Queremos que os novos restaurantes, por exemplo, incorporem o que nossos pesquisadores estão desenvolvendo em matéria de nutrição”, acrescenta Haleva.
Na Ulbra, a oferta de lojas e serviços abrange três restaurantes, jogos eletrônicos, locadora de vídeo, farmácia, perfumaria, cafeteria, salão de beleza, agência de viagem e seis bancos, além de duas livrarias. “Por um lado, considero positivo, na medida em que facilita a vida da gente, que passa o dia estudando. De outra parte, os preços praticados são exagerados. Outro dia, paguei o dobro do valor cobrado lá fora por um vidro de guaraná em cápsula”, afirma Camila Fernandes, aluna do curso de Jornalismo.
Aulas dentro do shopping
Se as universidades abrem espaço para atividades comerciais, o movimento inverso também ocorre: em alguns casos, as escolas é que migram para os shopping centers. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Universidade Estácio de Sá plantou unidades de ensino em vários shoppings da cidade, como o West Shopping, Guadulupe Shopping, Madureira Shopping, Barra World e Nova América. Além disso, instalou salas de aula no Centro Empresarial Barra da Tijuca e também junto a um parque de diversões (Terra Encantada). Na Grande Porto Alegre, a Escola de Ensino Supletivo Universitário conta, desde agosto de 1997, com uma franquia no terreno do Shopping do Vale, em Cachoeirinha, com mais de 500 alunos.
Foto: René Cabrales
A nova tendência dos campi enfrenta questionamentos. “Há o risco de o ensino se transformar em apêndice. É como se o conhecimento fosse apenas mais um item ofertado”, critica a professora Jaqueline Moll, da Faculdade de Educação da Ufrgs. Para ela, a proliferação de lojas dentro do campus pode não tirar o foco da atividade principal (educação), mas ao menos embaralha. A professora preferiria que os alunos usassem o tempo partilhando com amigos os espaços de convivência, ou estudando na biblioteca, ao invés de gastarem dinheiro em um consumo fora de lugar. Além disso, condena a idéia de que as pessoas devam circular cada vez menos na cidade, concentrando-se em um só local, como o campus universitário. “Por que não usar manicure ou comprar roupas íntimas fora do campus? A natureza dos serviços nada tem a ver com a atividade fim da escola.”
O arquiteto Leonardo Araújo da Gad Design (empresa que também assessora a Unisinos) rebate as críticas: “É uma interpretação purista em demasia. A vida atribulada de hoje em dia tem a ver com uma palavra-chave, que é conveniência. A atividade comercial no campus não embaralha o foco no ensino. Ao contrário, concentra, desde que não haja exploração predatória, e sim um desenvolvimento projetado.” Para o paulista Thomaz Assumpção da consultoria de marketing Urban, a exploração comercial do campus permite a ampliação das receitas das universidades brasileiras. “Atualmente, 75% do dinheiro que entra vem da matrícula e das mensalidades. Se aumentar a receita com atividades de negócio, haverá mais fôlego para investir no ensino e na pesquisa, penalizando menos a mensalidade do aluno”, acredita ele.