Desde o seu surgimento e regulamentação, a partir da constituição de 1988, o Sistema Único de Saúde (SUS) passou gradualmente a fazer parte da vida da maioria dos brasileiros que necessitam de qualquer tipo de atendimento médico. Criado para atender uma demanda continental, o sistema nunca teve uma receita condizente com sua razão de ser: o atendimento médico gratuito e irrestrito à totalidade da população brasileira. Não bastasse as limitações e constrangimentos aos usuários resultantes da histórica insuficiência de recursos que já vem de várias décadas, soma-se a isso a falta de ética de alguns profissionais da saúde que utilizam a estrutura do SUS para extorquir pacientes incautos e faturar em cima daqueles que precisam do sistema em situações emergenciais. Como toda e qualquer generalização é perigosa, a reportagem do Extra Classe traz à tona alguns casos que exemplificam e denunciam práticas infelizmente consideradas corriqueiras, mas que são criminosas e, ao que tudo indicam, não são casos isolados.
O lado ruim do SUS todo mundo conhece: longas filas de espera para consultas, exames e cirurgias; falta de vagas para internação, de médicos, de medicamentos básicos; demora nos encaminhamentos e na marcação para serviços especializados; profissionais sem condições de trabalho e mal remunerados. Isso sem falar no atendimento às emergências, que está longe de ser o adequado, principalmente às vítimas da violência e dos acidentes de trânsito. Também são precários os serviços de reabilitação, o atendimento aos idosos, a assistência em saúde mental e os serviços odontológicos.
Tudo isso estimula a visão de que o SUS é para os pobres, voltado para uma Atenção Básica de baixo financiamento, e de que os planos privados são para os remediados e ricos.
Não é bem assim. Os números oficiais mostram que, de cada quatro brasileiros, três utilizam exclusivamente os serviços do SUS, enquanto um busca assistência no setor privado. Apenas cerca de 30 milhões recebem subsídios, por meio do Imposto de Renda, para manter seguros privados de saúde, que não raro deixam a descoberto várias modalidades de atendimento, exames, tratamentos, quando não impõem limites à internação – as deduções de gastos com saúde privada representam R$ 1,5 bilhão por ano –, além de se beneficiarem do SUS na vigilância epidemiológica e sanitária, nas urgências e atendimentos realmente caros.
Também se engana quem pensa que o SUS se resume a consultas, exames e internações. O sistema hoje faz muito com poucos recursos e também se especializou em apresentar soluções para casos difíceis, como o atendimento aos doentes de Aids e os transplantes. O SUS responde por 100% da Atenção Básica em Saúde e por 85% do atendimento de Alta Complexidade (Aids, transplantes de órgãos, Alzheimer, pacientes renais crônicos, etc.), enquanto os planos privados concentram-se na média complexidade.
O SUS responde também pela Vigilância Sanitária de alimentos, bebidas, medicamentos, sangue e derivados e pelas campanhas de vacinação. Na última década, houve aumento da esperança de vida dos brasileiros; diminuição da mortalidade e da desnutrição infantil; eliminação da varíola e da poliomielite; controle da tuberculose infantil, tétano, sarampo e de muitas doenças que podem ser prevenidas com vacinação.
Diante de tudo que há de bom e ruim no SUS, some-se a esse quadro a existência de brechas do sistema que dão condições à prática de corrupção por médicos e funcionários para beneficiar quem tem dinheiro para pagar propinas e pegar um atalho, evitando a longa fila de espera. É difícil saber o quanto de irregularidade existe, pois os casos que chegam ao conhecimento público são ainda considerados exceções, mas uma força-tarefa comandada pelo Ministério Público Federal aponta para a existência de máfias dentro do sistema, atuando no Rio Grande do Sul e que os casos não seriam tão isolados como se apresentam.
Irregularidades no Grupo Conceição são investigadas
Uma força-tarefa composta pelo Ministério Público, Polícia Federal, Tribunal de Contas e Advocacia Geral da União deve concluir, em abril, uma investigação que está apurando diversos crimes no Grupo Hospitalar Conceição (GHC), em Porto Alegre. As irregularidades vão desde de fraudes em licitações, uso da estrutura dos hospitais Conceição, Cristo Redentor e Fêmina para realização de cirurgias particulares em vagas do SUS até a intermediação na marcação de consultas.
No dia 26 de março, a direção do GHC anunciou o afastamento, por dois meses, de quatro médicos do setor de traumatologia do Cristo Redentor. Eles foram denunciados por pacientes por terem cobrado entre R$ 1 mil e R$ 3 mil em cirurgias pagas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) entre 1996 e 2000. Os acusados serão ouvidos pela comissão que investiga as denúncias nos primeiros dias de abril. Um funcionário do Hospital Fêmina também foi afastado e responderá a processo administrativo pela participação em um esquema de intermediação na marcação de consultas.
O diretor superintendente do GHC, João Motta, disse que a desconfiança surgiu a partir de uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). As suspeitas viraram indícios quando alguns pacientes relataram o pagamento ilegal e citaram os nomes dos quatro médicos ao responderem a pesquisa de satisfação do SUS. Esse questionário é enviado pelo Ministério da Saúde à casa dos pacientes atendidos pelo sistema nos hospitais públicos. “Estamos tomando todas as providências para acabar com esses esquemas criminosos dentro da instituição”, afirmou Motta, acrescentando que o resultado dessa investigação será remetido ao Ministério Público para que seja aberto processo criminal.
Chantagem e propina sob o comando de médicos e funcionários
Em janeiro passado, a direção do Grupo Hospitalar Conceição afastou 15 funcionários do Hospital Cristo Redentor (HCR). Eles estão sendo investigados em sindicância interna que apura fraudes em licitações para a aquisição de órteses e próteses, no período de 2000 a 2002. O prazo inicial de 60 dias foi prorrogado por 30 dias, porque os acusados arrolaram mais de 80 testemunhas de defesa, e todas tem de ser ouvidas.
Após interrogar 43 testemunhas e analisar mais de 1,2 mil prontuários de pacientes, a comissão de sindicância indiciou 20 pessoas, entre ex-diretores, médicos e funcionários administrativos, além de dois empresários fornecedores de material para o HCR. A justiça autorizou a quebra dos sigilos bancário, telefônico e fiscal dos envolvidos. Entre os crimes investigados estão superfaturamento nas compras, pareceres técnicos dirigidos, envolvimento de médicos com empresas contratadas pelo hospital, uso irregular de enxerto mineral inorgânico e outros materiais de órtese e prótese, além de urgenciamento indevido de internações.
Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), concluída no final do ano passado, estimou em R$ 1 milhão o prejuízo do GHC provocado pela máfia das órteses e próteses, entre o período de 2000 e 2002. A inspeção concluiu que duas empresas fornecedoras foram beneficiadas com licitações dirigidas e aquisição de materiais – barras axiais e parafusos pediculares de titânio – superfaturados. Em algumas dessas licitações, os vencedores já eram conhecidos antes mesmo da abertura dos envelopes. O TCU também encontrou indícios de que nessas empresas havia parentes de médicos do HCR entre os sócios. Nenhuma delas sequer teria autorização do Ministério da Saúde para comercializar materiais ortopédicos.
Outra irregularidade apurada pelo TCU foi o desvio de materiais comprados com recursos públicos para clínicas particulares. O esquema tinha a participação de funcionários dos setores de licitação e almoxarifado do GHC. O TCU comprovou pelo menos seis casos de pacientes operados no HCR, pelo SUS, nos quais os dados dos respectivos prontuários não coincidiam com os pedidos de materiais cirúrgicos feitos pelos médicos que chefiavam os setores de órteses e próteses e de internações. Os pedidos eram sempre em quantidade maior que a de fato utilizada. Parte desse “excedente” pode ter sido desviada para as cirurgias particulares dos mesmos médicos.
A comissão que investiga essa máfia solicitou ao MS uma auditoria médica especializada para verificar a qualidade dos materiais utilizados nas cirurgias de órteses e próteses realizadas nos últimos três anos no Cristo Redentor. Foram ouvidos os depoimentos de dezenas de pacientes operados no HCR que reclamaram de problemas como desgaste prematuro, ou quebra, dos materiais e infecções.
Exceção e regra nas irregularidades praticadas por médicos
A dona de casa Marisa Iara dos Santos e o marido dela, o aposentado José Rodrigues dos Santos, movem, desde maio de 2003, uma ação judicial por reparação de danos moral e material contra o médico Renato Luiz Amaral e o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). O casal, que vive em São Leopoldo, acusa o cirurgião de tentar cobrar por fora uma operação para a retirada de pedras na vesícula de Marisa, feita no HCPA e paga pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Também afirmam que o hospital teria tentado subornar o aposentado para abafar o caso. O processo começou na 6ª Vara Cível da Capital, mas, em fevereiro deste ano, foi transferido para a Justiça Federal.
Em outubro de 2001, Marisa procurou o médico em seu consultório particular, no município de Portão, queixando-se de dores abdominais. Após os exames, Amaral encaminhou a internação da paciente ao setor de emergência do Hospital de Clínicas, onde, naquela época, era “professor-colaborador-convidado” e chefiava uma equipe de cirurgia geral. A baixa foi feita pelo SUS, na terça-feira, dia 9. Na chegada, Marisa foi submetida a uma ecografia que revelou um quadro de colecistite aguda, com derramamento da bílis e pedras na vesícula.
Apesar da gravidade de seu estado de saúde, Marisa só foi operada três dias depois, na quinta-feira, 11, após seu marido ligar para o doutor Amaral. No final da tarde, José havia sido informado pela médica plantonista da emergência de que a cirurgia da mulher seria transferida para a semana seguinte. Mas a situação mudou radicalmente com a chegada de Amaral. “Em menos de cinco minutos ele apareceu, dizendo que ela seria operada naquele dia mesmo, piscou o olho e disse que depois a gente ia se acertar”, testemunhou o aposentado. A documentação anexada ao processo comprova que todo o procedimento foi realizado no bloco cirúrgico do HCPA e teve a participação da equipe de residentes chefiada pelo médico.
Três dias depois, Amaral procurou o esposo da paciente, no leito 875A, onde ela se recuperava, e apresentou a conta: R$ 2.800,00. O pagamento deveria ser feito no seu consultório particular, em Portão, quando Marisa fosse retirar os pontos da cirurgia. No dia marcado, o casal foi ao consultório e pagou R$ 1 mil – R$ 500 em dinheiro, mais dois cheques (um de R$ 365 e outro de R$ 135). O restante seria pago em duas vezes, nem que para isso tivessem de vender um terreno que possuíam. Até aquele momento, o casal admitia o pagamento como uma coisa normal, apesar de estranharem o alto valor cobrado.