Na educação, ela começou cedo, aos 14 anos dava aulas particulares. Já adulta e formada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, lecionou pelo Brasil todo, trabalhando com teatro-educação e criatividade-educação. A escritora paulista Fanny Abramovich já escreveu para jornais e revistas, fez críticas de livros para crianças, falando do que se produzia para elas usufruírem – de brinquedos, discos e teatro até, claro, livros infantis. Fez o mesmo tipo de trabalho na televisão: na Globo e na Cultura. Fez consultoria para projetos especialmente elaborados para crianças e jovens. Isso tudo nos anos 1970. Nesta mesma época, começou a escrever para crianças e adolescentes.
Também escreveu para professores. Seu livro mais conhecido é Quem educa quem? De seus livros para jovens, os mais conhecidos são Quem manda em mim sou eu, As voltas do meu coração e Que raio de professora sou eu?. Este último título, uma novela escrita para alunos de 7ª ou 8ª séries, foi adotado na pós-graduação em Educação e foi transformado em peça de teatro em Porto Alegre, pela Companhia de Teatro Etceteratral.
Autora premiada, ultrapassou a marca 1 milhão de livros vendidos de um total de mais de 50 publicações que se dividem entre a pedagogia e a literatura infanto-juvenil. Irriquieta e apaixonada pela obra de Monteiro Lobato e leitora assídua de poetas como Lorca, Pessoa e Drummond, Cecília Meireles, Adélia Prado e Cora Coralina, Manoel de Barros, Fanny é daquelas escritoras que trabalham ouvindo música, exclusivamente jazz e instrumental.
No dia 5 de maio, Fanny esteve em Porto Alegre a convite do Sinpro/RS, para participar como palestrante do Ciclo de Palestras e Debates Fome Só de Saber! Duas horas antes de acontecer o evento no auditório do Sinpro/RS, ela conversou com o Extra Classe.
Com a autoridade de quem tem uma trajetória que se confunde com as histórias da educação e da produção cultural infanto-juvenil no país nos últimos 35 anos, a escritora Fanny Abramovich fez críticas ao Governo e à atual produção cultural para crianças e jovens no país.
Extra Classe – Como é a sua rotina como escritora e quais são seus desafios como autora de livros infanto-juvenis?
Fanny Abramovich – Rotina é uma palavra que eu não entendo. Trabalho o dia inteiro nas minhas escrivinhações, depois vou dormir; em torno de 6, 7 horas da manhã, acordo quando o sono acaba. Tenho horror de despertador. Aí vou direto ler o Macaco Simão, da Folha de São Paulo. Quando começo a trabalhar, releio o que escrevi e percebo que não tem ritmo nenhum, vou para a minha videoteca que é bem razoável, pego um vídeo do Fred Astaire e danço, danço. Quando recupero o ritmo, volto a escrever. Para mim, inventar uma história para crianças e jovens não é o complicado. O que me exige é transformar isso em literatura. Então eu faço 15 copydesk, no mínimo. No computador, eu faço um copião, é mais a idéia um pouco mais desenvolvida, e depois eu vou reescrevendo, reescrevendo a mão, porque sou das antigas, para encontrar a melodia da frase, para encontrar o ritmo, para tirar os ecos. Eu praticamente entrego o texto quando há o momento em que digo “não tem mais o que mexer”. Mexo eventualmente na linguagem, mas não na narrativa. Do lado da cama, sempre tenho um bloquinho para as anotações, onde vou acrescentando ou modificando a narrativa.
EC – Talvez você tenha sido uma das poucas pessoas que trabalhou com produção cultural infantil numa época em que isso não era falado no Brasil. Como você analisa a produção cultural atual para jovens e crianças?
Fanny – Uma lástima. É fundamentalmente burro. É o falso-corajoso-falso-agressivo, mas não tem vitalidade, não tem expressão, é copiado. É a cópia da cópia da cópia. Eu não tenho saco para assistir, mas quando eu vejo um pedacinho, fico apavorada.
EC – E o que você achava do premiado Rátimbum, da TV Cultura?
Fanny – Para ser honesta, não gostava. O Cao Hamburger e o Fábio de Souza (criadores do programa) foram meus alunos. Eu não gosto de nada que seja ensinante. Na minha literatura, isso fica muito claro que eu não quero ensinar para ninguém coisa alguma. É só se abraçar, se jogar, se aventurar, curtir, não curtir, ter direito de parar a leitura, de pular e depois voltar. Agora, ficar ensinando a fazer iogurte no meio de uma história, ou no meio interromper para explicar quem foi Pedro Álvares Cabral não é nem escola, nem televisão, nem diversão. Para mim, a coisa que mais retrata isso é o Canal Futura, que tem como slogan Uma Televisão Educativa. Primeiro, quem coloriza filme e dubla não pode dizer que é educativo, de jeito nenhum, é assassinato, e nada que seja chato pode ser chamado de educativo, e aquela programação é chatérrima.
EC – O que você sugere para os produtores e programadores então?
Fanny – Ler mais o Salinger. A história de O Apanhador no Campo de Centeio, por exemplo, não é para colocar na TV, mas para saber como os adolescentes se sentiam em relação aos nossos. É escrever para um adolescente de 17 anos e ficar com 17 anos, e lembrar o que significa espinha ou o visual que queria ter e não tem.
EC – Você costuma dizer que o autor tem que se “acriançar” para escrever ou produzir um programa de TV para criança. Mas o atual universo infantil, invadido pela tecnologia, está diferente do que era há alguns anos.
Fanny – Sim, mas o medo, a raiva e as questões da condição humana não mudam. Se você souber lidar com o que é da condição humana tudo bem. Isso não muda, mudam as relações que você tem em relação à condição humana. O medo da rejeição, a paquera no primeiro baile ou balada, as dúvidas. Mudam as modas e os modos, mas não muda o fundamental que é a condição humana. Se você eleger como seu assunto de conversa com a criança alguma coisa que é da condição humana, evidente que você vai estar pegando em algum canal dela. Eu, que lidei muito com criança, sei que ela tem irritação, é só a questão de trabalhar a irritação dentro dela, como fiz em um livro chamado Baita Irritação.
EC – Está havendo uma descoberta da literatura infantil por autores célebres em outras áreas e por artistas que não são da área. Uma lista que vai de Lya Luft (ela está preparando uma coleção de cinco livros para agosto), Thiago de Mello e Martha Medeiros até Lair Ribeiro e Madonna se lançaram como autores infantis. O que você acha disso?
Fanny – Qualquer pessoa tem uma lembrança da infância e pode colocar isso no papel. Qualquer um pode observar a reação do neto e escrever, sem ter uma trajetória de escritor de livros infanto-juvenis. Isso não contribui especialmente para a literatura ou para a criança.
EC – Você lançou recentemente, na última Bienal Internacional do Livro em São Paulo, Teimas e Birras pela editora Scipione. Há quem diga que Feiras e Bienais aproximam o futuro leitor com o autor e com o próprio livro. O que você pensa sobre isso, especialmente sobre as caravanas infantis que percorrem esses eventos?
Fanny – O que eu acho legal é a criança ou o jovem ter um contato espontâneo com o autor. Acho legal quando a criança escreve uma carta e manda aos cuidados do editor. Agora, fazer trabalho com criança dentro da escola e obrigar todo mundo a escrever uma carta não faz sentido. Não que não seja válido, mas acho que não serve para nada, absolutamente para nada. Se for muito importante para o teu editor, não custa, você vai ao evento. O meu autor predileto para criança sempre foi o Monteiro Lobato, quando eu fui aprender a ler ele já tinha morrido e não me fez a menor falta conhecê-lo. Acho que todos os autores que me marcaram pela vida afora já estavam mortos quando os descobri.
EC – Numa entrevista para a internet, você disse que os professores não têm mais curiosidade. O que está faltando para o professor ter a sua curiosidade despertada?
Fanny – Não dá para você ter um ser formador de qualquer outro se você não se pergunta, se você não se espanta, se não tem curiosidade, se você não se belisca, se não confere, se não vai. Não ter curiosidade, pensar que é impotente e contar quanto tempo falta para aposentadoria é que não dá. Não dá para ser um educador dizendo isso, é essencial; ou você tem tesão ou não tem. Se você não tem tesão para estar numa sala de aula, por favor, abra um brechó, uma tortaria, um café, é tudo digno. Mas abrir faculdade onde antes era padaria já é uma coisa maluca. Na Avenida Paulista, em cada esquina tem uma faculdade – e faculdade de tudo. Conheci uma moça que estava fazendo pós-graduação em atendimento de turismo. Desde quando para atender telefone e dar informação precisa de pós? É ridículo. É o país dos diplomas mentirosos.
EC – Mas você não acha a faculdade importante?
Fanny – Depende. Eu sou formada em Pedagogia pela USP, tive como professor o Fernando Henrique Cardoso que não me ensinou nada, absolutamente nada, mas tinha uma gravata linda amarela (risos). Eu aprendi com os meus alunos de três anos de idade. Se os alunos soubessem o quanto a gente aprende com eles, eles não pagavam escola, eles cobravam. O que eu aprendi na faculdade é igual a nada, e a mentirança é muito grande. Na verdade, depende do curso e do que você quer fazer na vida.
EC – Por falar nisso, como você, uma mulher de esquerda, vê a atuação do PT no Governo e o desempenho do Ministério da Educação?
Fanny – Vou resumir. Uma editora me procurou e disse que queria muito um livro meu em cima de Baita Irritação. Eu disse tá, mas no momento eu só tenho condições de escrever um livro que é Baita Decepção. Levei um susto em perceber que o Governo não tem nenhuma proposta. Não entendo o que ficaram discutindo durante 30 anos e agora não têm uma proposta diária. Quando eu li que o Cristóvão (Cristóvão Buarque, ex-ministro da Educação) ia ser ministro, eu disse: “Que maravilha!”. Aí vejo que ele não tem idéia de coisa nenhuma. Estou muito decepcionada.
EC – A potencialidade da linguagem é algo muito impressionante. Para você, como é escrever para crianças e jovens e como você consegue transformar o seu texto atraente através da linguagem?
Fanny – Bom, eu não escrevo deste jeito para tornar o meu texto atraente. Eu escrevo assim porque acho que é bonito, tem uma poetura, tem ritmo, tem ginga, tem cortes, tem uma coisa mais incisiva, porque eu gosto de inventar. Em termos de linguagem, eu gosto dessa coisa coloquial, mas ao mesmo tempo inventada. Eu gosto da oralidade do texto sem ter diálogo. Por exemplo, meus textos não tem dois pontos e travessão nunca. É direto na frase que todo mundo fala. Eu me preocupo também em dar uma fala e, normalmente o narrador é uma criança e os adultos não tem a menor importância. Os adultos entram, fazem, dão uma bronca e acabou. As relações e os conflitos e embates são de criança para criança, de adolescente para adolescente.
EC – Jorge Luís Borges escreveu que a imagem mais fiel do paraíso deveria ser uma biblioteca. E para você?
Fanny – Eu gosto muito de ler, mas só uma biblioteca não. Teria que ter uma videoteca, Humprey Bogart, Fred Astaire e muita planta, uma parte desse jardim aí em frente (Parque Farroupilha).
EC – Você falou em ritmo. Você costuma ouvir música enquantro escreve para dar ritmo à história? Que músicas você costuma ouvir?
Fanny – Só escuto jazz porque dá chance de mudar, improvisar. E só instrumental. Voz interfere e só gosto de jazz dos anos 1930/40 e acabou no Miles. Então os meus companheiros de madrugadas estão todos mortos. Nos períodos de escrevinhação, que pode durar meses ou anos, é só pianinho e sax.
EC – Qual o seu sentimento quando põe o ponto final numa história que está escrevendo?
Fanny – Bom, eu não faço sinopse. Lembro que, quando eu era mocinha, li alguma coisa sobre o Lobato em que ele dizia que dava gargalhadas quando a Emília aprontava alguma. Os personagens fazem o que querem, eu fico supreendidíssima a partir do momento em que me permito deixar eles terem vida própria. Eu não posso fazer sinopse porque não sei o que vai acontecer. Eu sei o norte que eu vou dar, aí eu vou anotando alguns apontamentos que podem servir para tramas ou subtramas, assim vou engravidando de idéias, de possibilidades, e vou colocando no copião. Mas tem livros que eu não tenho a menor idéia de como vou me safar do problema. Chega um momento em que eu acho que encontrei o fim. Mas o ponto final é quando a linguagem está legal, quando a trama tem um pique.