Ele pode ser chamado de o cientista da memória. Falamos do neurologista e bioquímico Ivan Izquierdo, 60 anos, argentino radicado em Porto Alegre, pesquisador e professor da Ufrgs, que está lançando um livro de divulgação científica intitulado Questões sobre memória (Editora Unisinos, 126 páginas). Trata-se de um dos mais importantes e reconhecidos cientistas em atividade no Brasil. Ele é doutor em Medicina e vem sendo o pesquisador mais citado da América Latina na área de neurologia. É autor de 470 artigos científicos que circularam com destaque em periódicos nacionais e estrangeiros.
A memória é o tema central de seus estudos há mais de 40 anos. O livro procura responder curiosidades de leigos e utiliza uma linguagem acessível, explicando, por exemplo, a ocorrência de casos súbitos de amnésia total ou de que modo o estresse afeta a memória. O escritor pontua mitos, desfaz mal-entendidos, esclarecendo dúvidas como a de que a doença de Alzheimer afetaria menos as pessoas mais intelectualizadas ou de que a nicotina seria capaz de prevenir doença de Parkinson. A obra é uma espécie de manual de uso da memória a partir das dúvidas mais freqüentes. O texto é sempre pontuado pelo bom-humor, mas falando sério. E foi nessa atmosfera que o pesquisador recebeu a equipe do Extra Classe em sua sala nas dependências do Centro de Bioquímica da Ufrgs às vésperas da sessão de autógrafos. Falou sobre sua obra, seu trabalho como pesquisador e das dificuldades de exercer sua profissão em tempos de pouca valorização do trabalho de quem produz conhecimento. Izquierdo já é um antigo freqüentador das páginas do Extra Classe. Sugerimos aos leitores complementação da entrevista que se segue com uma segunda leitura das anteriores concedidas respectivamente em junho de 1997 e abril de 2001. Por uma questão de memória, é claro.
EC – Do que trata exatamente seu livro Questões sobre memória?
Ivan Izquierdo – O livro que estou lançando trata justamente das principais perguntas que me foram feitas ao longo dos anos. São questionamentos feitos por leigos, jornalistas, universitários. Creio que saiu um livro útil. Um livro que responde o que realmente as pessoas mais querem saber sobre memória. Muitos têm receio de padecer de um quadro médico relacionado a isso, e, nesse sentido, esse trabalho é uma boa orientação.
EC – Quais as perguntas mais freqüentes?
Izquierdo – No livro são mais de trinta. A mais freqüente é: Por que surgem os “brancos”? Para responder, dou o exemplo típico de um aluno que se preparou bem para o vestibular e, quando chega no momento da prova, não lembra de nada. Ou o ator que praticou, se preparou e no palco não faz ou faz errado. Isso se deve justamente ao nervosismo, ao estresse. O estresse ativa muitas funções no organismo. Uma delas é a secreção de corticóides pelas glândulas supra-renais. No momento de muito nervosismo, ocorre isso. Essas substâncias circulam pelo sangue e atuam sobre o cérebro indiretamente, em lugares que inibem o funcionamento e o acesso a essas memórias. Então, não é que o sujeito não tenha memória, é que na hora em que é necessário invocá-la, de ser chamado a dizer aquilo que sabe, ela não vem. Melhorando a resposta da gente ao estresse, pode se reduzir o problema.
EC – Esses questionamentos ajudam o cientista a elaborar suas próprias questões?
Izquierdo – Todas as perguntas do livro foram alguma vez perguntadas e alguma vez respondidas, por mim inclusive, em palestras. Mas eu acho que os diversos grupos para os quais palestrei formularam perguntas importantes até mesmo para o cientista que trabalha nisso, no sentido de nos darmos conta de em qual terreno estamos pisando e onde temos que chegar. Temos que ir onde eventuais sofredores de problemas de memória estão, temos de tentar melhorar o exercício da memória. Temos que esclarecer temas que podem ser de interesse das pessoas em geral também. Mas o objetivo principal é o de ajudar na correção desse tipo de memória com falhas e iluminar um pouco as pessoas sobre temas científicos que hoje em dia precisamos dominar cada vez mais. Este é um mundo cada vez mais científico, cada vez mais tecnológico, e quem não acompanha isso fica perdido. O computador é uma coisa que temos de aprender a usar e ele é uma metáfora da memória. Quem não sabe está ficando fora de uma quantidade real de aspectos da sociedade, dentre eles, o emprego. Então, é bom aumentar o conhecimento científico das massas.
EC – Nesse sentido o senhor defende livros de divulgação científica, muitas vezes criticados por cientistas?
Izquierdo – Não só defendo como escrevo livros de divulgação científica. Agora, como novo diretor da Academia Brasileira de Ciência estou empenhado com o início de um programa de divulgação da ciência. Outras instituições, como as universidades, também devem trabalhar nesse sentido.
EC – A divulgação científica acompanha a produção científica no Brasil?
Izquierdo – Na medida do possível, sim. Por exemplo, há jornais de grande circulação que se especializam nisso bastante bem. Posso dar o exemplo de A Folha de São Paulo e até mesmo de Zero Hora. Neles se publicam as descobertas realizadas dentro e fora do Brasil. Existe um esforço na disseminação do conhecimento científico que deve ser incentivado e melhorado. O esforço tem de ser cada vez maior, porque o Brasil está muito atrasado nesse sentido. A população brasileira tem pouco conhecimento. Uma boa parte não lê nunca. Muitos porque não sabem, outros porque não querem. E esta população fica marginalizada por completo no conhecimento que é tão necessário para o funcionamento do mundo atual.
EC – O que o senhor poderia adiantar sobre o andamento das suas e de outras pesquisas no campo da memória?
Izquierdo – Há várias pesquisas em andamento. Uma delas procura conhecer mais substratos bioquímicos da forma da memória, de sua evocação, da sua extinção. Para isso, continuamos um trabalho iniciado há mais de dez anos, que é um dos grandes temas gerais de nosso laboratório. Mas há outras coisas que foram aparecendo. Por exemplo, a extinção, que é uma forma de “escantear” a memória. Um exemplo: podemos observar pela janela um flanelinha a receber dinheiro. E o cérebro aprende isso, a combinação dinheiro/pedinte. E depois, eventualmente a observar que o pedinte não recebeu dinheiro. E em outro dia também não. Não é que o cérebro desaprenda. Aprende uma nova associação sobre a anterior, janela/falta de pagamento. Esta informação que substitui a anterior é uma forma de escantear a memória que já não nos serve mais.
Por exemplo, um tipo de memória de uma enorme família de memória que queremos extinguir, mas não suprimir é a memória do medo. A memória do medo que não se extingue causa vários problemas, a fobia, o pânico, uma forma de ansiedade generalizada e o pior de todos: a síndrome de estresse pós-traumático. Isso dificulta a vida. A forma de tratamento para essas patologias é a extinção. É um conceito que estamos estudando profundamente e já chegamos a algumas conclusões inéditas.
EC – Há um aspecto terapêutico nisso?
Izquierdo – Sim. Se pegarmos o episódio do 11 de setembro em Nova Iorque, por exemplo, o psiquiatra pode ensinar o paciente a desassociar as cenas terríveis com as conseqüências. É como dizer que uma foto é antes de tudo uma foto, e não o fato vivido em si, por mais que ela lembre isso. Assim, o paciente passa a ver as fotos do atentado como que vê uma coisa a mais.
EC – É uma forma de banalização?
Izquierdo – Não diria banalização, mas desvalorização. O que é bem diferente.
EC – Superação?
Izquierdo – Sim. Precisamos saber reagir às situações que nos produzem medo adequadamente, pois senão morreríamos por excesso de confiança, o que é o reverso do problema. A extinção é uma maneira de engavetar as coisas que nos amedrontam e tirá-las de lá quando são realmente necessárias. Esse é um fenômeno que foi descoberto há 100 anos por Pavlov e foi muito pouco estudado. É importante conhecer os mecanismos de funcionamento para saber aplicar a terapêutica correta. Descobrir o funcionamento dos mecanismos é nosso papel de cientistas, a aplicação fica a cargo dos psiquiatras. Outra coisa que estamos descobrindo é como se organiza esta extinção, se são fases concatenadas ou distintas. Se é necessário muito ou pouco tempo para a extinção dessas memórias e as conexões necessárias em cada uma dessas situações.
EC – Mas há um estudo que traz uma grande novidade não é?
Izquierdo – Sim. Trata-se de uma outra coisa que estamos estudando que é o mecanismo utilizado pelo cérebro para aprender algo pela segunda vez. Um estudante lê uma determinada coisa e aprende aquilo. Num outro momento, ele lê novamente aquela mesma coisa para, quem sabe, aprender um pouco mais. Descobrimos que o cérebro registra esses dois aprendizados em locais diferentes. Portanto, essa segunda leitura trata-se de uma nova memória referente ao mesmo assunto.
EC – Seria como gravar o mesmo arquivo em duas pastas diferentes no computador?
Izquierdo – Exatamente. Inclusive é dessa forma que exemplificamos. Sobre esse tema acabamos de fazer sua demonstração científica e será publicado em breve. O título do artigo será a “Memória da segunda vez”. E nesse artigo o que se diz é o seguinte: se aprendemos uma vez, registramos isso no cérebro de uma forma. Na segunda vez, gravamos em outro local e de forma diferente. Isso é muito importante, pois, em caso de lesões no cérebro, agora sabemos que memórias similares às que estavam em regiões que tenham sido afetadas podem ser estimuladas em outras. É como uma cópia de segurança feita pelo cérebro.
EC – De certa forma essa tese reforça o que disse Heráclito sobre nunca ser o mesmo homem a cruzar o mesmo rio?
Izquierdo – É a confirmação científica do que disse o grego há milhares de anos.
EC – Também é esse o princípio utilizado pelas crianças que assistem várias vezes ao mesmo filme?
Izquierdo – Provavelmente sim. Até porque, na segunda vez, a mesma informação é registrada em outro local e de outra forma, porém os dois aprendizados permanecem relacionados, somando-se. A criança, suponho, quando realiza essa soma, estabelece as conexões necessárias para o entendimento do todo.
EC – Essas conclusões servem para uma terceira ou quarta vez?
Izquierdo – Não sabemos. Até agora só tivemos tempo de estudar sobre a segunda vez, estabelecendo a bioquímica do cérebro em cada um desses registros. No momento, estamos aguardando a análise laboratorial e ainda levaremos muito tempo para obtermos resultados mais detalhados.
EC – Como é a vida de um cientista em uma universidade pública brasileira hoje?
Izquierdo – Está muito difícil. Os salários ficaram extraordinariamente defasados, e os ganhos da aposentadoria foram reduzidos. Esses fatores estão dificultando a entrada de gente nova. Nos concursos, cada vez menos candidatos se apresentam porque já não se trata de uma profissão monetariamente atrativa. Outro fator que torna nossa vida difícil é que as universidades públicas estão muito sucateadas. Não há dinheiro para coisas básicas como papel-higiênico e folhas para impressora. Nós temos de trazer essas coisas de casa se quisermos trabalhar. Mas isso não é uma novidade, já ocorre há vários anos.
EC – E o financiamento das pesquisas?
Izquierdo – Pela primeira vez há um crescimento nos financiamentos para pesquisa desde que foi interrompido na era Collor. Os salários haviam melhorado um pouco no início do Plano Real, mas rapidamente se desvalorizou novamente. Outro fator que joga contra é que os insumos utilizados são muito caros e acabamos não tendo acesso ao material necessário para o desenvolvimento dos estudos por falta de recursos financeiros. A solução para isso tem sido nos associarmos com outros Estados e outros países.
EC – Existe um vácuo nas políticas para o setor?
Izquierdo – Vivemos um vácuo por muitos anos no que se refere à pesquisa, mas agora começamos a ter uma política científica definida. Porém, ainda falta o dinheiro para implementação dessas políticas. Mas isso representa um grande avanço, pois, a partir de objetivos nacionais bem-definidos, se cria um ambiente favorável para a captação e destinação desses recursos.