GERAL

O Caos e o Progresso

ENTREVISTA MANUEL CASTELLS
Keli Lynn Boop / Publicado em 7 de março de 2005

Manuel

Fotos: René Cabrales

Fotos: René Cabrales

Autor de mais de duas dezenas de livros e centenas de artigos, Manuel Castells escreveu a célebre trilogia A Era da Informação, que inclui A Sociedade em Rede (1997), O Poder da Identidade (1998) e Fim de Milênio (1998). A obra, considerada uma bíblia para a compreensão das transformações sociais recentes, é resultado de 12 anos de estudos sobre os mais variados aspectos da nova sociedade tecnológica, da história da informática às transformações no trabalho e nos costumes sexuais.

Embora o tema tecnologia sugira consultas à bola de cristal, Castells é avesso a prognósticos. “A razão é que acho que não há bases sérias e analíticas para fazer prognósticos.” Defensor do exercício da liberdade de conhecimento, expressão, criação e difusão, o cientista social é favorável à “ética hacker”, “entenda-se por hacker alguém que cria tecnologia pela paixão de inventar, pelo prazer de criar e compartilhar”, explica e propõe à mídia esclarecer ao grande público sobre as diferenças entre “hacker” e “cracker”, “software livre” e “software proprietário” e entre “pirataria” e “não-pirataria”.

Para ele, entender o software livre não é tão complicado. “É como o alfabeto. O alfabeto tem acesso livre de todo mundo.” Defensor do lema “caos e progresso” durante a 5ª edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Manuel Castells participou, ao lado do ministro da Cultura Gilberto Gil, da mesa de debates “Revolução Digital: software livre, liberdade de conhecimento e liberdade de expressão na sociedade da informação”, promovida pela organização Projeto Software Livre Brasil e pelos idealizadores do Creative Common (CC). Ao lado deles, os ícones do pensamento libertário no ciberespaço John Perry Barlow, ex-letrista da lendária banda Grateful Dead e um dos fundadores da Eletronic Frontier Foundation (EFF) – organização de defesa da liberdade de expressão na internet; o advogado Lawrence Lessig, idealizador do Creative Commons (CC); e Christian Ahlert, da BBC de Londres e do CC do Reino Unido.

À tarde, após o painel, Castells conversou com a imprensa numa concorrida coletiva na qual os ávidos repórteres tiveram direito a uma única pergunta cada. O Extra Classe esteve lá para conferir as ideias e bandeiras do sociólogo que afirma que, ao contrário do que a Microsoft tenta propagar, o movimento software livre não ataca as corporações multinacionais e o capitalismo. “Há muitas pessoas que fazem parte do movimento que são anticapitalistas, mas o software livre como tal não é anticapitalista. Pode funcionar com capitalismo ou sem capitalismo, é algo que transcende a isso.” As perguntas a seguir são de autoria do Extra Classe e de representantes dos inúmeros veículos presentes aqui transcritas.

As estatísticas apontam que hoje existe no mundo em torno de 900 milhões de usuários da internet. Mesmo assim, alguns pesquisadores subestimam o papel da rede e negam o seu caráter de meio de comunicação de massa. Qual a sua opinião?
Manuel Castells
– A internet é fundamental na atividade econômica de todas as empresas e todos os países. Fundamental na política, nos movimentos sociais, na comunicação de todos os tipos de atividades. Os sistemas de telecomunicações e a internet, que são o mesmo, são equivalentes à eletricidade da Era Industrial, o que se pode observar diante dos fatos e da análise de como funciona a economia, as sociedades, etc. Eu acredito que, quando há resistência (isso não é uma opinião, é empírico), se deve sobretudo a uma pouca compreensão do que é realmente a internet. A internet não é simplesmente uma tecnologia a mais, é um sistema de comunicação sobre o qual está baseado um conjunto das atividades da sociedade atual. A subestimação/rechaço à internet provêm da não-consideração da internet como um meio para todos e da ideia de que a internet é uma atividade especializada, é como um setor; mas não, a internet está no todo, sobretudo se por internet entendemos a rede de computadores. Diria, por outro lado, que é um tema em que há uma reação sã, eu diria compreensível, a ideologia dos futurólogos pela tecnologia, principalmente os futurólogos que no final dos anos 90 previam que a internet estaria acessível a todos, resolveria todos os problemas do homem, trazendo felicidades a todos. Como reação sã a esta ideia estúpida de que com uma tecnologia se acabariam todos os problemas, muitas pessoas, especialmente intelectuais de esquerda, reagiram a essa afirmação. Mas a internet não é uma solução, é uma infraestrutura, é uma comunicação – e essa comunicação envolve todos, envolve todos que fazem parte da sociedade –; a internet é a sociedade, é como a sociedade, expressa tudo o que ocorre nela. Como meio de comunicação, a internet é o meio mais potente que os indivíduos e a sociedade têm hoje em dia para incrementar a sua autonomia.

Vivemos hoje um processo semelhante ao processo da acumulação primitiva (expressão cunhada no século XIX, por Karl Marx, em O Capital) caracterizada pelo monopólio agrário ocorrido nos séculos XIV e XVI. Ou seja, passamos do monopólio agrário para o monopólio tecnológico das grandes corporações. Quais as formas de desmontar esse monopólio, se é que é possível?
Castells
– Gosto da comparação com o monopólio agrário. Chamo de latifundiários da Era Tecnológica os controladores da tecnologia. O que se deve fazer para evitar o controle do monopólio da tecnologia? A primeira coisa é dar-se conta da importância da questão e de que não é um assunto para especialistas. Isto é um assunto que a sociedade, entretanto, não sabe. Por que é importante o software livre? Porque a vida das pessoas pode ser determinada por quem controla e se apropria da tecnologia. Então, é preciso dar-se conta de que não é um problema tecnológico, é um problema de controle das forças produtivas da sociedade e da capacidade de comunicação autônoma da sociedade e da liberdade de expressão da sociedade. Ou seja, é todo o mundo. É economia, é comunicação, é política, é cultura. Segundo ponto, em função disso, é um movimento contra as grandes corporações e burocracias administrativas que não entendem e vão sempre pelo mais fácil. E terceiro, falta que os governos tomem consciência do que está acontecendo, que tenham inteligência e, em alguns casos, a coragem de apoiar seriamente o software livre. E nisso o governo do Brasil está se transformando num exemplo no mundo pelo apoio a uma autêntica transformação tecnológica e cultural que é o software livre, mas não está ganha a batalha, porque há uma parte do governo atual do Brasil que não entende isso.

O que o senhor destacaria como vantagens do software livre em relação aos que são comercializados?
Castells
– Podemos constatar que a qualidade técnica é superior e, além disso, a flexibilidade de sua utilização é muito maior. A possibilidade de utilizá-lo para aplicações avançadas para cada pessoa, cada empresa, cada país, é muito melhor; também por ser um movimento de elaboração cooperativo, aberto, feito com milhares de pessoas que possuem interesse e a paixão de descobrir algo novo e que contribuem voluntariamente. É evidente que, tanto como produto quanto como processo, o software livre é muito superior ao software comercial. Não sou eu apenas que penso isto, mas a Microsoft. Lembro que em 1998, em um memorando interno da Microsoft, chamado documento Halloween (porque é um documento de horror), um alto executivo da empresa citava/relatava que o software livre era pelo menos tão robusto, ou mais, que o deles (da Microsoft) e que, por conseguinte teriam uma batalha perdida, mas ao mesmo tempo organizavam uma estratégia para atacá-lo. Hoje em dia, há mais governos que dizem apoiar o software livre do que os que estão na alternativa somente dos produtos de mercado da Microsoft. Isso não é um prognóstico; já se pode constatar, entretanto (sem embargo), que não é exatamente assim, pois a Microsoft é uma das empresas mais poderosas do mundo, tem enormes recursos, influências, conexões políticas com o atual governo dos Estados Unidos e, por conseguinte, a batalha é duríssima, sangrenta. Não está ganha. A Microsoft representa um obstáculo muito sério à evolução tecnológica e à utilização livre do software.

Como o senhor define hacker?
Castells
– Por hacker entendemos, ou pelo menos eu entendo, que é alguém que crê, assim como creio, na tecnologia pela paixão de criar, pela paixão de inventar. Acredito que hackers há em todos os âmbitos da civilização humana. O hacker não age para ganhar dinheiro, ficar rico, mas fundamentalmente pela paixão de criar. Devemos criticar as generalizações feitas sobre o termo.

O que é ser um excluído digital?
Castells
– Um excluído digital tem três grandes formas de ser excluído. Primeiro, não tem acesso à rede de computadores. Segundo, tem acesso ao sistema de comunicação, mas com uma capacidade técnica muito baixa. Terceiro, (para mim é a mais importante forma de ser excluído e da que menos se fala) é estar conectado à rede e não saber qual o acesso usar, qual a informação buscar, como combinar uma informação com outra e como a utilizar para a vida. Esta é a mais grave porque amplia, aprofunda a exclusão mais séria de toda a História; é a exclusão da educação e da cultura porque o mundo digital se incrementa extraordinariamente.

Qual a sua opinião sobre os Telecentros?
Castells
– Os telecentros são fundamentais tanto em São Paulo como no conjunto do mundo, por oferecerem a possibilidade de acesso à internet a uma grande parte da população, pois é totalmente irrealista pensar que essa população terá internet em sua casa ou na escola; sobretudo os telecentros com banda larga, pois o problema hoje em dia não é apenas ter acesso à internet, mas ter acesso com suficiente capacidade. O que me parece fundamental é que os telecentros, especialmente em São Paulo, estão implantando o software livre. A maior demonstração de que o software livre pode servir para que as pessoas dos setores mais populares tenham acesso não só à tecnologia mas ao mundo da comunicação, ao mundo da informação, pode ser conseguida com seu baixo custo e aumento de sua qualidade.

Os governos em geral não têm estrutura preparada para abarcar a revolução cultural que a tecnologia da informação traz. Qual a sua opinião sobre isso?
Castells
– Estou totalmente de acordo e sou bastante pessimista. É difícil alfabetizar os cidadãos; agora, alfabetizar governos, isto sim é que é difícil (risos). Eu acredito que os governos só mudam quando não há outra possibilidade. Neste sentido, creio que, por exemplo, se pode demonstrar através de pesquisas recentes que a introdução de um câmbio tecnológico e um câmbio administrativo na administração permite aumentar a produtividade, a eficiência e a relação de satisfação com os cidadãos e, portanto, manter os postos de trabalho dos políticos. Neste momento, há, não só no Brasil, uma forte crise de eficiência administrativa em todos os governos, de legitimidade democrática e de relação entre os próprio governos, pois há uma complexidade de relação que só se pode manejar tecnologicamente. As condições são criadas para que pelo menos os governos comecem a pensar no câmbio tecnológico e administrativo, mas, para isto, é primeiramente importante o câmbio cultural. As administrações governamentais devem ter inovadores culturais que tomem a iniciativa de modernizar e alfabetizar os governos. Mas aqui se tem que ter um cuidado com uma coisa: os governos aprenderam a ter interesse pela ideologia da modernidade, o poder da internet vai muito bem nos programas eleitorais. A internet é muito interessante porque reflete muito bem a sociedade em que se vive.

Quais as características da internet brasileira hoje?
Castells
– É a sociedade mais desigual do mundo. O Brasil é um país extraordinário; sempre se fala na sua grande potencialidade, mas que nunca acontece. A internet no Brasil se divide em duas partes, em ser e não ser. Há uma comunidade pequena de 8% de internautas concentrada em Ipanema e nos Jardins, em São Paulo, culturalmente inovadora e abastada em software livre. O Brasil, em termos de criatividade no setor da comunidade de internautas, é semelhante à Califórnia. Em princípio, parece que grande parte da população brasileira está excluída da internet, mas não está. Há núcleos muito ativos, pobres por um lado, em nível social, mas educados, que tem uma grande atividade na internet e, sobretudo, há um enorme potencial. O importante é que haja uma política de uso inteligente de internet com linhas de banda larga, conexão de baixo custo, conexão na escola, liberdade de no trabalho as pessoas acessarem os seus correios eletrônicos. Nesse sentido, tenho esperança de que este governo atual entenda que a internet é tão importante hoje em dia como alfabetizar tradicionalmente a população do país.

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