Fotos:Tânia Meinerz
O parlamentar moderno sabe que tal prática não é saudável nem própria da democracia. É uma deformação. Assistencialismo, essa palavra o ofende. Por outro lado, convive diariamente com esse mar de mãos estendidas. É o caso do homem pobre do interior, que quando doente é obrigado a procurar um centro maior. Sozinho num lugar estranho, ao temor da dor, muitas vezes da morte, somam-se a solidão, a fome, a humilhação.
Foto: Tânia Meinerz
Tomemos o exemplo do deputado estadual João Osório, do PMDB. O mais votado de seu partido nas três últimas eleições, tendo recebido quase 70 mil votos em 2002. Conta a biografia oficial que “seu sonho (de criar um albergue) se fez realidade em 1995, no dia de seu aniversário, com recursos próprios e auxílio de funcionários”. Ainda: “O albergue Casa Maria da Conceição levou o nome de sua mãe, falecida por falta de atendimento médico”. Nomeado para o Tribunal de Contas do Estado, Osório abdicou do sonho, passando a Casa a outras mãos. Primeiro foi o jovem deputado Márcio Biolchi, 26 anos, 36 mil votos. Fontes de gabinete afirmam que Biolchi prometeu em campanha a criação do albergue. Mas acabou preferindo algo que tivesse sua marca desde o início: hoje mantém a Casa de Apoio à Saúde. Com a saída de Biolchi, três outros deputados assumiram a Casa Maria da Conceição: Edson Brum, Fernando Záchia e Mendes Ribeiro Filho (deputado federal), PMDB.
Foto: Tânia Meinerz
Os legisladores benemerentes
Foto: Tânia Meinerz
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Já o deputado Iradir Pietroski, PTB, atual presidente da Assembléia, não quis falar ao Extra Classe nas várias tentativas de entrevista, alegando outros compromissos. Dono de albergues em Porto Alegre e Passo Fundo desde 1993, ele já chegou a afirmar que uma das suas maiores conquistas foi livrar-se do carimbo de clientelista e assistencialista. A declaração foi feita em agosto de 2003, quando rejeitou o Projeto de Resolução 10/03, do deputado Sérgio Stasinski, PT, que tratava da regulamentação da concessão de auxílios e subvenções sociais previstos em dotação orçamentária da Assembléia Legislativa. “Votarei contra esta proposta que nos retira o direito de decidir sobre a aplicação dos recursos previstos em lei”, disse na época.
E há ainda o recordista de eleitores entre os deputados gaúchos. Vilson Covatti, PP, mais de 94 mil votos em 2002. As Pousadas Covatti, em Porto Alegre, Passo Fundo e Ijuí, teriam surgido porque o deputado é devoto de Nossa Senhora Aparecida, a quem fez promessa depois do acidente que o deixou 72 dias na UTI e um ano em cadeira de rodas. Ele criou em 94 a Fundação Nossa Senhora Aparecida, instituição a que pertencem as Pousadas, e afirma que todas as suas contas são, como é de lei, disponibilizadas ao Ministério Público. “Fazer o bem sem olhar a quem, esse é o meu lema”, salienta Covatti, que avisa: “Se alguém vier me pedir alguma vantagem aqui no gabinete, eu não atendo. Não sou assistencialista”.
Todos os deputados reafirmam a imensa gratificação pessoal que sentem com seus projetos benemerentes. Ainda assim, o tema albergues causa desconforto, sempre associado a interesses eleitoreiros. O troca-troca e partilha de albergues entre correligionários é visto com ironia por outros parlamentares, que questionam tanta sintonia no altruísmo. Já surgiram denúncias, não comprovadas, de que deputados estariam burlando filas de marcação de consultas do SUS para privilegiar seus albergados. Na época, Sanchotene Felice, PSDB, afirmou: “São denúncias irresponsáveis contra aqueles que evitam que as pessoas morram nas filas de espera”.
As misérias de cada hóspede-eleitor
Foto:Tânia Meinerz
Não é a casa da gente, mas também não é uma casa de ninguém, como os hotéis. Nas estantes, fotos de pessoas reais, bebês, grupos alegres. Há também fotos dos deputados doadores, sozinhos e sorridentes em pôsteres e adesivos. Quem vive lá, para cuidar e organizar, não são os deputados, mas pessoas de sua confiança, gente muito especial.
Como Irena, 52, uma morena bonita que mora e trabalha na Pousada Covatti. Auxiliar de enfermagem, é uma pérola de eficiência que o deputado encontrou depois de muito procurar. Irena gosta de gente e do que faz, canta músicas gauchescas que ela mesma compõe e declama sem inibições seu obituário, que ela própria escreveu. Já escolheu também seu ataúde e túmulo. Parecem precauções obsessivas, mas a morte muitas vezes entra em seu dia-a-dia. A doença que predomina entre os hóspedes é o câncer. “Se acontece com um, os outros ficam desesperados. Quando ligam do hospital, sou eu que aviso o acompanhante e ajudo nas providências.”
Foto: Tânia Meinerz
Enquanto isso, na Casa Maria da Conceição, instituição atualmente mantida em parceria por três deputados, a voluntária Jô de Oliveira, que chegou há quatro meses e já é amada por todos, causa comoção ameaçando ir embora. “Só pra implicar”, porque adora estar ali. Entre os mais antigos, João da Luz, ex-pedreiro, de São Luiz Gonzaga. Perdeu as duas pernas num acidente de trem. Cadeira de rodas, já teve cinco. A última, ganhou de uma vizinha. Sabe que tem gente que se nega a ajudá-lo quando precisa subir uma calçada? “Dizem que estão com pressa.” Nesse dia, é o cozinheiro: ensopado de aipim no cardápio.
José Marino Vargas, 61 anos – “pintor e construtor, gosto muito de rebocar também”–, tem uma sinusite crônica que comprometeu seu olho direito. Por medo de tomar friagem, usa um gorro de lã com um boné por cima. “Tem dia que ponho três chapéus.”
Foto: Tânia Meinerz
Nessa casa, certas palavras, a “daquela doença”, custam a ser pronunciadas. Eloci Oliveira, porém, não usa eufemismos. “Eu e meu filho somos HIV positivo.” Ela veio de São Francisco de Paula e dormiu na rodoviária até saber da Casa. Mas não veio só pelo tratamento. O marido, também HIV positivo, está preso em Porto Alegre. Mesmo assim, ela quer um lar, uma família. Escreve uma carta para ele, Sebastião. A carta diz: “Você precisa de mim e eu de você. Preciso de suas palavras de conforto e carinho. Vamos criar nosso filho, os dois juntos. Cuidar da casa, do piá e um do outro até morrer. Sem raiva, sem remorso, sem estupidez”. Nos albergues, as pessoas sonham como todas as outras.
Política feudal em pleno século XXI
Segundo o filósofo, ensaísta e professor Ricardo Timm de Souza, da PUCRS, autor de Ética como fundamento – uma introdução à ética contemporânea, o termo “política” deriva do grego “pólis”, que designa uma comunidade de homens livres e iguais. “Portanto”, afirma ele, “temos uma indicação muito clara de que este tema não se refere ao favorecimento de algumas pessoas ou grupos…”. No entanto, o assistencialismo que permeia a prática política brasileira, de conotações feudais, contraria essa proposição de igualdade. Ele cria duas categorias de homens: aquele que tem o poder, e barganha com isso, e aquele que solicita seus favores. Observa o autor do livro citado que: “Viver na cidade e não viver eticamente significa aquilo que temos visto a cada dia nas grandes cidades, bem como na situação micropolítica e macropolítica do mundo. Porque se pensou que se podiam estabelecer, cientificamente, estruturas políticas que, por alguma espécie de geração espontânea, dessem lugar ‘naturalmente’ a relações éticas necessárias, é que vivemos os atuais dilemas (como exemplos contundentes, a violência e a corrupção)…”. Para Timm, relações desequilibradas não podem ser corrigidas por paliativos; a sociedade deve ser “refundada” sobre bases humanas, e não sobre bases procedimentais que oscilam conforme a capacidade de negociação ou a força de uma das dimensões disputantes. Esse pressuposto, evidentemente, não exclui nenhum cidadão do exercício da participação política e da responsabilidade social. Ainda segundo o autor “é claramente perceptível que o exercício da responsabilidade social de todos e de cada um se constitui na possibilidade de concretização de uma sociedade onde as tensões causadas pela injustiça estrutural possam dar lugar à construção de um futuro socioecológico viável”.
“No entanto, o assistencialismo que permeia a prática política brasileira, de conotações feudais, contraria essa proposição de igualdade. Ele cria duas categorias de homens: aquele que tem o poder, e barganha com isso, e aquele que solicita seus favores.”
Ricardo Timm de Souza
Filósofo, ensaísta e professor da PUCRS