Albergue fazia parte do esquema que fraudava o SUS
No final da segunda quinzena de junho, o Ministério Público Estadual encaminhou à Justiça a denúncia de que uma quadrilha composta por assessores do deputado estadual Vilson Covatti (PP), médicos do SUS e um vereador, que cobrava propina de hóspedes das pousadas mantidas pelo deputado, oferecia a possibilidade para furar a fila do Sistema Único de Saúde (SUS). Ao todo são 12 os denunciados. Covatti, que é ex-presidente da Assembléia Legislativa do Estado, apesar das provas apresentadas contra seus assessores, defendeu-os publicamente em sessão da Assembléia e também a si sobre qualquer envolvimento com o caso. (Para saber mais sobre o funcionamento dos albergues mantidos por deputados, leia também Extra Classe, edição 91, de maio de 2005.) Veja a seguir o que o promotor responsável pelas investigações, Ricardo Herbstrith, diz sobre o caso.
Foto: Tânia Meinerz Foto: Tânia Meinerz
Ricardo Herbstrith – Isso surgiu em setembro de 2003, quando uma pessoa foi encaminhada para a nossa promotoria, pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, noticiando exatamente a existência de cobrança para a realização de cirurgias e outros tipos de procedimentos no âmbito do Hospital Cristo Redentor. Essa pessoa denunciava também que havia sido encaminhada a um indivíduo que faria esse agenciamento por meio dos encarregados da pousada Nossa Senhora Apa-recida, um intermediário, que é vinculado ao deputado Vilson Covatti. Trata-se de uma senhora de Horizontina, que veio para ficar na pousada, e o procedimento a que ela deveria se submeter iria demorar se não tivesse essa facilitação. Ela se inconformou com isso e sua filha veio nos procurar e, a partir de então, nós desencadeamos uma série de investigações, fizemos filmagens da própria senhora, ainda em 2003, sendo levada da pousada para o hospital, num carro pertencente a um médico, dirigido por esse intermediário.
EC – Mas como esta senhora foi abordada pela assessoria do deputado?
Ricardo – Segundo seu relato, quando ela estava na pousada, foi abordada por membros da assessoria do deputado Vilson Covatti que lhe expuseram as dificuldades de atendimento e sobre a demora deste, e que poderiam facilitar as coisas com dinheiro.
EC – Como era essa abordagem?
Ricardo – Os assessores falaram: “A gente conhece alguém que pode facilitar e encaminhá-la por um intermediário”. Essa pessoa foi até a pousada, apanhou-a, dirigindo o carro de um médico. Nós filmamos tudo. Colocamos duas equipes seguindo. O carro foi até o Hospital Cristo Redentor. Ela deu baixa através da emergência do hospital, ou seja, burlando a marcação de consulta. E ela não tinha nenhum sintoma de emergência. Deu a baixa na emergência exatamente para poder burlar. E essa era a prática.
EC – E o pedido de dinheiro?
Ricardo – Orientada por nós e pela diretoria do Cristo Redentor, ela vai “enrolando”, até que chega o momento do dia da cirurgia. São 3 horas da manhã, e ela diz: “Não vou pagar. Vou pagar só depois da cirurgia”. Nesse momento, essa senhora foi literalmente expulsa de dentro do hospital no meio da madrugada. Daí começamos a trabalhar na certeza de que o caso não era único, de que era somente um entre tantos. Nós comprovamos pelo menos 26 casos em que conseguimos juntar a cobrança de propina e as vítimas. Os outros tantos, nós não localizamos as vítimas. Ouvimos mais de 100 pessoas no interior do Estado, viajamos quase 10 mil quilômetros ouvindo gente nos lugares mais pobres do Rio Grande do Sul, montamos essa denúncia e encaminhamos para o judiciário agora em junho.
EC – Quais são os crimes que essas pessoas estão cometendo?
Ricardo – O artigo 316, delito de concussão: vigência de dinheiro por parte de funcionário público; art. 317, que é corrupção, a solicitação de dinheiro para o funcionário público (num ele exige, no outro ele pede); o art. 288, formação de quadrilha – organização de mais de três com o fim de cometer crime; e o art. 299, também do Código Penal, que é a falsidade ideológica, a inserção de elementos falsos em documento.
EC – Eles também fraudaram documentos?
Ricardo – A promotoria dos Direitos Humanos, no início das investigações, fez uma solicitação à pousada do deputado Covatti para que informasse quais eram as pessoas que estavam baixadas na determinada data. Nós queríamos a confirmação de que essa primeira vítima estava hospedada lá numa data específica. E estava, nós filmamos. Mas mesmo assim queríamos saber se a pousada nos omitiria alguma coisa. Estávamos com as investigações telefônicas em curso quando então um assessor e esse intermediário conversam, e o assessor fala: “Você vai dar uma volta nesses caras (enrolar), e vai dizer que esta pessoa não estava hospedada lá”. E mandou um documento dizendo que não estava hospedada lá mesmo. Isso é um documento falso.
EC – O senhor poderia descrever mais as provas que vocês encontraram, os tipos de diálogo…
Ricardo – As provas são as mais claras possíveis: diálogo de pessoas negociando valores, favoreci-mentos, enfim… tudo para uma condenação.
EC – E esses valores variam de quanto?
Ricardo – Variam de R$ 80 a R$ 3 mil. Muitas vezes o procedimento é qual? Furar a fila da central de marcação de consultas. A pessoa tem um câncer de colo do útero. Eles furam a central pagando 80 reais para determinado médico ou para o esquema. Esse fato de ir consultar abre já a possibilidade posterior da quimioterapia. Então, o único pagamento foi a entrada, o de furar a fila. Mas existem cirurgias de 800, 2.000 reais, e são pelo SUS, que é gratuito, mantido pelos contribuintes do INSS. Temos que pensar o seguinte: há um número limite de consultas na central. Se a fila de marcação é furada, alguém vai deixar de receber os serviços do SUS. E isso pode significar a vida ou a morte de alguém, provocada por um favo-recimento feito de forma ilícita.
EC – Vocês constataram o envolvimento não só dos funcionários da pousada mencionada, mas também de médicos do hospital. Como é que fica isso? Esses médicos estão atuando ainda?
Ricardo – Alguns estão atuando. Outros, no Hospital Conceição, já foram demitidos em decorrência da constatação das fraudes das órteses e próteses.
EC – São quantos médicos, assessores e políticos envolvidos?
Ricardo – São sete médicos envolvidos, três assessores, um vereador do interior do Estado e um intermediário.
EC – E quem mais fatura com isso?
Ricardo – Não sei dizer. Nós nos preocupamos exclusivamente com o fato de que havia pagamento para furar fila do SUS. Para quem vai o dinheiro, se é para os médicos, para o intermediário, eu não sei. Mas o fato é que houve o crime. Quem perde é o usuário do SUS.
EC – A investigação foi feita só pelo Ministério Público?
Ricardo – Na verdade ela foi feita pelo Ministério Público com o apoio de uma força-tarefa, composta por policiais civis e militares, e com o apoio fundamental do Ministério da Saúde, do INSS e de dirigentes dos hospitais envolvidos. Eles nos ajudaram bastante, a documentação vinha rápido e isso foi fundamental para a apuração.
EC – Existem casos também em Canoas?
Ricardo – Em Canoas, no Hospital Nossa Senhora das Graças, na verdade, não houve a denúncia. Nós não conseguimos localizar a vítima. Aconteceu o fato, mas não localizamos a vítima, embora tenha ocorrido cobrança de propina. Foi um caso ligado a uma cirurgia de joelho, ou algo da área de ortopedia.
EC – A maioria dos fatos está relacionada com a denúncia que já havia sido feita sobre o caso das órteses e próteses? (Leia Extra Classe edições abril e maio de 2004)
Ricardo – Não, não necessariamente, mas envolve alguns médicos relacionados a esse caso. Mas não tem relação realmente.
EC – Vocês acham que é um problema específico dessa pousada, desse albergue, ou pode ser uma prática generalizada?
Ricardo – Não sei. Nós não tivemos mais nenhuma notícia de que essa prática esteja acontecendo em outros lugares, portanto não investigamos outros lugares.
EC – Qual a pena, se condenados, os suspeitos podem pegar?
Ricardo – É uma pergunta difícil de ser respondida, pois trata-se de vários artigos, e nem todos respondem por todos os artigos que foram infringidos. Mas, no mínimo, 10 anos.
Foto: Tânia Meinerz Foto: Tânia Meinerz
Ricardo – Existem algumas diferenciações. Alguns estão enquadrados em um artigo e não nos outros. Mas com 10 anos de reclusão para os principais envolvidos. É um bom número.
EC – E para os médicos, além da pena de reclusão, existe alguma conseqüência?
Ricardo – Nós encaminhamos uma cópia da denúncia para o Conselho Regional de Medicina do RS, o Cremers, para que eles avaliem o que fazer.
EC – Uma vez feita a denúncia, a investigação se dá por encerrada ou novos fatos podem aparecer?
Ricardo – Se surgirem novos casos, será aberta nova investigação. Esta está concluída.
EC – Qual o perfil dessas pessoas que foram vitimadas pelo esquema?
Ricardo – Cidadãos pobres, muito pobres. Gente realmente muito necessitada.
EC – Esses médicos que foram afastados, respondem criminalmente também, além das demissões?
Ricardo – Isso é lá com o pessoal do Conceição, eu não saberia responder se coincide.
EC – A investigação durou quanto tempo?
Ricardo – Uns dezoito meses ao todo.
EC – Em algum momento os envolvidos perceberam que estavam sendo investigados?
Ricardo – Eles foram ouvidos, todos, aqui na Promotoria. Portanto, sabiam da investigação. Tanto que tentaram fraudar documentos para omitir a presença de uma das vítimas na pousada. Eles sabiam que a informação iria lhes comprometer.
EC – E mesmo assim as práticas continuaram acontecendo ou houve uma retração?
Ricardo – Continuou acontecendo a mesma coisa, mesmo depois de iniciarmos a investigação.
EC – Qual o caso que o senhor considera o mais revoltante? Poderia me relatar ao menos um?
Ricardo – Todos os casos. Todos são muito nojentos. Mas existe um, de um senhor do Interior, do município de Chapada, uma cidade próxima a Carazinho. Uma pessoa absolutamente paupérrima, de idade avançada. Nós não conseguimos ouvi-lo em decorrência da sua idade. Quem nos deu as informações foram os familiares, a filha dele que veio falar conosco. Ele tem um câncer em estado muito avançado, e cobraram cerca de 120 reais dele. Esse é um caso que me deixou bastante indignado. Mas todos os casos são de indignar. Não tenho a menor dúvida.
EC – As provas seriam, basicamente, o quê?
Ricardo – Depoimentos, inter-ceptação telefônica, quebra de sigilo bancário e provas documentais. Mas com a quebra de sigilo bancário nós não conseguimos grande coisa. Entretanto, com o que temos, não resta dúvida. Estamos confiantes em obter a condenação dos acusados baseada nessas provas.
O esquema denunciado
Da redação
Em junho, o Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul apresentou denúncia à Justiça sobre o envolvimento de assessores do ex-presidente da Assembléia Legislativa Vilson Covatti (PP) em esquema de fraude ao mecanismo de marcação de consultas do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com as provas apresentadas pela força-tarefa que realizou as investigações desde setembro de 2003, são 12 os acusados de envolvimento no esquema, que também implica em venda de cirurgias pelo SUS em hospitais públicos. Foram comprovados, segundo a promotoria, entre centenas de denúncias, pelo menos 26 casos em que se conseguiu estabelecer a relação de provas que ligavam o pedido de propina às vítimas, em geral hóspedes dos albergues mantidos pelo deputado Vilson Covatti (vide reportagem Extra Classe, maio de 2005).
De acordo com a denúncia do MP, há médicos ligados ao Grupo Hospitalar Conceição, um vereador do município de Revaldo, no Vale do Taquari, e assessores de Covatti, cujo gabinete também foi utilizado para telefonemas que foram gravados e servirão como prova em julgamento. Pelo esquema, pacientes eram trazidos do Interior para serem hospedados nas pousadas mantidas pela Fundação Nossa Senhora Aparecida, instituição fundada por Covatti e que mantém albergues em Porto Alegre, Passo Fundo e Ijuí. Aos pacientes, era proposto pela assessoria do deputado furar a fila do SUS diante de um pagamento feito à quadrilha para obter atendimento e cirurgias antes do previsto. Os alvos do pedido de propina geralmente eram pessoas de poucos rendimentos, e os valores eram inferiores aos que seriam cobrados na rede privada de hospitais, girando entre R$ 80 e R$ 3 mil.
As investigações da força-tarefa do MP foram realizadas com a ajuda da direção do Grupo Hospitalar Conceição (GHC) – instituição pública federal e maior complexo hospitalar do Rio Grande do Sul –, onde ocorreram as irregularidades.
O pedido de abertura das investigações partiu do Ministério da Saúde. De acordo com o Ministério Público, o acerto entre médicos e pacientes era feito por Ricardo Gaspari, conhecido na Assembléia Legislativa como Neu. Ele afirmou em seus depoimentos ser assessor parlamentar. Gaspari é conhecido por transitar freqüentemente na Assembléia Legislativa, mas sem ostentar cargos. Já foi funcionário do próprio Grupo Conceição. Outro suspeito é Edson Roberto Cavalheiro, o Beto, assessor parlamentar de Covatti. Os médicos Carlos Garcia Cademartori, Ilídio José Theisen, Mauro de Oliveira Lucas e Jeorge Affonso da Sileviero Scheiner, também citados no caso, já foram demitidos do GHC por suspeita de envolvimento em outros atos de fraude (órteses e próteses) – vide Extra Classe de abril e maio de 2004. Também estão entre os suspeitos outros médicos e auxiliares.