Extra Classe – Para que serve o serviço secreto brasileiro hoje, a Abin?
Lucas Figueiredo – Essa é uma boa pergunta. A minha opinião é que não serve para nada. É um organismo que possui um orçamento de 40 milhões de dólares/ano, retirados do orçamento da União, que é dinheiro proveniente de impostos, nosso dinheiro, e que fica elegendo cidadãos brasileiros para investigar, para buscar um inimigo que, na verdade, não existe. Em geral, nos países democráticos e desenvolvidos, os serviços secretos servem para prevenir contra os chamados inimigos externos. E quem seriam esses inimigos? Empresas estrangeiras interessadas em fazer biopirataria ou espionagem industrial, Estados com interesses contrários aos brasileiros e espiões estrangeiros que atuam livremente em território nacional, assim como acontece em outros países. No caso da Abin, 98% de sua energia é gasta contra o inimigo interno e apenas 2% para combater o externo.
EC – E quem é o inimigo interno?
Figueiredo – Somos todos nós, potencialmente. Quer um exemplo? Se nessa entrevista eu disser alguma coisa que possa ser entendida como uma ameaça às forças armadas, ao governo, ou à própria Abin, posso virar alvo do monitoramento do serviço secreto, assim como o próprio jornal.
EC – Com o lançamento do livro, o senhor também se tornou alvo deste monitoramento?
Figueiredo – O que posso dizer é que todos os lançamentos que fiz em Brasília, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte contaram com a presença de agentes da Abin, sob disfarce ou não. Muitos ainda fizeram questão de se apresentar a mim identificando-se como agentes.
EC – Existe uma herança do período da ditadura, quando o serviço secreto ainda se chamava SNI? Não apenas ideológico, mas humano?
Figueiredo – Existe herança forte desse período, mas, na verdade, também há uma tradição muito consolidada de tempos que precedem esse momento histórico, que diz respeito às próprias origens do serviço de inteligência lá no início da República. Essa busca por esse inimigo interno que não existe já ocorre desde 1927. Inclusive, em todos os governos democráticos esse expediente permaneceu funcionando da mesma forma. No período da ditadura ficou mais visível porque o regime entrou em guerra contra esse inimigo interno. Por isso, o SNI teve um papel muito forte. Mas a preocupação com esse inimigo existe de 1927 até os dias de hoje.
EC – Então é algo que está arraigado na cultura da Instituição?
Figueiredo – Eu diria que o serviço secreto tem uma cultura castrense, que é um outro desvio. Trata-se de um órgão civil ligado a um órgão de cultura militar, o Gabinete de Segurança Institu-cional (GSI), o novo nome da Casa Militar. Então, todos os comandantes, os chefes máximos do serviço secreto brasileiro são militares até hoje. Como o militar não possui um inimigo externo visível, ele busca um interno, pois já está adestrado para fazer a guerra.
EC – Como o senhor compara a atuação da Agência nos governos FHC e Lula? No que resultaram as atuações nesses dois períodos em que o próprio governo era alvo em vários episódios?
Figueiredo – Com o Fernando Henrique na presidência, o serviço secreto volta a crescer muito. Lembrando, obviamente, que durante a ditadura o serviço secreto virou um grande monstro, que foi o SNI, com 5 mil funcionários, ocupando uma área só em Brasília que precisava ser medida em alqueires e que pariu dois presidentes da República. Quando termina a ditadura, esse organismo continua grande e muito ligado à área militar, tanto que foi um general que ficou no comando, Ivan de Souza Mendes, um especialista em conspirações, que atuou desde o Golpe de 64 até a diverticulite de Tancredo Neves. Porém, no governo Collor, o serviço começa a cair um pouco, quando o presidente faz aquela encenação de que iria acabar com o SNI. Na verdade, ele muda de nome e encolhe. Mas com FHC, volta a crescer muito e a ser reaparelhado pelas forças armadas.
EC – É aí que começa a guerra interna no seio da Abin?
Figueiredo – Sim. Podemos comparar a Abin aos Bálcãs. É no período de FHC que começa uma guerra interna entre vários grupos que se digladiam pelo poder. Desde então, há uma disputa entre os concursados civis da nova guarda, os militares, os civis da velha guarda, o pessoal da academia e os maçons. Há mais grupos, mas esses são os principais. Desde então, o governo não tem controle sobre os chefes do serviço secreto.
EC – É correto dizer que alguns grupos, como maçons e militares, desde o período do Império fogem do controle do Governo?
Figueiredo – Exatamente.
EC – Como se deu esse descontrole?
Figueiredo – Para se ter uma idéia, o SS grampeou o próprio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Com vazamentos de informações, foi responsável pela queda dos três últimos chefes do órgão. Desde FHC aquilo está completamente sem controle. Quando eles se sentem pressionados pelo governo ou pelo seu chefe, eles se voltam contra o governo e contra os próprios chefes. É um navio à deriva dentro do Estado.
EC – É o ovo da serpente?
Figueiredo – Sem dúvida.
EC – A quem serve o SS?
Figueiredo – O serviço secreto serve a si mesmo e aos seus grupos. A cada momento uma facção está tentando chegar mais à frente que a outra. Se observarmos, no governo FHC tivemos o problema dos grampos no BNDES, que foi feito por um membro da ativa da Abin, que já foi condenado em última instância, conhecido como agente Telmo. No governo Lula, temos o caso Waldomiro Diniz, com o episódio daquele vídeo feito no aeroporto de Brasília, que mostrava Waldomiro entregando uma mala para um outro sujeito. Aquilo foi feito com participação de agentes da Abin. E agora o caso dos Correios. Aquela fita tem a participação de, pelo menos, ex-agentes, mas com uma suspeita muito grande de ter sido comandada pelo SS.
EC – O serviço secreto estende seus tentáculos nas outras polícias e outros órgãos?
Figueiredo – Existem tentáculos espalhados por toda a sociedade. Não só há agentes infiltrados como a agência paga informantes. Então podem ser recrutadas pessoas em qualquer lugar.
EC – Como se deu a ascensão do SS?
Figueiredo – A ascensão do serviço secreto brasileiro tal como o conhecemos atualmente tem muito a ver com a visão norte-americana desenvolvida e exportada para o mundo durante a Guerra Fria. A configuração política mundial levou os países que não têm bomba atômica a cuidarem do próprio quintal enquanto os EUA faziam a grande guerra. Quando o Brasil escolheu viver sob o guarda-chuva dos Estados Unidos, optou pela guerra interna, suja, que se proliferou pela América Latina inteira, com as ditaduras militares. Essa configuração deu condições para um grupo clandestino atuar à margem da Lei e instituir uma cultura que é muito forte no seio da Abin até hoje.
EC – Nessa disputa de poder interno da Abin existe alguma afinidade partidária com forças políticas externas à agência?
Figueiredo – Acho que não, o serviço secreto, desde a ditadura, tem vida própria.
EC – Como o senhor classifica os diferentes períodos do SS?
Figueiredo – De 1927 a 1964, o organismo vai desenvolvendo uma cultura que desabrocha com a criação do SNI. Mas, mesmo durante a ditadura, todas as vezes que generais peitavam o serviço secreto, o SNI se voltava contra os generais também. Isso aconteceu com Costa e Silva, quando resistiu ao AI5. Médici, que na época chefiava o SNI, fez ameaças a Costa e Silva. Isso também aconteceu com Geisel e Figueiredo. Então, dá para ver que eles desenvolveram uma vida e uma cultura próprias.
EC – Que cultura é essa? Quais seus ingredientes?
Figueiredo – Dá para dizer que 70% são a cultura das forças armadas, pois a Abin atua como um braço militar e os outros 30% são forjados pelos interesses do próprio serviço secreto, o que inclui os próprios civis. Eventualmente, pode ser interessante defender o Lula e em outro momento enfraquecê-lo. Tudo vai depender dos interesses estratégicos da própria Abin. Sempre lembrando que não se trata de um organismo sólido, homogêneo. Trata-se de uma organização fracionada e cada facção também tem seus próprios interesses.
EC – É possível governar em meio a tantas conspirações?
Figueiredo – O que todo presidente procura fazer é estabelecer um pacto, uma espécie de acordo com a Abin para uma coexistência mais ou menos pacífica, mas nem sempre isso é possível.
EC – Então a Abin disputa com os outros poderes?
Figueiredo – De fato, o serviço secreto é um poder paralelo e se vê como tal. Pois é um órgão público que não está à mercê dos seus chefes, nem do próprio presidente da República, e não responde a nenhum outro poder. Então é um poder em si. Ele inclusive grampeia o presidente e faz vazar esses grampos. Da mesma forma, faz isso com outros poderes, mesmo não sendo instituído para isso, pois existem competências da Polícia Federal, do Ministério Público e de outras instâncias para realizar investigações dentro da institucionalidade.
EC – O serviço secreto é uma anomalia no ambiente democrático?
Figueiredo – Sem dúvida. A sua existência demonstra que saímos da ditadura há 20 anos, mas ainda não atingimos a democracia plena. Continuamos em uma transição democrática, entre outros motivos, por causa do desenho institucional que temos no serviço secreto. Estamos vagando em algum lugar entre a ditadura e a democracia.
EC – Qual é o papel do serviço secreto brasileiro na atual crise política que envolve o governo e o Congresso?
Figueiredo – Num primeiro momento, ele atua como um agente da crise. No mesmo instante em que o vídeo é feito por um ex-agente do SNI, se sabe que havia uma investigação oficial da Abin para investigar corrupção nos Correios. O que, no mínimo, é muito suspeito. E agora, nesse momento, a Agência atua como um órgão que tenta empurrar para debaixo do tapete as denúncias contra o governo. A Abin se vê enquadrada pelo próprio status, não pelo presidente, mas pelo seu staff interno, já que, com o desenrolar da crise, o serviço secreto ficou muito exposto. Então, para eles, passou a interessar que a crise acabe logo.
EC – O tema do seu próximo livro é a atual crise política, que já está prestes a completar três meses. Qual a sua visão desse cenário, considerando a posição de observador privilegiado por informações a que a maioria da população não tem acesso?
Figueiredo – Eu acho que essa crise se difere da crise do Collor, porque dessa vez trata-se de uma crise ins-titucional mesmo. Todos os agentes envolvidos e a forma como ela se desenrola mostram que o nosso sistema político está podre. Na época do Collor, era um grupo que tinha chegado ao poder e se dado o direito de assaltar o Estado. Agora não é um grupo. É um partido político, talvez o mais tradicional, em termos de concepção, base, com verdadeira inserção na sociedade. E esse partido se deixa envolver em um modo de fazer política preexistente à sua ascensão ao poder e que está presente em todos os níveis de poder, que já faz parte de uma cultura política. O fato desse partido ter se rendido ao modus operandi de fazer política por meio de corrupção mostra que o nosso sistema político é um sistema corrupto em sua essência. Esse sistema já está esgotado e incapaz de reformar a sociedade por ser visceralmente corrupto. Não importa mais qual partido detenha o poder, pois esse poder é corrupto.
EC – Existe um vácuo institucional? Como dar respostas à crise?
Figueiredo – Existem duas questões principais que precisam ser atacadas. Primeiro, o financiamento de campanha. As campanhas eleitorais viraram realmente uma coisa milionária. Aí, como é preciso muito dinheiro para se chegar ao poder, cria-se aquela desculpa de que, como é preciso muito dinheiro, acaba-se fazendo corrupção em função disso também. Então, tem que se pensar uma outra forma de financiamento das campanhas. A outra coisa é uma reforma partidária. Precisamos de uma estrutura que crie partidos sérios. O que existe hoje é uma farra. O cidadão se elege por um partido e, querendo, pode trocar uma vez por mês livremente. Isso é inconcebível. A reforma política precisa obrigar o político a ter um patamar mínimo de princípios.
EC – Dados os fatos apresentados até agora, qual a sua perspectiva?
Figueiredo – É muito difícil falar que vai acabar em pizza, embora seja a tentativa hoje de todas as forças políticas. Pois essa crise adquiriu uma dinâmica que torna essa possibilidade difícil. Há um temor generalizado entre os políticos de que os respingos caiam em si. Por outro lado, às chamadas elites do Brasil já não interessa levar a crise às suas últimas conseqüências, até porque em algum momento vai precisar aparecer a figura do corruptor. De onde saíram tantos milhões de reais? No caso Collor, os corruptores nunca foram punidos, e essa crise caminha para isso uma vez mais. O que pode ocorrer é uma relativização da pizza.
EC – É verdade que o chefe do GSI, o General Armando Felix (ex-Casa Militar), órgão a quem a Abin está subordinada, nomeou uma ex-espiã que, no passado recente, disfarçava-se de repórter para monitorar Lula e o PT em reuniões, justamente para cuidar da segurança do presidente em áreas reservadas de Brasília?
Figueiredo – Isso mostra que o serviço secreto ainda tutela os governantes. Ele se coloca à parte do Estado. Inclusive, se coloca além do Estado. Quando é conveniente para o SS colocar uma pessoa que vai ficar na ante-sala do presidente da República, uma pessoa que no passado investigou o presidente, mostra que esse serviço quer não só monitorar a sociedade como todos os poderes constituídos.
EC – Qual foi o maior erro do atual governo no que se refere às políticas de inteligência?
Figueiredo – O principal erro foi não ter implementado o plano que o PT tinha de desmilitarizar o serviço secreto e impedir que ele tivesse atuação interna, a exemplo do que acontece no Estados Unidos, França, Alemanha, Holanda e Japão, onde esses serviços estão voltados para inimigos externos. Para os inimigos internos existe o Ministério Público, a Polícia Federal, as outras polícias, a Justiça, que são órgãos sujeitos a desvios, mas que possuem mecanismos de correção muito mais claros e facilmente identificáveis pela sociedade. Se você tem uma reclamação da polícia, você vai à corregedoria. Se você tiver alguma coisa para reclamar do serviço secreto, vai recorrer a quem? É o único órgão do Estado que não possui controle externo. Existe uma comissão do Congresso instituída em 1999 para fiscalizar o trabalho da Abin e essa comissão até agora sequer votou seu regulamento interno. O serviço secreto brasileiro continua sem nenhum tipo de fiscalização. Não há controle interno nem externo. O que existe no Brasil hoje é espionagem fora de controle, em todos os sentidos.
EC – Quem deveria estar sendo observado pela Abin?
Figueiredo – A Abin deveria estar com suas atenções voltadas para fora. Temos tantos inimigos aí que atentam contra os nossos interesses. O serviço secreto, por suas características históricas, encarrega-se desse serviço sujo que envolve espionagem e contra-espionagem, mas com alvos externos, não internos.
EC – A Abin tem algum mérito?
Figueiredo – Acho que não tem mérito nenhum. É só uma eminência parda na democracia.