Rovílio Costa, eleito patrono da 51ª Feira do Livro de Porto Alegre depois de três indicações, é frei Capuchinho, tendo sido ordenado sacerdote em 1960, formado em Pedagogia, Filosofia, Teologia, com mestrado em Psicologia Educacional e livre docente em Antropologia Cultural e Religiosa (professor aposentado da Ufrgs). É vigário da Paróquia Maronita, Nossa Senhora do Líbano, em Porto Alegre. Não bastasse isso, é fundador e editor da EST Edições, editora pela qual já lançou 3 mil livros de dois mil e seiscentos autores. O material trazido à luz pela incansável dedicação aos livros é utilizado como fonte de pesquisa de renomados autores de ficção e pesquisadores, cujo enfoque é a formação étnica do Rio Grande do Sul. A entrevista a seguir foi concedida em uma manhã de outubro em sua residência e sede da editora que dirige há vários anos. O local escolhido, uma peça no coração da casa, em uma mesa, com uma cuia de chimarrão ao centro, cercada de prateleiras abarrotadas de documentos sobre o período da escravidão e cartas de alforria. A casa, localizada no bairro Partenon, tem livros por todos os lados. Desde a entrada, passando pelos corredores, quase não se enxerga as paredes. O espaço só é dividido com os gatos, animais que contam com mais do que simpatia do Frei, que possui dois em espécie e uma sala dedicada a fotos dos bichanos, bibelôs, lembranças e souvenirs que lhe são presenteados, todos sobre o tema felinos. Apesar da quantidade de livros e documentos históricos que cercam o cotidiano de Rovílio Costa física e intelectualmente, ele logo desmistifica: “Não pensem que passo o tempo todo lendo, afundado em literatura e pesquisas. Meu interesse principal são as pessoas, a vida real. Fazem uma idéia errada a meu respeito”. Ele escreve textos sobre teologia, história, genealogia, municípios e famílias. As publicações editadas pelo Frei versam na maioria dos casos sobre etnias e estudos rio-grandenses e brasileiros. Atualmente, está em andamento uma obra sobre africanidade durante o período da escravidão.
EC – A eleição para patrono da Feira do Livro deve ter mudado bastante a sua rotina?
Frei Rovílio Costa – Essa é a terceira vez que eu concorro e sempre gostei mais de dizer que prefiro ser patronado a patrono, no sentido de que eu prefiro a avaliação do meu trabalho, e não uma homenagem. Uma homenagem te deixa parado no tempo, já que não se sabe se ela é simplesmente uma demonstração de compaixão da comunidade com alguém que está em fim de carreira. Uma homenagem geralmente se faz para aquele que está caminhando para o depósito de ferro velho (risos). Quanto à rotina, eu ocupava até mais tempo antes do que agora, sendo patrono da Feira. Em termos de ocupação de idéias, eu tive de abandonar completamente aquilo que estava fazendo, ou fazendo em horários fora do expediente, já que estou agora o tempo todo dando entrevistas (mais risos).
EC – Como o senhor define seu trabalho?
Rovílio – Meu trabalho é singular sob certos aspectos – é praticamente o único segmento que faz esse tipo de trabalho de resgate da genealogia, da documentação, inclusive total, não apenas no sentido de fazer uma pesquisa sobre cartas de alforrias com 50 cartas. No trabalho que estou fazendo agora, eu já tenho 10 mil transcritas, só de Porto Alegre, e a cada dia descubro mais. Então, com esse nível de detalhamento, sempre há uma visão muito mais objetiva, mais clara. O que quero dizer é que devemos, de fato, dar importância significativa para, com isso, radiografarmos os caminhos em que estamos andando com mais rigor.
EC – Surpreendeu-lhe ter sido escolhido como patrono?
Rovílio – Eu fiquei surpreso com a pesquisa da Rádio Gaúcha. A pesquisa perguntava quem deveria ser o patrono da Feira do Livro, e eu tive 76% de votos. Essa avaliação é interessante, porque a eleição foi feita por uma câmara muito diversificada, composta por políticos, autarquia, Câmara do Livro, intelectuais, universidades, academias, etc., e eles eram justamente os que menos entendiam e percebiam meu trabalho. Então isso também foi importante porque eu jamais esperava que esse grupo votasse em mim. De certa forma, vejo essa escolha como uma homenagem, um reconhecimento, embora eles não reconhecessem o meu trabalho. Não fariam uma homenagem por eu ter 60 anos, por ser um frade ou por ter lançado um livro sensacional na Feira do Livro, até porque não publiquei nenhum. Então, para mim, a razão é o tipo de trabalho que estou fazendo. É um desafio para continuar esta atividade. Essa é minha leitura.
EC – O senhor definiu o seu trabalho como uma atividade sui generis no meio literário gaúcho. Como o senhor definiria a atividade que vem desenvolvendo ao longo dos anos? Esse trabalho é marginal no cenário cultural?
Rovílio – Eu iniciei em 31 de janeiro de 1973. Comecei a trabalhar pensando o seguinte: vou tentar trabalhar com poucas idéias. Eu até não gosto que as pessoas me dêem sugestões para isso ou aquilo, porque parece que a idéia que vem do outro é algo que ele próprio deveria fazer. Eu não sou obrigado a fazer tudo. Então, trabalho com poucas idéias e não dou importância a críticas. Não vou defender meu trabalho sobre hipótese alguma. Eu vou fazê-lo, porque, quando eu publiquei A súmula teológica, me perguntavam: “Qual é a tua?”. Num momento em que se discute a teologia da libertação, publicar um livro de teologia medieval? Que foi durante muito tempo importante, mas que hoje não tem sentido nenhum? Por isso eu publico com o meu dinheiro e minhas idéias. Aqueles que eram medievalistas nunca foram e não são, nem os bispos e nem os padres, porque se dominassem perfeitamente a teologia medieval seriam outros bispos e outros padres. Hoje são médicos, literatos, pensadores, leigos, cristãos e não-cristãos (admiradores desse pensamento). Eles são velhos hoje, e as universidades abandonaram a filosofia medieval. Publicando A súmula, consegui registrar o material de um intelectual de 80 anos, como era Alexandre Corrêa, que fez a tradução que levou 13 anos para ser concluída.
EC – A gente acaba tendo acesso a esse material por referência de historiadores a outras obras?
Rovílio – As pessoas em geral nunca leram, nem ouviram falar. Apenas receberam comentário em sala de aula, quando muito. Isso não é conhecer teologia medieval. O Alexandre Corrêa traduziu esse material em 13 anos, obrigando-se a traduzir um artigo por dia. O José Clemente Pozenatto lê todo esse trabalho como ferramenta para a ficção, o que quer dizer o reconhecimento de uma elite que percebe o valor desta tradução, embora não tenha convicção em se dedicar para este tipo de trabalho. Eu até penso que poderia me dedicar para ficção, e faria um livro bem interessante. Só que no momento a prioridade não é essa.
EC – Por quê?
Rovílio – Se eu começasse a escrever um livro de ficção, ficaria o dia inteiro preocupado em continuar aquela pesquisa genea-lógica. Isso dá um estresse mental que impede a pessoa de dormir, de ter sossego.
EC – Qual o principal enfoque dos livros e dos autores que o senhor publica?
Rovílio – Basicamente sobre colonização e povoamento do Estado. A diferença é que para publicar por nossa editora não precisa ser acadêmico. Muitas vezes são moradores de uma determinada cidade que têm interesse em fazer o registro das suas pesquisas, na maioria sem rigor científico, mas geralmente são relatos valiosíssi-mos para os pesquisadores.
EC – Como isso começou?
Rovílio – Na metade da década de 70 eu publiquei um livro sobre os 150 anos de imigração alemã e 100 anos de imigração italiana, polonesa, suíça e depois das minorias. O professor Olivio Manfrói estava na França fazendo tese de doutorado e escreveu Imigração e colonização italiana no Rio Grande do Sul: implicações políticas, sociais e econômicas. E eu fui rapidamente preparar esse livro a fim de ser avaliado em um concurso de monografias, que acabou conquistando o segundo lugar. O primeiro foi de Tales de Azevedo a quem eu, quando era estudante de Teologia, havia propiciado os documentos para os preparos de seu livro Italianos e gaúchos, documentos escritos pelos frades franceses, mas que mostravam o Rio Grande do Sul de maneira fantástica, sobretudo a imigração italiana, onde eles foram trabalhar.
EC – Existe uma tendência a se avaliar as questões históricas a partir dos fatos excepcionais?
Rovílio – Na época eu pensei: se eu pego esse livro e entrego para a minha mãe, o que vai significar para ela – “O que está falando isso aqui?”. Minha mãe não iria ler. Eu quero escrever algo que seja agradável para todos. Então cheguei a uma grande conclusão: nós trabalhamos com o excepcional da cultura e propomos isso como natural e normal. Todos nós nascemos com o hábito da leitura, é só não cultivar a morte do hábito da cultura. Todos nós nascemos curiosos. Se você coloca uma criança diante de uma floresta de livros, você vai ver como ela olhará para todos eles, ainda mais se tiver desenhos, animais, etc. Poderá notar por onde ela desenvolve sua curiosidade, por onde ela desenvolveria sua cultura. Aí o leitor já nasceu, visto que todos nós nascemos com o hábito da leitura porque nascemos com o hábito da curiosidade. A partir do momento em que você desenvolver essa curiosidade de uma maneira mais científica, sistemática, indo para o acadêmico, você garante o leitor para toda a vida. Mas no instante em que você impõe critérios de instituição, da educação, você mata o significado da cultura. Por exemplo, a Revolução Farroupilha: nós todos nos tornamos revolucionários durante a Semana Far- roupilha; você aprova uma revolução? Mas se criou uma idéia tão boa, tão positiva, de que numa semana, todos os anos, alguns de nós são revolucionários. Durante as comemorações uns dizem: “Isso é ingenuidade, isso é frescura, isso é gauchismo, isso são tradições obsoletas, isso são invenções”. Mas tem acampamento, tem chur-rascada, tem charque, tem carreteiro, tem comes e bebes, tem danças, tem prendas, tem passeatas, tem cavalgadas. Ora, tudo isso é positivo, isso é o que interessa: que cada fato não seja a morte de si mesmo.
EC – Mas esta é uma visão mais popular, não é?
Rovílio – Quando você pega a Revolução Farroupilha, ou qualquer outro fato histórico, conforme o historiador e o crítico, um vai demolir, o outro vai ideologizá-la fora da concretude, e mesmo se a concretude dela era de parte do Rio Grande, era verdadeira ou falsa, isso passa a ser menos importante diante do que ela desencadeou. Se você olhar a escravidão, ninguém vai dizer que foi um fato positivo da história se a escravidão em si é um fato negativo. Mas, se eu for estudar a africanidade que nós temos, o Brasil é um país negro, a fertilidade do negro é muito maior que a do branco. Nós somos um país africano. Se você olhar a escravidão e dizer que é a favor, ou dizer que não podia ser diferente, tem que interpretar com as idéias daquele tempo, não adianta interpretar com as idéias de hoje. Você vai ser antinegro se ficar só enfatizando o fato negativo por ser vítima da escravidão. Um dia eu perguntei para uma menina negra de trancinhas compridas quanto tempo ela levava para fazer aquelas tranças. E ela me disse: “Olha professor, a gente não faz num dia. Começamos fazendo uma trancinha. Então você pode ir para a rua com aquela trancinha. Depois você faz quatro e pode ir com as quatro. Mas isso precisa de quase 12 horas para fazer as quatro e mais uma do meio”. Se eu fosse o papa, disse a ela, eu a ia canonizar como a padroeira da vaidade. E ela achou muita graça e perguntou o que queria dizer com aquilo. E eu respondi: “Não pense que ser vaidosa seja algo negativo. Eu te canonizaria pela virtude da vaidade, de você se apresentar tão bem e dizer ‘eu sou negra, estou aqui, sou diferente dos outros e meu cabelo também é diferente, penteado e preparado diferente de qualquer outra pessoa’”. Outro exemplo: o patrão de escravos. O patrão vai querer que você esteja bem de saúde, senão você não vai trabalhar. E que você tenha habilidades, senão ele não vai poder te vender. Será que havia patrões tão burros que pegavam um escravo, deixavam passar fome e depois ele não poderia fazer os trabalhos que deveria fazer? Então parece que devia haver também uma certa convivência agradável para que o trabalho não fosse carregado de sentimento de vingança contra o patrão. Reconstituir a vida naquela época exige uma observação completa sobre os documentos existentes para que possamos avaliar antropologicamente como as coisas se davam. Isso seria uma maneira de ver a possibilidade de se encontrar grupos de descendentes de negros que tivessem relações com descendentes de proprietários. É um aspecto superinteressante para ser analisado.
EC – É nesse sentido que vai o seu trabalho atual?
Rovílio – Não, meu trabalho, em primeiro lugar, resgata índices sobre negros. Ele vai na linha do resgate das cartas de alforria, compras e vendas, habilidades, propagandas no comércio de negros. A Santa Casa foi uma grande fonte de material, pois foi no período da escravatura o maior reduto de-mográfico epidemológico do Estado, porque era o único hospital e, também, o único cemitério; o mandante do enterro, quem acompanhou se foi enterro religioso, se teve ou não, quando foi tumulado, etc. Há um caso, por exemplo, de uma epidemia em Porto Alegre, onde em determinados dias foram recolhidos até 20 mortos na rua e tumulados. E nesse percurso todo, o negro não morreu, sobreviveu. O status junto ao proprietário, as conversas, as histórias, as danças, o canto, os malabarismos dos negros, tudo isso são grandes valores que estão nesse povo: a simplicidade, a linguagem direta, a capacidade de se importar não somente em comer e beber, mas em conviver. Eles nos apresentaram a cultura da celebração do convívio. Para chegar a esse resgate se deve chegar à coisa escrita. A bíblia escrita – em sentido figurado – é o corpo, a bíblia vivida é a alma. Você trazer os fatos para a bíblia vivida é o meu objetivo. Não ver o escrito como um motivo para eu fazer uma tese acadêmica, mas fazer do texto e da tese acadêmica uma proposta de revitalização destes fatos.
EC – E que mitos há nessa concepção histórica sobre a vida das pessoas que o senhor tem constatado por meio do seu trabalho?
Rovílio – Acho que o maior mito é o de o gaúcho estar perdendo medo do mito. Há um momento em que tem mito de gaúcho, e há um momento em que ele tem vergonha do mito do gaúcho. O intelectual também precisa dizer “eu sou gaúcho”. E esse mito existe, mas não é agradavelmente explicitado. Com os italianos, ele existe na forma de vergonha. A campanha de nacionalização do Estado Novo, enquanto proibiu falar alemão, polonês, italiano, falar qualquer idioma, criou dupla vergonha. Eu vou para escola, pois não sei falar português, e sou proibido de falar polonês. Então, nesse momento não sou polonês e não valho nada como brasileiro. Criou-se essa vergonha. Para o gaúcho é a mesma coisa. O resto do país o vê como grosso. É, ao menos, o que há no subjacente, como ridículo na nossa cultura, nossas ações, nossas danças, etc. Na semana da Revolução Farroupilha há muitas pessoas que aparecem de bomba-cha na rua, mas outros gostariam e não tem coragem de fazê-lo, e criticam aqueles que aparecem vestidos. Esses são exatamente aqueles que realmente têm vontade de aparecer assim. O grande mito, então, é o gaúcho acolher seu próprio mito de ser gaúcho.
EC – No seu trabalho de pesquisa, de recuperação da documentação referente à população negra, principalmente no Estado, onde o senhor já chegou? O que o senhor já concluiu? Onde o senhor quer chegar?
Rovílio – Ainda nada. É uma questão muito vasta. Eu quero poder dizer “a documentação negra está aí”. Não a documentação negra no sentido negro, mas no sentido da africanidade. Cabe aos intelectuais e pesquisadores darem corpo a isso. Quanto mais idéias diversificadas surgirem, melhor, porque daí provoca o debate. E quanto menos fizerem teses ideo-logizantes melhor, porque, na hora que você fechar o mercado, transforma o negro e a história da escravidão numa história didática, que vai ser passada. O aluno vai aprender tudo sobre o negro. Quanto mais aberto ficar, melhor. Na hora em que você coloca toda a documentação, todos vão ter medo de fechar a porta, pois terão de conferir todos os lados, já que a documentação estará acessível. Se você olha a maneira como estão xilografados, vai ficar apavorado. Como é possível tirar alguma coisa daqui? Quando o Décio Freitas escreveu Crimes da Rua do Arvoredo, ele foi ao documentário, mas ele já estava transcrito. Então foi fácil elaborar o texto de ficção. Mesmo assim, com o documento, ele cometeu um equívoco na hora em que afirma que houve uma continuidade de crimes deste gênero, como se houvesse uma matança de pessoas quase diariamente. Tudo que aconteceu saiu, também, na imprensa. Como que os outros crimes não estariam na imprensa? Os fatos estão nos jornais. Publiquei também textos dos jornais da época onde se falava de outros crimes, pessoas desaparecidas, etc.
EC – Defina de maneira concisa o seu trabalho.
Rovílio – Meu trabalho é a identidade. Cada pessoa vai ser aquilo que for a sua identidade. No ano que vem vou lançar o livro O Eu que está em você, ou seja, eu tenho a minha idéia de mim através de você, e você tem a sua idéia através de mim. A identidade é da interpersonalidade, da intercul-turalidade e da interetnicidade. Minha preocupação é o trabalho em cima de identidade. Para trabalhar a identidade, você tem de ter origem, origem pessoal, que seria no caso de nós sermos o Estado mais homogeneamente interétnico do planeta. Se alguém achar outro, que prove. No sentido de equilíbrio populacional, número de representantes de cada etnia, entidades que mantêm a identidade étnica e interétnica em ação junto ao Estado com possibilidade de apresentar seus produtos culturais em geral com a população. Quando alguém vai à Festa da Uva, em Caxias do Sul, ou na do Vinho, em Bento Gonçalves, não vai com um crachá dizendo “eu sou libanês”.
EC – Mas como isso se dá?
Rovílio – Você vai à festa de alguém que faz parte da cultura italiana, está feliz por isso e é isso. Então, trabalho a identidade dentro do mundo global – e por que tanta gente fala contra a globalização, se mesmo Cristo disse: “Vai e entrega meu Evangelho a toda criatura”, ou seja, diga para todos que podem ser felizes, que todos são irmãos, que todos são filhos de Deus. Sem a devolução de uma agrada-bilidade técnica para o africano, não haveria aquela identidade sólida, convincente, daquela negra das trancinhas que dizia: “Eu sou africana, diferente dos outros, mais bonita que os outros, vou despertar a atenção de todos, exatamente porque sou diferente”. Isso tudo se perderia. É um trabalho documental. No caso dos descendentes de italianos que dizem: “Eu sou da Itália”, mas a Itália não existia quando foram para lá. Foram para lá como um dialeto, uma província. A Itália aconteceu depois. Não adianta dizer “eu sou da Itália”, ainda mais agora com a questão da cidadania. Depois retornam ao país, encontram até a casa, o sítio onde moravam os seus familiares, e isso tudo vem trazer a história e a cultura para a pessoa, não para o livro. Isso cria a consciência da participação de uma identidade com outras identidades. Outro exemplo: os pais que batizam o filho. Por quê? Pelo católico que eles são? Não, mas têm raiz católica, sim. O filho pediu que o batizasse? Não. Ele está batizado porque alguém lhe passou isso, o valor, a força da identidade está ali. O pai batizou, e o avô batizou o pai. Isso lhe dá identidade para o mundo. Outro exemplo: fazem rapadura envolvida no plástico. Isso é uma deturpação do conceito de rapadura. Ela é artesanal, leva palha de milho, etc. E, na hora em que é trazida para um universo mais avançado, aquela característica se perde, e perde-se também um pouco da identidade.