A humanidade está diante da maior extinção já ocorrida desde o desaparecimento dos dinossauros, há cerca de 65 milhões de anos. A tendência de 3 mil populações de espécies silvestres mostra um decréscimo constante na abundância, ao redor de 40% entre 1970 e 2000. As espécies marinhas e terrestres, de uma maneira geral, diminuíram 30%. Estudos com anfíbios, em escala global, mamíferos africanos, aves em terras agrícolas, borboletas britânicas, corais do Caribe e do Indopacífico, além de peixes comerciais, mostram queda na maioria das espécies. A demanda global por recursos biológicos já excedeu em 20% a capacidade de regeneração do planeta. E agora?
Um diagnóstico assustador foi apresentado pela Organização das Nações Unidas (ONU) na abertura da 8ª Convenção das Partes da Convenção de Diversidade Biológica (COP8) realizada em Curitiba entre 20 e 31 de março. Uma extinção em massa está em curso em função do uso irracional dos recursos biológicos e da destruição de ambientes naturais.
Desde 2000, foram destruídos seis milhões de hectares por ano de florestas nativas, boa parte em função do avanço da agricultura (transgênica e convencional). Os ecossistemas costeiros e marinhos estão sendo fortemente impactados pela ação humana e já há uma degradação significativa de algas, da fauna marinha e de corais. Estima-se que pelo menos 35% dos mangues foram perdidos nos últimos vinte anos.
De acordo com o II Panorama Mundial sobre Diversidade Biológica, a demanda global por recursos biológicos já excedeu em 20% a capacidade de regeneração do planeta.
Dos 24 serviços dos ecossistemas avaliados, 15 estão em decréscimo. Entre eles a água potável, a pesca marinha, a qualidade de lugares com valor espiritual e religioso, a capacidade da atmosfera de eliminar os poluentes, o controle dos perigos naturais, a polinização e a capacidade dos sistemas agrícolas de controlar pragas.
A perda de biodiversidade afeta mais as comunidades rurais, pois elas dependem diretamente dos serviços da natureza. Há uma relação direta entre os problemas ambientais e sociais. “A destruição do meio ambiente aumenta a pobreza no mundo e dificulta o crescimento econômico dos países”, alerta o estudo da ONU.
O Brasil é o país mais megadiverso do mundo, mas ninguém sabe dizer com exatidão quantas plantas e animais existem por aqui. A mais recente estimativa aponta 1,8 milhões de espécies no país, o equivalente a 13,1% da biota mundial, segundo o professor Thomas Lewinsohn, da Unicamp. No entanto, somente 168 mil a 212 mil são conhecidas (veja tabela).
Nem o número de espécies conhecidas é exato. Isto se deve há falta de taxonomistas, o profissional que descreve as espécies descobertas com metodologia científica adequada, para revisar a literatura existente no país para ajustar os dados. Falta mão-de-obra especializada. Anualmente, são descritas 1.500 novas espécies no Brasil. Nesta velocidade, seriam necessários pelo menos oito séculos para completar o catálogo da biodiversidade brasileira. Tempo demais diante da acelerada perda de espécies.
Acesso à riqueza dos genes
Outros temas que dominaram a COP8 em Curitiba foi o acesso aos recursos genéticos e a repartição dos benefícios para as comunidades indígenas e locais. Um caso emblemático é o da rã verde (Phyllomedusa bicolor) encontrada na Amazônia principalmente no período das chuvas, sob árvores próximas aos igarapés. Elas coaxam por toda a noite e na madrugada costumam ser “colhidas” por índios que utilizam a sua secreção cutânea para fazer a “vacina do sapo”, usada para fins medicinais nas aldeias. Na floresta este anfíbio tem diversos nomes: kampu, kambô e wapapatsi. O efeito da tal “vacina do sapo” é curto, porém muito forte. Quem a toma diz que se sente mais leve e mais disposto.
Foto: divulgação amazon link.org
Foto: divulgação amazon link.org
A secreção deste anfíbio tem atraído cientistas de todo o mundo, pois ela contém uma série de substâncias até então desconhecidos da ciência. A dermorfina é um potente analgésico e a deltorfina pode ser aplicada no tratamento da isquemia (um tipo de falta de circulação sangüínea e falta de oxigênio, que pode causar derrames). As substâncias da secreção do sapo também possuem propriedades antibióticas e de fortalecimento do sistema imunológico. Pelo menos dez patentes foram registradas no exterior envolvendo as duas substâncias que já estão sendo vendidas, até pela internet, de forma sintética.
E as comunidades indígenas que têm a “vacina do sapo” em sua cultura centenária ganham quanto com este comércio? Se não fossem elas, estes novos remédios nunca teriam sido descobertos. Vai demorar ainda alguns anos até que uma regra internacional seja pactuada em regime de consenso na ONU, no entanto o Brasil assumiu a frente destas negociações e, segundo a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, o tema é prioritário. Mesmo antes de um acordo mundial, uma legislação brasileira está sendo elaborada para regrar a bioprospecção dos recursos genéticos no país.
Mais informações disponíveis na internet, no site
www.mma.gov.br/port/cgen.
Herança ambiental
• A partir de 1945, mais terras foram convertidas em lavouras do que nos séculos XVIII e XIX juntos. Os sistemas cultivados cobrem um quarto da superfície terrestre do planeta.
• Aproximadamente 20% dos recifes de corais do mundo foram perdidos e outros 20% foram degradados nas últimas décadas do século XX, e aproximadamente 35% das áreas de manguezais foram perdidas nesse período.
• O volume de água confinada em diques quadruplicou desde 1960, e o volume de água retida em reservatórios é de três a seis vezes maior que em rios naturais. A extração de água dos rios e lagos duplicou desde 1960; boa parte da água utilizada (70% do uso mundial) vai para a agricultura.
• Desde 1960, os fluxos de nitrogênio reativo (biologicamente disponível) nos ecossistemas terrestres dobraram, e os fluxos de fósforo triplicaram. Mais da metade do volume de fertilizantes sintéticos à base de nitrogênio utilizada no planeta foi empregada a partir de 1985.
• Desde 1950, a concentração atmosférica de dióxido de carbono aumentou cerca de 32% (de aproximadamente 280 para 376 partes por milhão em 2003).
Biossegurança: custo ou oportunidade?
Curitiba foi palco do maior encontro ambiental já realizado no Brasil desde a Eco 92. A imprensa gaúcha deu pouca, ou quase nenhuma, importância aos eventos diplomáticos da ONU realizados de 13 a 31 de março na capital do Paraná. No entanto, decisões importantes para o Rio Grande do Sul e para o Brasil foram tomadas, e pouco explicadas por aqui. O governo brasileiro obteve uma conquista importante no cenário internacional, bastante criticada pelas entidades do agronegócio.
As exportações de soja em grão, carro-chefe da agricultura brasileira, agora terão que ser identificadas se as cargas contiverem Organismos Vivos Modificados, os transgênicos. Esta decisão, na prática, tira do papel o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, um dos instrumentos da Convenção de Diversidade Biológica assinada na Rio 92, e adotada pelo Brasil. Os representantes do agronegócio, liderados pelo Ministério da Agricultura, argumentam que a decisão vai tirar a competitividade dos produtores brasileiros.
Estudo realizado por José Maria da Silveira, do Núcleo de Economia Agrícola da Unicamp, mostra que o custo de produção da soja brasileira pode aumentar entre 6% e 9% com a necessidade de segregação desde a origem. O Brasil terá até seis anos para se adaptar às normas decididas de 13 a 17 de março em Curitiba durante a 3ª Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, encontro da ONU que reuniu diplomatas de 96 países, dos 131 signatários do Protocolo que entrou em vigor em 2003.
Ao invés de custo, a identificação das cargas de OVMs pode ser uma oportunidade para o Brasil consolidar e ampliar seu espaço no mercado global de soja. A avaliação é do diretor-executivo da empresa certificado-ra internacional Cert-ID, Augusto Freire, uma das maiores certificadoras de produtos agrícolas do mundo. Segundo ele, a identificação de cargas transgênicas custaria apenas cinco centavos de dólar por tonelada e até 25 centavos de dólar para o rastreamento em toda a cadeia de produção.
Foto: COP8/Divulgação
Foto: COP8/Divulgação
Os Estados Unidos são o principal produtor de soja transgênica, mas não assinaram o Protocolo de Cartagena. “Nós exportamos soja orgânica, produzida sem agrotóxicos, para alimentação animal nos Estados Unidos. Atualmente, a demanda mundial por este tipo de produto é maior do que a oferta. Com o avanço dos transgênicos está cada vez mais difícil evitar a contaminação das lavouras”, revela Nelson Rames, supervisor de negócios de agroindústria da Cooperativa Agropecuária Alto Uruguai (Cotrimaio).
Atualmente, quem produz sem agrotóxicos é obrigado a provar que a produção é limpa certificando as lavouras orgânicas. Já o produtor de transgênicos não era obrigado a informar o que estava plantando para os seus compradores. O acordo firmado em Curitiba muda esta situação. “A decisão tomada em Curitiba permite que o Brasil consolide três mercados: transgênico, convencional e orgânico”, explicou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, após o anúncio do acordo em 17 de março.
Estado busca doação do Banco Mundial para preservar
a biodiversidade gaúcha
Com 349 mil dólares doados pelo Banco Mundial, uma equipe de consultores prepara um projeto inovador para preservar florestas, campos e banhados do Rio Grande do Sul. A minuta do RS Biodiversidade, com prazo de execução de cinco anos, deve ser divulgada neste mês de abril. A proposta está orçada em 17 milhões de dólares, 7,5 milhões doados pelo BIRD e 9,5 milhões de contrapartida do Estado.
O governo do Rio Grande do Sul está preparando o projeto desde o final de 2003, por sugestão do próprio Banco Mundial, que tem apoiado projetos deste tipo na América Latina através do Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF, na sigla em inglês), criado durante a Rio 92 e abastecido com recursos dos países desenvolvidos. Em julho de 2004, o Bird aprovou a primeira doação para a preparação do projeto.
“Queremos inserir o tema da biodiversidade nas atividades produtivas, principalmente na área rural. Vamos atuar no entorno das Unidades de Conservação, e não dentro, para reduzir a pressão que vem de fora. Pretendemos trabalhar dentro das Áreas de Proteção Ambiental, que permitem atividades produtivas”, informa a coordenadora da equipe de preparação do RS Biodiversidade, Margareth Bortolotto.
As primeiras propostas foram apresentadas nas oito áreas selecionadas entre dezembro de 2005 e fevereiro de 2006. O projeto deve beneficiar os Campos de Cima da Serra, o Turvo, a Quarta-Colônia, os Campos da Campanha, o Escudo Sul-rio-grandense, as nascentes do rio Forqueta (região de Soledade), o Litoral Norte e o Litoral Médio. Ao todo serão 72 municípios que representam 29% do território gaúcho.
O nome oficial do projeto é Conservação da Biodiversidade como Fator de Contribuição ao Desenvolvimento do Estado. “Queremos que os agricultores percebam o potencial da nossa biodiversidade nativa e, ao invés de utilizarem espécies exóticas, que cultivem espécies que são nossas”, relata a técnica do Estado responsável pela preparação da minuta que será enviada ao Banco Mundial para solicitação de recursos.
“O governo gaúcho é contraditório. De um lado propõe ações de preservação no entorno do Parque do Turvo, e de outro quer retomar o complexo hidroelétrico de Garabi que irá causar um dano enorme na mesma região. Nos Campos da Campanha há ações previstas para preservar o Pampa, e também pesados incentivos à expansão das monocultoras de pínus e eucaliptos”, questiona Elisângela Paim, coordenadora de projetos do Núcleo Amigos da Terra Brasil.
Outro ponto que preocupa a ecologista são os US$ 9,5 milhões de contrapartida do Estado. “O Rio Grande do Sul já recebeu uma doação do governo alemão para desenvolver ações de preservação na Mata Atlântica, e a condição exigida era a contratação de pessoal. No entanto, até hoje isto não foi feito. Espero que o RS Biodiversidade proponha novas ações para compensar, e que elas sejam de fato realizadas”, pondera Elisângela Paim.