GERAL

Uma nação sem bandeiras

Por Clarinha Glock / Publicado em 28 de maio de 2006

Lançada em março deste ano, a primeira edição do livro Horizonte do desejo: instabilidade, fracasso coletivo e inércia social, do carioca Wanderley Guilherme dos Santos, esgotou nas livrarias. O tema, aparentemente banal, toca o dedo na ferida das classes média e alta que costumam creditar apenas aos governos a causa de tanta miséria e aponta pistas sobre as raízes da manutenção da desigualdade social no Brasil. A partir da análise histórica sobre a evolução da democracia no país, o cientista político contesta suposições comumente repetidas sobre os obstáculos às mudanças sociais. Para Santos, não é a ignorância ou a falta de vontade política que faz a população mais carente se calar, mas os prejuízos ainda maiores a que está sujeita após a tentativa de mudar essa realidade, caso ela falhe.

Graduado em Filosofia e com ph.D. em Ciência Política pela Universidade de Stanford (Estados Unidos), Santos ocupa atualmente o cargo de diretor do Laboratório de Estudos Experimentais e de Pró-Reitor de Análise e Prospectiva da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. Também é professor-pesquisador do programa de pós-graduação do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e membro titular da Academia Brasileira de Ciências. O cientista político preferiu não opinar quando o assunto foi a política nacional atual, e qualquer comentário sobre o governo de Luiz Inácio Lula da Silva e sua relação com a perspectiva de mudanças sociais no futuro foi evitado nesta entrevista por telefone.

Extra Classe – Por que não acontece uma revolução no Brasil considerando os problemas graves de miséria que existem? Seria porque as pessoas são dóceis e aceitam a miséria?
Wanderley Guilherme dos Santos
– Eu não me pergunto por que não existe uma revolução, a não ser nos casos extremos, mas a minha questão é por que não existem movimentos reivindicatórios normais próprios de uma democracia, não necessariamente movimentos de tomada do poder. Lemos nos jornais todos os dias sobre grupos que se organizam e se manifestam para reclamar contra medidas que acreditam ser negativas em relação a eles ou alternativamente para fazer demandas positivas. Não obs-tante no Brasil nos últimos 20 anos ter havido um crescimento razoável no número de organizações voluntárias, privadas, o número de manifestações e de participação sob toda forma, seja de abaixo-assinado ou de chamada para um comício ou passeata, comparado com o nível de carências – e também em comparação com outros países –, deixa muito a desejar.

A minha pergunta é por que isso acontece. Uma das pistas que eu exploro e que me parece bastante persuasiva é que não se trata exatamente de conformismo da população. Não é porque ela é dócil, mas porque, ao contrário, ela é arguta e faz um cálculo muito preciso dos custos implícitos da mobilização e das reivindicações. Há os custos iniciais de organizar a ação coletiva que para a população carente são bem maiores do que para a população mais rica: de fazer uma bandeira, faixas, transporte, comprar jornal para se informar. Mas, além destes, que existem em todo o mundo, há um custo extra no Brasil que é quando os movimentos das classes subalternas não obtêm sucesso. É uma espécie de vingança social. As populações ou aqueles grupos que se mobilizaram para a ação coletiva e que não obtiveram êxito pagam o preço sob a forma de perda de emprego, perseguição e, inclusive, em certas regiões do país como na faixa de fronteira econômica do Centro-Oeste ou do Norte, pagam com a própria vida. De modo que, enquanto nos países já estabilizados o “fracasso” de uma ação coletiva – ou seja, não conseguir o que desejar – é simplesmente a manutenção do status quo (continua tudo como antes), no Brasil a situação piora.

Então, a razão pela qual o número de manifestações no Brasil é inferior ao que se esperaria é que existe uma carência específica de proteção constitucional em relação àqueles que se utilizam do direito democrático de protestar. Este custo é elevadíssimo. Não é por conta de indiferença, apatia ou ignorância; ao contrário, é um cálculo racional muito arguto que faz com que as populações subalternas só participem de uma ação coletiva com um grau de segurança muito elevado. De outro modo, não participam.

EC – E qual seria a saída então? É preciso modificar a Constituição ou garantir os direitos?
Santos
– Entre outras coisas, há uma responsabilidade enorme por parte dos governos – tanto o Central, quanto os estaduais e locais – de assegurar o cumprimento da Constituição e garantir a proteção a essas populações no direito de se organizar e de manifestar sua opinião sem represálias, desde que dentro das leis, como normalmente acontece. Um dos problemas centrais de tudo isso é o fato de que o Brasil, de certa maneira, se desconstitucionalizou. Quero dizer com isso que aquelas garantias fundamentais dos direitos políticos e civis da Constituição têm perdido vigência, valor e eficácia ao longo das últimas duas décadas em várias regiões do país.

O direito de ir e vir, de opinião e de organização não vale na área rural, nem nas áreas deterioradas urbanas do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Recife, de Belo Horizonte, onde quem determina quando as coisas funcionam, quem pode sair, quem não pode, é o tráfico. Lá a Constituição não vale, como não vale nas regiões de fronteira ou nas terras devolutas no Norte do país ou no Centro-Oeste. Isso é responsabilidade fundamental das autoridades que são eleitas e fazem o juramento de garantir e de proteger a Constituição.

Os conservadores pensam que os movimentos populares são antidemocráticos. Ao contrário, um dos pontos principais das agendas dos movimentos subalternos é o cumprimento da Constituição, sem o quê estarão desprotegidos.

EC – Há alguma perspectiva de mudança a curto prazo? Estamos em véspera de eleições e com muitos escândalos políticos. O senhor cita no livro a importância da participação político-partidária. Mas o que se ouve ultimamente é que as pessoas vão votar em branco ou anular o voto, porque não acreditam em partidos ou políticos.
Santos
– Não é o que tem aparecido nas pesquisas. Isso se supõe. O que acontece, e é normal no período antes das eleições, é que muitas pessoas ainda não têm candidato. Quanto à desmoralização dos políticos, comparativamente ao que sempre foi, eu, pessoalmente, acho que essa legislatura em particular é pessimamente servida de parlamentares. Mas não confunda a minha opinião com a da população que, historicamente, pelas perguntas que os institutos e os jornais fazem, dizem que os políticos são péssimos. Por enquanto, a única novidade é uma reação grande da classe média que sempre foi muito reagente ao noticiário de imprensa. Fora daí, até agora não surgiram indicadores de que tenhamos nas próximas eleições resultados diferentes das taxas históricas do país, tanto do ponto de vista de votos válidos quanto de abstenção, voto em branco ou nulo. Por enquanto…

EC – As eleições seriam uma forma de tentar fazer esta mudança e esta exigência de direitos. Ou não?
Santos
– Sim, mas seria indispensável que houvesse uma difusão da consciência deste problema por parte dos agrupamentos que têm inclusive melhores condições de reivindicação, como são exatamente as classes médias para cima. Porque esta sempre foi uma bandeira muito chegada ao conservadorismo – a salvaguarda da Constituição – na suposição de que os representantes das classes subalternas estavam sempre querendo alterá-la. A defesa da Constituição e a exigência de que ela seja cumprida não é hoje uma bandeira conservadora ou reacionária. É, ao contrário, uma bandeira quase revolucionária das classes que estão desprotegidas. Que se cumpra a Constituição é uma bandeira bastante progressista, eu diria.

EC – Hoje há um grande número de voluntários e ONGs que estão cada vez mais abordando temas sociais. Este é um movimento legítimo de uma classe média em busca de mudanças?
Santos
– Também de classe média. São organizações, em grande parte, de profissionais liberais, mas não só eles. Há também setores da sociedade com carências específicas como, por exemplo, associações para atender crianças com Síndrome de Down, e várias outras. São organizações que têm mais facilidade de surgir porque os custos iniciais de constituição são mais facilmente atendidos, já que são organizações de classe média. Mas, ainda assim, também é crescente o número de organizações de trabalhadores manuais e não-manuais e até de trabalhadores rurais com outros tipos de associações à parte do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra).

Em particular, gostaria de enfatizar o papel importante que a Pastoral da Terra da Igreja Católica está desempenhando, como organização, de ombudsman em relação aos problemas do campo, na difusão da informação e, portanto, mostrando que o problema existe e a sua extensão. É pena que não tenhamos a mesma coisa por parte de alguma organização laica, de preferência, na área urbana.

EC – E estas instituições podem influir na defesa dos direitos dos cidadãos para que haja uma mudança na situação de inércia?
Santos
– Claro. O que ocorre é que as demandas são, como é natural, muito específicas e singularizadas, em função de interesses limitados ao objetivo central dessas organizações. Porém, o que ainda falta em grande parte é uma percepção de que há uma ligação muito grande entre as condições pelas quais se fazem demandas específicas no Brasil, de interesse segmentado, e a defesa de um bem comum, que são os direitos constitucionais da cidadania brasileira, que não pertencem exclusivamente a um grupo em particular. O progresso dos setores singulares e particulares da sociedade hoje depende de um avanço universal dos conceitos da cidadania, independentemente da sua posição na estrutura social. Essa percepção está faltando.

 

EC – O senhor menciona, na análise feita no livro, que mulheres, negros e índios estão conseguindo mais espaço no Parlamento e nas mobilizações de ONGs. Pode-se dizer que houve um avanço nesta área?
Santos
– A participação parlamentar e a renovação do Parlamento são importantes, mas as questões que estamos enfatizando têm que acontecer fora do Parlamento, através das organizações, com pressões inclusive em cima do Parlamento. Por ser uma instituição de rotina e por não estar exposto, como instituição, a estes problemas que estamos mencionando, a sua sensibilidade para esta questão é muito pequena. E não por mérito ou demérito dos parlamentares, é pela sua própria posição ins-titucional. Estão lá para fazer e debater leis. Não há imprevisibilidade na vida de um parlamentar. A mudança depende mais de quem vive essas questões cotidianamente, que são as organizações voluntárias.

EC – No livro, o senhor diz que o Brasil enfrenta ainda a importação de estereótipos e “enreda-se em análises que substituem a empreitada de revelar os mecanismos estabilizadores da miséria pelo registro das representações que os miseráveis fazem de si próprios”. O que o senhor quer dizer com isso?
Santos
– Considero que é de eficácia igual a zero toda esta literatura de antropologia tal como é entendida no Brasil em que, ao invés de se tratar da miséria, trata-se da representação da miséria. Em vez de tratar do problema, estudam a imagem que os vitimados têm de seus problemas. Isso não quer dizer nada. Estudam, por exemplo, como é que os mutilados no norte do país falam para eles próprios o que aconteceu com eles, e não falam quem fez, como fez, por que fez. Acho que essas pesquisas são um desperdício de recursos públicos na medida em que são financiadas pelo CNPq.

EC – No livro O ex-Leviatã brasileiro: do voto disperso ao clientelismo concentrado, o senhor fez uma pesquisa sobre o Estado Nacional Brasileiro e a Era Vargas. O que é o ex-Leviatã?
Santos
– É o Estado Nacional que foi criado por Vargas, responsável por essa modificação em prazo curtíssimo do Brasil que tinha uma economia atrasada, puramente agrícola, para uma potência. Obviamente que não estou falando de Justiça Social, mas de poder econômico e político.

EC – Que herança de Vargas o senhor aborda em sua pesquisa?
Santos
– O livro é sobre a construção do Estado Nacional Brasileiro a partir da Revolução de 30 e o papel de Vargas, que é associado a um período de crescimento e de expansão capitalista. Também é sobre o papel que as burocracias públicas desempenham nesse processo e, por conta disso, a tese do clientelismo. Fiz uma pesquisa com cerca de 70% do aparelho de Estado brasileiro centralizado e descentralizado – tenho todos os dados das pessoas que ocupavam os postos importantes do primeiro escalão e a renovação ao longo do tempo, desde 1945 até o final da década de 70. Fiz um estudo de quase 1.800 nomes da elite burocrática brasileira, das taxas de renovação ao longo do tempo, buscando ver se existe alguma relação entre mudança do Parlamento nas eleições, se o Estado brasileiro estava exposto ao sistema de espólio em que os postos são modificados em função das forças públicas do Parlamento, e também em relação a eleições presidenciais.

Evidentemente, há um pedaço do aparelho de Estado brasileiro que é exposto à prática de clientelismo, mas são alguns órgãos. Há um número descabido de ascensoristas, de choferes de ambulância, de porteiro, de empregos da política “distributiva”, mas cujos salários são ínfimos, não comprometem em nada em matéria de contas públicas. O que responde realmente pela operação do Estado Brasileiro são as grandes empresas.

EC – Como se situa o Brasil no problema do clientelismo?
Santos
– O clientelismo tem várias facetas, ele pode ser chamado de corrupção. Está muito ligado a uma competição entre os interesses econômicos privados. Quando se fala em clientelismo se pensa logo em empregos, em deputado que bota uma bica d’água, que reclama para o seu município um posto de saúde. Isso não é nada do ponto de vista econômico, é prestação de serviço que tem que ser controlada, transparente. Mas o clientelismo comprometedor de uma economia, de uma sociedade, é aquele feito por grandes corporações que buscam obter de conselhos burocráticos uma legislação protecionista, buscam criar barreiras à concorrência para a entrada no mercado e ter privilégios cambiais e fiscais. É o clientelismo concentrado.

EC – E esses seriam os Leviatãs atuais?
Santos
– Sem dúvida, o Leviatã contemporâneo são os grupos privados.

 

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