Com exclusividade para o Extra Classe, o educador francês Bernard Charlot fala sobre as tendências da liberalização preconizada pela ofensiva da Organização Mundial do Comércio (OMC) chancelada por países do primeiro mundo que querem exportar seus “serviços” para outros mercados. Doutor em Ciências da Educação pela Universidade Paris X, atualmente professor visitante na Universidade Federal de Sergipe, Charlot realiza estudos sobre a relação com o saber, relação com a escola e assuntos referentes à territorialização das políticas educativas. Para o educador, o maior desafio que se coloca é que a educação não perca o seu sentido de humanização e de singularização do ser humano. Caso contrário, alerta que podemos viver numa barbárie.
Atualmente, Bernad Charlot reside em Aracaju, onde desenvolveu uma pesquisa sobre os jovens sergipanos. No estudo, ele levanta as mais diversas questões vinculadas ao dia-a-dia, às relações com a escola, família e trabalho. Um dos aspectos que ele destaca é o anseio dos jovens em ingressar na universidade. Desejo que é justificado pela diferença salarial maior entre as pessoas que terminam o Ensino Médio e as que concluem a Educação Superior. A pesquisa será a base de um livro que pretende lançar sobre o assunto.
Extra Classe – A Organização Mundial do Comércio (OMC) define a educação como um serviço, portanto ela deve cumprir as mesmas regras comerciais. Como está o processo de liberalização desse mercado?
Bernard Charlot – Na lógica da OMC tem duas versões de liberalização da educação. Uma leva à liberalização do mercado fora do setor do Estado, e a outra engloba o segmento público. Isso significa que se o governo dá dinheiro para a pública deverá fazer o mesmo para a particular. Dessa maneira não há mais privilégio para instituições públicas. Esse é o modelo mais duro que pode ser implementado. Ele significa o desaparecimento da escola pública, com exceção dos quatro ou cinco anos do primário, pelo qual o mercado não tem interesse porque não dá dinheiro. O mercado da educação remete a mais dinheiro do que o dos automóveis. É enorme. São seis bilhões de seres humanos a serem educados.
EC – Ainda há risco de o Brasil aderir a esse modelo, apesar da resistência que tem havido, até do poder público?
Charlot – Tem gente pensando que a luta é contra a assinatura do acordo para comercialização dos serviços, incluída a educação, mas ele já foi assinado em 1995, com previsão de liberalização dos serviços em geral num período de 10 anos. Aos poucos as coisas estão avançando. Os mercados dos serviços financeiros, da viação aérea, da telefonia, além dos produtos industriais, já foram abertos. Mas, no geral, a liberalização internacional da educação ainda não aconteceu, e não por resistir, mas devido às dificuldades do comércio internacional por causa do bloqueio relacionado à questão da agricultura, que está em fase de negociação. Quando o Brasil vender mais facilmente a sua soja, a liberalização da escola arrisca a piorar.
EC – E a OMC nisso tudo?
Charlot – A OMC é a instituição que visa a desenvolver o comércio internacional na lógica do liberalismo. Há quem pense que ela é um instrumento infernal da globalização, do neoliberalismo, dos Estados Unidos. É um pouco mais complicado. O que ela faz é pressionar os países para celebrar novos tratados. Depois de assinados, ela tem poder de punir quem os desrespeita, até quando são países mais ricos. Inclusive, tem um fórum que já condenou o EUA e a Europa. Nesse ponto de vista, ela é mais democrática do que o Fundo Monetário Internacional (FMI), porque na OMC cada país tem um voto; já, no FMI, é de acordo com o dinheiro que cada nação coloca lá. Resumindo, isso significa que a OMC é, ao mesmo tempo, um símbolo do comércio internacional, da globalização neoliberal e uma organização supranacional com o mínimo poder de condenar os países que não cumprem os tratados.
EC – A tendência então é a educação virar uma mera mercadoria, ou ela sempre foi?
Charlot – A educação sempre foi usada também para ganhar espaço na sociedade, para ganhar trabalho. Já no Egito antigo, os escribas, por saberem ler, escrever e fazer as contas do imperador, eram funcionários do império, e isso dava uma posição social. Depois, continuou com a Igreja, onde estavam as pessoas que sabiam ler e escrever. A educação então já estava ligada a uma visão social, com a qual só uma minoria podia se beneficiar. O que aconteceu no chamado primeiro mundo a partir do século XX e aqui no Brasil a partir da década de 80 foi que ela passou a ser prioritariamente um meio para se inserir no mercado de trabalho. E hoje, cada vez mais, pensa-se educação como um investimento financeiro. Sendo assim, quando se compra a educação se tenta comprar o futuro do filho.
EC – É a lógica da troca?
Charlot – Sim. Vivemos em uma lógica do valor de troca do saber, e essa valoração vem afastando o valor de uso do saber, o qual permite entender melhor o mundo, as relações com os outros, as relações consigo mesmo e de entrar em outros universos que não estão acessíveis no cotidiano, como poesia, filosofia e muitas outras coisas. Isso significa que estamos no período em que é abandonada a concepção da educação enquanto meio para apropriar-se de saberes, de sentido, de compreensão do mundo, da solidariedade entre os seres humanos, para pensá-la como um instrumento para encontrar um emprego. Hoje se tornou evidente entre políticos, seja de esquerda, seja de direta, jornalistas, pais e alunos de que se vai a uma escola para se ter um emprego mais tarde. É realista essa visão. Eu também fui à escola para ter um bom emprego, mas encontrei também o saber como prazer, como sentido. Essa é a dificuldade. Os jovens estão na escola para ter um bom emprego mais tarde, para ter uma vida normal, para ser alguém, como eles dizem. Há alguns que encontram também o saber como saber e sentido, mas há muitos que só conhecem a escola como uma coisa chata, que eles têm de agüentar para terem uma vida normal. A educação já foi considerada como mercadoria, antes da globalização. Mas, hoje em dia, com a globalização, a educação está perdendo cada vez mais a função de humanização, de socialização, de subjetivação, de singularização do ser humano, para se transformar em mercadoria. Por sinal, transformar tudo em mercadoria faz parte da natureza daquela etapa do capitalismo que chamamos de globalização. Picasso e Ronaldinho Gaúcho também passaram a ser mercadorias.
EC – E o Brasil, como está nesse processo mundial?
Charlot – O Brasil é um dos países mais avançados na liberalização da educação, com o desenvolvimento de um setor particular e comercial de educação. Um país que passou do modelo europeu de uma escola pública dominante para o modelo privado. Hoje tem uma parte importante do sistema escolar que é particular. Há mais estudantes universitários nas instituições privadas do que nas públicas. Isso é preocupante porque o sistema escolar vem evoluindo com olho no ingresso na universidade, e, quando a particular domina, está impondo, aos poucos, a sua lógica ao sistema escolar. Não se deve esquecer que somente há uns trinta anos havia uma boa escola pública no Brasil. Os efeitos da agenda da liberalização no Brasil, em particular, já são claros, com o desenvolvimento de uma escola privada com uma lógica comercial. Uma boa parte das escolas particulares brasileiras não faz benefícios com o dinheiro que os pais pagam para matricular as crianças; faz benefícios com as festas, os produtos, com os uniformes que impõem. O Brasil é muito mais liberalizado do que a França, mas lá se desenvolveu uma lógica de concorrência dentro do sistema público. Em outros países, como a Coréia do Sul ou o Japão, são os cursinhos fora da escola que sustentam a concorrência escolar.
EC – Qual o impacto dessa liberalização?
Charlot – É difícil saber o impacto, porque não é um acontecimento repentino. A liberalização já começou e vai se expandido aos poucos, discretamente. Quem estuda a história da educação sabe que, na maioria das vezes, as decisões oficiais administrativas chegam depois dos fenômenos serem desenvolvidos. Na França, a escola primária se tornou obrigatória quando três quartos dos jovens já estudavam nessas instituições. O movimento social começa antes da decisão administrativa, a qual apenas torna o processo obrigatório, generalizando para as margens sociais. Posto isso, cabe destacar que essa organização, essa gestão numa lógica de ganhar dinheiro não supõe automaticamente que a escola não seja boa. Ela pode ter um bom ensino; o problema é que ela dá um bom ensino para quem? Para quem pode pagar. A liberalização oficial vai acelerar essa lógica comercial e permitir o ingresso de produtos dentro da escola, como a Coca-Cola, por exemplo, faz nos EUA.
EC – Como assim?
Charlot – Inclusive, há cerca de dois anos um aluno americano foi mandado embora da escola porque teve uma ação da Coca-Cola e ele chegou com uma blusa da Pepsi. No sistema americano já entra Coca-Cola, Nestlé, que fazem uma educação alimentar (risos). Os bancos também entrarão, sobretudo no Ensino Médio, visto que a tendência daquele que abre uma conta com 16 anos é ficar no mesmo banco mais tarde. Essas coisas já existem e vão se desenvolver cada vez mais, e, aos poucos, haverá pressões para que o conteúdo seja mais relacionado com o que é imediato, com o que os alunos farão quando saírem da escola, isto é, com os interesses do empresariado.
EC – Algum segmento será mais visado?
Charlot – Alguns países, como Estados Unidos e Austrália, já pediram oficialmente à OMC a liberalização da Educação Superior, do Ensino Profissionalizante e dos setores dos testes e da avaliação. Esta se tornará fundamental no mundo globalizado, porque para escolher a melhor escola para o seu filho você precisa de avaliações. Além disso, terá expansão do mercado de testes, da formação profissional, em particular dos adultos e também dos jovens, e da certificação. Na OMC, os países não pressionam pela abertura do ensino primário e secundário por enquanto. Provavelmente, terá uma liberalização do ensino secundário, visto que já há uma pressão sobre esse setor. A pressão maior pesa sobre as universidades. Temos que saber o que representa a liberalização das universidades. Quando uma universidade vai receber estudantes de fora, propor ensino a distância acessível fora do país, contratar um professor visitante, será como se ela vendesse ou comprasse um produto, e isso deverá ser completamente aberto. Dessa maneira significa que o Estado brasileiro não poderá ajudar as universidades federais a receber estrangeiros, pois contraria a liberdade de mercado. A liberalização oficial da educação terá muitas conseqüências práticas.
EC – Com o aprofundamento da liberalização, pode crescer ainda mais o mercado da venda de certificados?
Charlot – Esse também é um movimento geral. Eu recebi várias vezes mensagens em inglês, cínicas e espertas, dizendo: você faz um trabalho melhor e ganha menos dinheiro do que os seus chefes, só por eles terem um diploma que você não tem. Isso não é justo. Para resolver, é só você ter um diploma. Quer um diploma? Não tem problema. É um diploma sem provas, sem curso, que receberá daqui a três semanas, diz a propaganda. São universidades particulares dos Estados Unidos, é a liberdade do mercado. Portanto, se você quiser e tiver um pouco de dinheiro, será doutor daqui a três semanas, sem provas, sem aulas, sem cursos. É por isso que o mercado da certificação e da avaliação é fundamental. Um dos mercados mais concorridos será o de carimbar diplomas. No Brasil, mesmo pouco, ainda há mais controle. A Educação de Jovens e Adultos também poderia entrar nessa área de interesse. Porém, em geral, não é um mercado que interessa muito porque é o segmento dos pobres. O que não se sabe é se continuará assim. Com efeito, o Brasil está vivendo um momento em que há interesse do mercado pelo dinheiro dos pobres, visto que mesmo tendo pouco dinheiro eles são numerosos.
EC – Em uma visão mais pessimista, esse movimento pode determinar o sumiço total da escola pública e a transformação desse direito em mera mercadoria?
Charlot – É imprevisível, mas o trabalho do intelectual militante é tentar prever o imprevisível (risos). Eu prefiro raciocinar mais em termos de contradições a termos messiânicos, de fim de mundo. É mais complexo. Em primeiro lugar, nas escolas particulares estão os filhos da classe média e alta. E elas se preocupam também com a dimensão humana da educação dos filhos dessas classes; não se pode dizer que vendem apenas preparo para o vestibular. Em segundo lugar, essa situação que você descreve é a situação da barbárie. Quando o projeto da escola de humanização, de socialização e de respeito do indivíduo na sua originalidade perder o valor, é o mundo da barbárie que começa, o mundo que vimos recentemente em São Paulo com o problema do PCC. Esse é um cenário que tem pouca probabilidade de acontecer.
EC – E quem paga a conta?
Charlot – Ninguém quer o desaparecimento da escola primária e ninguém quer assumir os gastos desta. Cada um sabe que com essa violência atual é imprescindível ter uma escola primária para os pobres, e quem vai pagar é o Estado. Haverá a escola primária pública para o povo e a particular para as classes médias. É também a lógica do Banco Mundial. Ele quer o financiamento público para os quatro ou cinco anos primários e só depois a educação se torna uma mercadoria. Claro, eles não são idiotas e sabem que deve permanecer uma educação pública primária, pois sem isso é mais violência, incompetência generalizada, incapacidade de se adaptar ao mundo moderno. De qualquer forma, alguém vai ter de assumir o trabalho fundamental de humanização do ser humano, e se não tiver ninguém será barbárie, mas a barbárie faz perder dinheiro. E sabemos que, quando os dominantes perdem dinheiro, eles arrumam um jeito de resolver, ao menos, um pouco o problema. Resta saber o que nós, militantes, estamos propondo em termos de educação para um mundo melhor. Porque se deve defender a escola pública; porém, deve-se também transformar profundamente a escola pública atual. A contradição dos liberais é ter de manter um mínimo de escola pública, apesar de estarem a favor da privatização. A nossa contradição é ter de defender a escola pública, apesar de criticarmos bastante a escola pública atual.