Quando Luiz Inácio Lula da Silva disputou a primeira vez a Presidência da República, com o atual senador Fernando Collor de Mello, tinha ao seu lado um dos maiores ambientalistas brasileiros. O apoio e a amizade do geomorfologista Aziz Ab’Sáber, 82 anos, paulista de origem libanesa, foi intenso até às vésperas do primeiro mandato, no final de 2002. Depois da conquista do poder, o companheiro das Caravanas da Cidadania, grande conhecedor da realidade amazônica, afastou-se do amigo petista por discordar dos rumos do governo federal na área do meio ambiente. Professor emérito da Universidade de São Paulo e um dos idealizadores do Projeto Floram, elaborado em 1989 com o objetivo de florestar e reflorestar 14 milhões de hectares entre 20 e 30 anos, Ab’Sáber olha com extrema preocupação o processo de aniquilamento da Amazônia, o projeto de transposição do Rio São Francisco e a expansão dos plantios de eucaliptos e da cana-de-açúcar. Nesta entrevista ao jornal Extra Classe, o autor da famosa Teoria dos Redutos e Refúgios, que tenta explicar a grande biodiversidade existente na América do Sul, manifesta também a sua contrariedade em relação aos cientistas que falam sobre os possíveis impactos do aquecimento global na maior floresta tropical do planeta e que esquecem de explicar como a região já vem sendo destruída ao longo dos anos.
Extra Classe – Como o senhor vê o avanço dos eucaliptos Brasil afora?
Aziz Ab’Sáber – Está havendo uma pressão muito grande por parte das empresas de celulose para entrar em certas áreas esquecendo das questões sociais, econômicas e culturais. Elas compram terrenos baratos, onde há bom clima para os eucaliptos, para implantar verdadeiras massas de á rvores exóticas. Elas tentam encarcerar cidades, como fizeram em Paraibuna (SP), no Vale do Paraíba, e querem agora repetir o esquema em São Luís do Paraitinga (SP), na minha cidade natal.
EC – O senhor é contra a plantação de eucaliptos?
Ab’Sáber – Sou contra a monocultura, não sou contra os eucaliptos. Estou mais preocupado com a organização dos espaços. As áreas de florestamento têm de ter também agricultura e pecuária.
EC – Uma área de eucalipto pode ser chamada de floresta?
Ab’Sáber – Um plantio de eucalipto não pode ser considerado uma floresta, pois floresta tem um sentido de biodiversidade.
EC – O aumento dos plantios de eucalipto não estava previsto no Projeto Floram, elaborado pelo senhor há duas décadas?
Ab’Sáber – O eucalipto pode coexistir com outras árvores, mas nada do que está ocorrendo tem a ver com o que planejamos, de modo gracioso, no Projeto Floram. Na região dos areais no Rio Grande do Sul, por exemplo, pode haver dentro de cada propriedade um plantio entre 35 e 40%, desde que ela continue sendo polivalente, com outras culturas. Este é, inclusive, o maior percentual possível de todo o Brasil. Mas somente nesta região dos areais. Em outras, o percentual tem de ser menor. No Vale do Paraíba, por exemplo, os eucaliptos não podem ocupar mais do que 18 a 20% de cada propriedade.
EC – E as propriedades com metade ou mais da área plantada com eucaliptos?
Ab’Sáber – Mais da metade da área com eucaliptos é crime. Daqui a pouco, vira um deserto verde. Eu implicava com esta expressão dos ecologistas, mas agora estou vendo que tem gente que não tem noção da continuação das plantações. No Vale do Paraíba, é incrível a pressão da Votorantin e de outras companhias. Elas não querem apenas plantar, mas também barrar rios aqui em São Paulo.
EC – A preocupação crescente com o aquecimento global e o incentivo à produção de etanol e biodiesel pode levar a uma monocultura da cana-de-açúcar?
Ab’Sáber – Estão falando em aquecimento global, mas esquecem de falar o que os homens estão fazendo na Amazônia, desmatando e queimando a floresta. Estamos em um momento muito triste no Brasil em termos de biodiversidade. O (George) Bush quer fazer parceria com o Brasil para produzir biodiesel. Vão expandir as lavouras de soja abrindo novas áreas. Não tenho dúvida sobre isso. O Lula já disse que a Amazônia não pode permanecer intocável. Só que ele não sabe como ela está sendo tocada. Eles nem querem saber o que está acontecendo, como ela está sendo destruída. É uma idiotice.
EC – Como a Amazônia está sendo tocada?
Ab’Sáber – Desde quando foram feitas as primeiras grandes estradas do Brasil Central para a Amazônia, cortando centenas de quilômetros das selvas, surgiram processos bastante radicais de destruição da mata para apossamento de terras. É um novo sistema de grilagem, similar ao que já aconteceu em outras regiões no final do século XIX até meados do século XX. Cada vez que uma estrada secciona a floresta por centenas de quilômetros, ocupações ocorrem, muitas vezes planejadas. Então, surgem retalhamentos laterais de devastação que vão de 300 metros até 5 quilômetros. Depois apareceram os ramais, caminhos perpendiculares a essas estradas. Ao longo deles, continua a mesma devastação, em menor escala, mas com múltiplos quadrados dentro da mata para exploração agropecuária. O próximo passo tem sido os sub-ramais, ainda mais complicados, pois estas terras estão muito longe das cidades. A situação fica ainda pior com as espinhelas de peixe, feitas por especuladores, dentro da selva, com áreas entre 50 e 100 hectares, ainda mais distantes das rodovias. O resultado é que muitos incautos que compraram essas terras nem conseguiram chegar até lá e perderam as propriedades. Outros se associaram aos madeireiros e à vontade. Com isso, estas espinhelas de peixe foram totalmente devastadas, como podemos perceber nas imagens de satélite. Sobraram apenas pequenos bosques com árvores desprezadas pelos madeireiros. Fora estas destruições, os mais espertos fizeram os chamados “linhões”. Eles pegam muitos quilômetros adiante das estradas e fazem um retângulo de devastação, na cara dos governantes, fazem um campinho de aviação, para chegar com mais facilidade nas áreas, e exploram a agropecuária. Eles desenvolveram este tipo de exploração predatória esperando que não fossem percebidos pelos governantes. Só que hoje as imagens de satélite mostram tudo.
EC – E qual tem sido o impacto da expansão da soja na região amazônica?
Ab’Sáber – A entrada da soja complicou ainda mais esta situação. Este avanço começou na região Norte do Mato Grosso, que é uma área de transição entre a Amazônia e o Cerrado. A partir dessas áreas, os produtores rurais começaram a expandir as lavouras para outras regiões. Só que depois de dois ou três anos, o solo, sem a floresta, fica sem nutrientes, que, com as chuvas, escorrem para os igarapés, riozinhos e rios. Isto acaba inviabilizando os cultivos.
EC – Cientistas têm afirmado que vastas áreas da Amazônia serão substituídas por Cerrado em função do aquecimento global. O senhor, em recente entrevista ao repórter Eduardo Geraque, do jornal Folha de S. Paulo, contestou esta tese. Por quê?
Ab’Sáber – Estas pessoas que dizem na imprensa o que pode acontecer na Amazônia no futuro, em função do aquecimento global, deveriam explicar o que está acontecendo na floresta agora. É um pouco de vaidade falar apenas aquilo que pode ocasionar projeção na mídia. Eu acho muito triste esta falta de conhecimento. Quando o calor for maior, com degelo maior, haverá aumento dos mares e oceanos. Isto vai afetar as praias e cidades costeiras. Na Amazônia, se o mar subir, ele vai invadir novamente o estuário do Rio Pará e a boca do Rio Amazonas, levando água salina para dentro desses estuários que atualmente jogam para o mar uma grande quantidade de argila. Só que a evaporação maior das águas marinhas costeiras será transformada em umidade, que entrará de maneira mais forte para dentro da floresta. Se considerarmos o Nordeste seco, lá pode virar quase um deserto. Mas na Amazônia não. O calor, junto com a umidade que vai entrar, vai manter as florestas. Como o pessoal não entende muito destas coisas, simplesmente jogam ao acaso a previsão que vai reduzir a floresta e entrar o Cerrado.
EC – O grande incentivo que o Governo Federal vem dando aos biocombustíveis, em função do aquecimento global, pode ocasionar uma invasão da cana-de-açúcar também na Amazônia?
Ab’Sáber – Eu penso que a cana-de-açúcar é o problema mais sério do momento. O George Bush não veio ao Brasil porque gosta do Governo brasileiro ou dos brasileiros, mas sim porque ele e seus técnicos sabem que aqui existem grandes espaços. Como os Estados Unidos estão em um dilema por ainda não terem assinado o Protocolo de Quioto, que estabelece metas de redução de emissões dos gases de efeito estufa, eles querem compensar as críticas internacionais apostando nos biocombustíveis, incentivando a produção brasileira de etanol da cana e biodiesel. Se o nosso Governo estivesse pensando em fazer estudos nas áreas já degradadas na Amazônia, para melhorar o solo através de processos agronômicos corretos, a gente ainda podia dizer que é um bom esquema. Mas temo que novos desmatamentos serão realizados para usar o solo por apenas dois ou três anos.
EC – Como o senhor vê a manutenção de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente?
Ab’Sáber – É um problema histórico para a biografia do Presidente da República. Não posso falar mais nada. Eu não posso admitir que a escolha de um ministro para uma determinada área seja feita à custa de desinteligência, planejamento e conhecimento sobre o país em seu todo. Mas isso é um problema do senhor Lula. Do senhor Presidente, aliás. Eu nunca falo o nome.
EC – O senhor ainda é amigo do presidente Lula?
Ab’Sáber – Não sei se ele é meu amigo. Eu só sou inimigo das besteiras. Acompanhei desde o início as Caravanas da Cidadania do Lula quando ele era candidato. Fui filiado simbolicamente ao Partido dos Trabalhadores. Hoje eu desconsidero isso. Não falo com o Lula desde o início do primeiro mandato. Naquela época, eu participei de uma reunião dele com 20 intelectuais. Fui o último a falar. Disse para ele tomar mais cuidado com a questão da transposição do Rio São Francisco e com outros temas ambientais. Enquanto eu falava, vi que o Antônio Palocci cochichou algo no ouvido do Lula, e logo recebi um bilhete dizendo que eu só tinha mais um minuto para me manifestar. Eu mantenho minha posição de independência cultural, técnica e científica. E continuo exigindo planejamentos mais corretos.
EC – Qual o problema com a transposição do Rio São Francisco?
Ab’Sáber – Eu não sou totalmente contra obras importantes, mas do jeito que eles estão forçando é mais por vaidade política demagógica, pois uma obra destas vai dar muito trabalho para as pessoas simples e pobres dos sertões nos quatro anos de governo.
É imprescindível conhecer melhor a região semi-árida da qual se pretende tirar um certo volume de água. Propagou-se desde o início uma estatística aproximada dizendo que a retirada das águas do São Francisco seria de apenas 1% do volume total do rio. Mas não se falou que a maior necessidade de águas para além-Araripe coincidiria com a estação seca dos meados do ano em que o São Francisco permanece com menor volume de água. Seria mais necessário ter águas exatamente quando o Nordeste semi-árido – designado por Grande Sertão Norte – estivesse mais quente e seco com seus rios “cortados”. Tudo leva a crer que este projeto certamente eleitoreiro e desenvolvimentista somente vai atender a fazendeiros da beira alta de alguns vales e a empreiteiras desesperadas por um novo ciclo de lucratividades. Ninguém seria contra a transposição se houvesse projetos paralelos simples e bem distribuídos por todos os sertões para ascender socio-econômica e socioculturalmente os mais pobres e desventurados habitantes do interior brasileiro.