GERAL

Monopólio de remédios versus interesse público

Por Stela Rosa / Publicado em 21 de abril de 2007

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Arte Claudete Sieber sobre foto de René Cabrales

Arte Claudete Sieber sobre foto de René Cabrales

Especialistas em saúde pública e representantes de organizações não-governamentais afirmam que o Programa Nacional de HIV/Aids pode estar correndo sério risco de sustentabilidade econômica. O motivo são os altos preços dos medicamentos anti-retrovirais (ARVs) patenteados, que o Governo federal compra dos laboratórios e distribui gratuitamente à população. De um lado, o Governo nega a iminência de qualquer crise e garante que continuará tendo fôlego para manter a universalidade do programa; de outro, os números mostram que cada vez mais o programa brasileiro – elogiado no mundo inteiro – acaba drenando receitas que seriam destinadas à compra de medicamentos para pacientes do SUS. Isso ocorre porque, com a lei de patentes, o poder de gerência das nações sobre o valor dos remédios é praticamente nulo. Francisco Rossi, consultor da Organização Mundial de Saúde (OMS), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), afirma que a manutenção do programa está cada vez mais fragilizada. “O financiamento necessário para a sustentabilidade está crescendo com muita rapidez, e logo será impossível continuar financiando-o. O angustiante desta realidade é que três ou quatro produtos que têm patentes representam mais de 70% do total dos recursos e são responsáveis por essa crise de sustentabilidade”, pontua.

O guia de preços para a compra de ARVs, produzido pela ONG Médicos sem Fronteiras (MSF) para orientar os países na negociação, mostra que nesse jogo comercial quem dá as cartas é a indústria farmacêutica. Para se ter idéia da falta total de regras, o tratamento de um paciente com o Kaletra® medicamento da empresa Abbott, e largamente prescrito no Brasil, pode variar de US$ 1.338 a US$ 6.300 por ano. Os preços mais baixos são somente nos locais que registram baixos índices de desenvolvimento humano e baixa renda. Porém, nem mesmo o fato de nações mais pobres constarem em algumas listas é garantia de valores menores. A média de preços da Nevirapina, por exemplo, usado para prevenir a transmissão do vírus HIV de mãe para filho, patenteado pela Boehringer Ingelheim (BI) e também fabricado na versão genérica por outras empresas, foi negociada nos países de baixa renda por U$ 219, quase o dobro dos U$112 pagos pelos de renda média, segundo Relatório Resumido do Mecanismo de Divulgação dos Preços Mundiais da OMS, publicado em março de 2006. Já uma comparação entre os valores praticados pela BI e os fabricantes de genéricos apresentam uma diferença de quase sete vezes, o primeiro cobrou em média US$ 445 por paciente/ano, enquanto os genéricos saíram a US$64. Segundo o guia, em 2005, a média ponderada do valor do tratamento do paciente/ano com remédios patenteados saiu até 12 vezes mais alta do que com os genéricos para os países de baixa renda, saltando de US$ 144 para US$ 1,7 mil. Fato que explica o porquê de alguns ARVs consumirem cerca de 70% do orçamento total do programa brasileiro.

No que diz respeito ao Brasil, as negociações são centralizadas pelo Ministério da Saúde (MS), com o objetivo de diminuir os valores. Se comparado aos outros países, a estratégia tem dado resultados positivos, e o Governo tem conseguido preços razoáveis, mas não para a realidade dos cofres públicos. Em números, isso representa que o MS gastou em 2005 33% do orçamento anual, que é de R$ 3 bilhões aproximadamente, para a compra de medicamentos de toda a população, apenas na aquisição dos ARVs. Portanto, os preços praticados também comprometem o acesso de remédios aos demais usuários do SUS. O cálculo é simples. Para garantir os ARVs para os 170 mil portadores de HIV em tratamento, o Governo investiu R$ 990 milhões, segundo informações da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia). Portanto, restou para atender às demais patologias que afetam os 180 milhões de brasileiros, entre elas doenças que também demandam drogas patenteadas de alto custo, pouco mais de R$ 2 bilhões.

Se a queda de braço entre o Brasil e a indústria farmacêutica fosse um jogo de xadrez, as multinacionais estariam em situação privilegiada, com peças estrategicamente localizadas para o xeque-mate. O lobby da indústria, a falta de investimentos nos laboratórios nacionais e a proibição de produzir versões genéricas dos pateteadas são trunfos fortes. Atualmente, o MS disponibiliza 17 ARVs para o tratamento. Sete deles, denominados de primeira escolha, são produzidos nacionalmente. Os demais, chamados de segundo escolha, são protegidos por patentes, bem mais caros e fundamentais no caso em que o paciente apresenta resistência às primeiras opções. Porém, mesmo com a disponibilidade de opções mais baratas, o assédio dos laboratórios junto aos médicos, que ofertam viagens, jantares e brindes, como foi mostrado na matéria “Jabá da indústria dos remédios”, na edição do Extra Classe de março, contribui para que os patenteados passem a ser usados em larga escala.

Eduardo Lütz, infectologista da Santa Casa e coordenador do serviço de aids de Gravataí, avalia que muitos soropositivos poderiam ser tratados com as opções de medicamentos nacionais, mas há uma tendência em optar pelos mais novos. “Há situações em que é necessário migrar para os mais a-tuais, em outras é possível tratar os efeitos colaterais e insistir na prescrição”, avalia. A diferença de preço entre essas opções é significativa.

Fragilidade das negociações brasileiras

Mariângela Simão, coordenadora do Programa Nacional, acredita que o Brasil vai continuar garantindo a distribuição gratuita e universal dos ARVs. Entretanto, a recente negociação do Governo brasileiro com a Abbott para diminuir o preço do Kaletra mostra que o que pode parecer uma grande vitória é somente uma estratégia para o lucro que virá à frente. Após longas negociações, o preço do comprimido baixou de US$ 1,17 para US$ 0,63. Comemorado como uma conquista, o acordo foi criticado por membros de Conselho Nacional e ativistas de ONGs, visto que, pela tendência do mercado, mostrado em relatórios sobre preços, os valores podem cair em até 70% em cinco anos, devido às novas drogas que surgem. No caso do próprio Kaletra®, a Abbott já desenvolveu uma nova formulação que ainda não está registrada nos países em desenvolvimento; portanto, não-disponível à comercialização.

Para Mário Scheffer, sanitarista, membro do Conselho Nacional de Saúde e militante do Grupo pela Vida, a negociação é uma política de vida curta. “Só esse caminho está esgotado, porque a cada ano surgem novas drogas que chegam ao país a preço de ouro. Além disso, temos cerca de 600 mil pessoas portadores de HIV que, em algum momento, podem precisar tomar os ARVs”, ressalta. Segundo Scheffer, além de negociar preços, é necessário investir na produção nacional. Ele avalia que não é possível quebrar as patentes de todos medicamentos através da licença compulsória , mas é viável produzir aqueles que têm mais impacto no programa. “Estudos feitos pelo PNUD, pela Abia e pela Fundação Clinton demonstram que os laboratórios brasileiros têm capacidade de fabricar esses medicamentos. É só uma questão de vontade política”, pontua.

Diante do contexto, a sustentabilidade é, no mínimo, frágil, visto que pela rapidez com que surgem novas drogas e pela possibilidade de o usuário consegui-la via judicial, prever o orçamento não é tão simples. Atualmente, estão para ser lançados novos remédios das empresas Pfizer, Merck, Boehringer. Para se ter uma idéia do significado de preço de ouro, atualmente, segundo informações do Programa Nacional, já há pacientes tomando medicamentos de terceira escolha que tem o custo anual de US$ 7 mil. a de favorecer um batismo visual. “É uma possibilidade muito rica de promover a identificação do público com esse mundo que, embora não seja real, espelha o real”, argumenta.

Produção Nacional de AVRs

Uma das alternativas que existe no atual contexto é a produção de genéricos, que pode ser implementada a partir da licença compulsória. No Brasil, diferentemente do caminho adotado pela Índia, que aproveitou os 10 anos de prazo para aderir ao Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), implantado em 1994, a Lei nacional de patentes foi aprovada em 1996. Jamaira Giora, coordenadora de assistência farmacêutica do Laboratório FioCruz Farmanguinhos, avalia que a instituição hoje possui capacidade de pesquisa e desenvolvimento de fármacos e medicamentos, mas falta investimento. “Há grande dependência do fornecimento de matérias-primas fabricadas por produtores farmoquímicos indianos e chineses. A indústria farmoquímica nacional possui capacidade técnica e científica para o desenvolvimento e produção de insumos ativos para ARVs, mas para isso necessita investir e, para investir, necessitaria de garantia de mercado”, ressalta.

A falta de vontade política para requerer a licença compulsória é apontada como um complicador por Michel Lotrowska, representante da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais do MSF no Brasil. “Hoje, umas oito ou nove licenças compulsórias já foram emitidas. A Tailândia acabou de emitir três de forma muito corajosa. Já o Brasil está com medo de passar para a ação. O Governo tem uma visão de curto prazo e não quer comprar uma briga com os Estados Unidos, pois teme as reações”, ressalta.

Outra artimanha usada pela indústria, denunciada por vários especialistas, é patentear mudanças triviais para obter uma nova proteção. Segundo Lotrowska, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), escritório brasileiro responsável pela análise dos processos de patenteamento, não tem a rigidez necessária para evitar esse tipo de prática. “Às vezes, o novo medicamento ou a nova indicação é extremamente pertinente para o paciente, mas não significa uma inovação científica relevante. O INPI está mais a favor de patentear esse tipo de medicamento. Mudar as regras do INPI e reconhecer apenas reais inovações, e não incrementos menores, são passos fundamentais”, finaliza. Maria Celi Saldanha, diretora adjunta do departamento de patentes do INPI, diz que o tema é complexo e reconhece que a instituição ainda não está equipada para atuar com a agilidade necessária. “Recentemente, contratamos 100 técnicos e 20 farmacêuticos”, informa.

Na ponta, sem ter idéia da queda de braço travada entre a indústria e os países para que o medicamento chegue às mãos de quem precisa, estão pessoas como Graziela Oliveira, 24 anos, dois filhos. Atualmente, o acesso ao ARVs é o que garante sua sobrevivência. O pior: no contexto mundial, ela pode considerar-se uma privilegiada. Segundo estimativas da OMS, das 3 milhões de pessoas que morrem anualmente vítimas da aids, 80% dos óbitos são decorrentes da falta de acesso aos remédios disponíveis.

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