Já não é novidade que a indústria farmacêutica vem sendo acusada de se afastar de sua missão original de descobrir e fabricar medicamentos úteis para, em vez disso, transformar-se em uma gigantesca máquina de marketing e lucro. Inclusive, o tema já foi pauta do Extra Classe em mais de uma ocasião. Finalmente, foi lançado no Brasil o livro A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos – Como somos enganados e o que podemos fazer a respeito, em que a médica Marcia Angell – ex-editora chefe do New England Journal of Medicine e atualmente integrante do Departamento de Medicina Social da Harvard Medical School – denuncia como essa indústria farmacêutica, corrompida pelos lucros fáceis e pela ganância, engana e explora seus consumidores.
Em seu livro, lançado nos EUA em 2004, ela aponta os sete pecados do ramo farmacêutico, entre eles uma das práticas mais perversas: os preços são mais altos exatamente para quem mais precisa. Segundo a autora, em 2001, por exemplo, um em cada quatro idosos norte-americanos relatou ter saltado doses ou deixado de adquirir medicamentos prescritos por falta de dinheiro. Enquanto os lucros sobem vertiginosamente, os laboratórios têm a desfaçatez de usar sua fortuna e poder para impor o que é do seu interesse ao Congresso, a centros médicos acadêmicos e ao FDA, agência norte-americana responsável pela regulamentação de alimentos e medicamentos. Imagine no terceiro mundo.
Para Marcia Angell, a prática dos laboratórios é uma chantagem com o consumidor e baseia-se num princípio infundado: o gasto com pesquisas. Ela afirma que o setor de Pesquisa e Desenvolvimento consome a menor parte dos orçamentos das grandes empresas do setor, se comparado com despesas de marketing e administração. “A indústria farmacêutica não é particularmente inovadora. A grande maioria de medicamentos novos não o é. São apenas variações de drogas já à venda no mercado com o intuito de conquistar uma fatia de consumo lucrativa e estabelecida”, revela. Seu livro é uma denúncia urgente de uma indústria que escapou a todo o tipo de controle, inclusive governamental.
A autora é uma autoridade americana de renome no campo da política de saúde e da ética médica, além de ser uma crítica ferrenha do sistema de atendimento de saúde. A revista Time a incluiu entre as 25 pessoas mais influentes dos Estados Unidos. A Dra. Angell é também autora do livro Science on Trial: The Clash of Medical Evidence and the Law in the Breast Implant Case. Leia entrevista exclusiva concedida por ela ao Extra Classe via email, dos Estados Unidos.
Extra Classe – Em seu livro, a senhora afirma que a indústria de medicamentos justifica o preço dos remédios pelo alto custo das pesquisas. Basicamente, que se paga pelo que se recebe. Esse argumento da indústria se justifica? O que é verdade e o que é mentira nesse processo?
Marcia Angell – As grandes indústrias farmacêuticas gastam muito mais em marketing do que em pesquisa, e elas conseguem mais em termos de lucro. Assim, os altos preços são para cobrir os enormes gastos com marketing e para manter seus lucros obscenos. Isso é uma grande enganação. Os laboratórios farmacêuticos querem que nós acreditemos que eles precisam cobrar valores elevados pelos medicamentos devido aos investimentos gastos com pesquisa e desenvolvimento de novas fórmulas. Mas é uma grande mentira. Na verdade, eles investem duas vezes mais em marketing do que gastam em pesquisa e desenvolvimento. Embolsam muito mais dinheiro do que o valor gasto nessas duas áreas. É um negócio altamente lucrativo. Podemos afirmar, portanto, que os altos preços cobrados por eles ainda ultrapassam os gigantescos gastos com marketing e mantêm os lucros em níveis absurdos. A verdade está aí para quem quiser ver. Qualquer um pode ir aos sites das companhias e conferir os relatórios anuais para descobrir o quanto eles têm dito que gastam em pesquisa e desenvolvimento e o quanto gastam em marketing e administração.
EC – Na verdade esse comportamento da indústria não é exclusivo dos EUA. Como a senhora observa essa cultura do comércio de medicamentos mundo afora?
Marcia Angell – As grandes indústrias farmacêuticas são multinacionais e têm um comportamento muito igual no mundo todo. É verdade que outros países regulam os preços de formas variadas e isso é importante.
EC – Nesse contexto, como a senhora avalia a quebra de patentes para medicamentos de combate a Aids, por exemplo?
Marcia Angell – Creio que é legítimo se as indústrias farmacêuticas não quiserem baixar seus preços para que as pessoas possam obter os medicamentos que precisam.
EC – Os países mais pobres têm condições de conviver com as atuais tarifas impostas pelas indústrias de medicamentos? As vidas humanas não justificariam uma melhor adequação desses lucros?
Marcia Angell – Os países mais pobres são os que mais sofrem e obviamente têm suas populações excluídas do consumo de grande parte dos medicamentos. Sendo assim, eu concordo muito com a adequação dos lucros. A maioria das drogas realmente inovadoras são baseadas em pesquisas financiadas com verba pública em universidades e laboratórios do governo, que são [posteriormente] licenciadas para as indústrias farmacêuticas. Essas indústrias devem à população algo em troca. Drogas que podem salvar uma vida, no fim das contas, não são como um bem de consumo qualquer, não são uma opção. E não fique com a impressão de que as indústrias em questão estão mal conseguindo se manter! Elas têm lucros extraordinários.
EC – Como a sociedade se tornou refém da indústria farmacêutica?
Marcia Angell – O problema fundamental é que as empresas farmacêuticas são negócios cujos donos são os investidores. Seu objetivo primário é maximizar os lucros. Essa situação requer muito mais regulamentação para garantir que elas façam drogas genuinamente importantes e coloquem preços justos.
EC – Como funciona o sistema de chamarizes, subornos e propinas que a senhora menciona no livro?
Marcia Angell – As empresas farmacêuticas são tão ricas que elas podem cooptar a maioria das instituições, que podem insistir numa regulamentação – incluindo o Congresso Americano, a FDA (Food and Drugs Association) e a profissão médica. Posto que os médicos têm que passar receitas, as indústrias farmacêuticas despejam bilhões de dólares para influenciá-los. Chamam de “educação”, mas na verdade é marketing.
EC – Como funciona o jogo das patentes e a compra de influências para certificação dos monopólios?
Marcia Angell – A coisa mais lucrativa que as empresas farmacêuticas podem fazer é estender seus direitos de marketing exclusivo para medicamentos de marca, de forma que eles não precisem competir com os medicamentos genéricos. Elas fazem isso de formas diversas. Uma delas é fazer através de variações triviais nos medicamentos que vendem mais para que consigam uma nova patente. Esses são os chamados medicamentos de imitação (me-too drugs), e atualmente existem famílias inteiras desses medicamentos e pouco motivo para crer que um é melhor que o outro em doses equivalentes.
EC – Como a indústria disfarça o marketing como informação educativa e de pesquisa?
Marcia Angell – Não fazem muito esforço para disfarçar! Pagam pela maior parte da ‘educação’ de médicos no que tange a receitas médicas, juntamente com outros agrados, tais como viagens e refeições. Logo, é lucrativo para os médicos fazerem de conta que é de fato educação. Mas, naturalmente, é evidentemente absurdo esperar que empresas sejam imparciais sobre os produtos que vendem.
EC – Por que os medicamentos de imitação (sobras de produtos inovadores originais) são o forte da indústria?
Marcia Angell – Porque é super fácil e barato fazê-los e tendem a mirar condições amenas que afetam um grande número de pessoas, assim sendo, há um grande mercado. Os fabricantes de remédios têm despejado os medicamentos de imitação no mercado porque eles querem aumentar os ganhos imediatos, fazendo lucro certo e rápido por meio da fabricação das supostas novas versões, que foram, na verdade, criadas a partir de medicamentos conhecidos. Muitos remédios de imitação têm boas perspectivas de êxito, o que acaba levando esse mercado a um crescimento enorme, impulsionado facilmente pela ação publicitária. Existe hoje toda uma família de produtos de imitação. Para se ter uma idéia, há seis remédios muito similares para o controle do colesterol. Um deles, o Lipitor, da Pfizer, está entre os produtos top do mercado, mas ele é realmente um produto de imitação. Eu acho que o consumidor está cansado dessa situação, de pagar preços exorbitantes por mercadorias por conta de gastos astronômicos das empresas em suas marcas e também na área administrativa. O FDA informa que próximo a 80% do que foi lançado pelas empresas nos últimos sete anos não eram mercadorias muito melhores ou diferentes do que aquelas que já estavam sendo vendidas pelo mercado. Mas eles não podem fazer nada. A ação do órgão se restringe a liberar medicamentos que tenham efeito sobre a doença identificada. E o produto irá agir, já que ele é uma cópia de outros medicamentos que já atuam sobre a doença. Então não há muito o que fazer nesse sentido.
Tradução do inglês: Paulo R. S. Ramos