GERAL

Juventude, consumo e violência

Por César Fraga / Publicado em 16 de setembro de 2007

Segundo o último Censo do IBGE, a população brasileira entre 15 e 29 anos é de 47 milhões. No Rio Grande do Sul, 1,8 milhão está entre os dez e os 19 anos. Por trás deste universo estatístico existe um problema terminológico e mistificador. Dos 18 em diante, o cidadão passa a ser considerado adulto perante a Lei. E é somente antes dessa idade que existe a figura do jovem para o estado de direito, respondendo criminalmente de acordo com Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). De 2002 para cá, houve um aumento na população da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase-RS) de 25%, o que pode ser um termômetro da violência praticada por jovens. Por outro lado, a violência juvenil se comparada à adulta é pequena. De acordo com o sociólogo da Fase, Luis Leonel Rodrigues, nas localidades onde existe maior presença do poder público e redes de apoio aos jovens, como São Leopoldo e Santo Ângelo, vem caindo ou se mantendo estável o número de internos na instituição, e o inverso também ocorre. Já em Porto Alegre, houve um crescimento de 142,4% no número de adolescentes internados no período de dezembro de 2001 a julho de 2007, tendência que não é acompanhada pelos demais municípios. “Mas é preciso observar que isso não se dá de forma homogênea na Capital. O aumento dessa criminalidade juvenil, mostra que nos bairros onde as redes de apoio possuem maior inserção os números têm se mantido estáveis ou diminuído, como no caso da Restinga. Em outros, onde as redes são mais frágeis, como no bairro Bom Jesus, por exemplo, o número de internos é crescente”, explica.

De acordo com o presidente do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente (Cedica), Irani Bernardes de Souza, apenas 0,49% dos crimes de autor conhecido, praticados no Rio Grande do Sul, são cometidos por menores de idade. O estudo foi feito com base nos números da Secretaria de Segurança Pública de 2006. Mas também é verdade que a população carcerária nacional tem em sua maioria homens entre 18 e 29 anos (65%). No Rio Grande do Sul, conforme dados da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) de julho deste ano, 13.111 presos pertenciam a esta faixa etária, 52,6% do total de 24.938. Conforme os dados do sistema carcerário no estado, 15,6 mil não completaram o Ensino Fundamental, 2.044 foram apenas alfabetizados e 1,2 mil são analfabetos. Esses números ajudam a entender a “escolha” pela criminalidade. O problema é mais complexo e inicia antes mesmo da fase adulta. É o período que vai dos 13 aos 17 anos que representará o divisor de águas nessas escolhas. É nessa faixa etária que a sociedade ou insere este jovem em um mundo de reais oportunidades ou o perderá para a criminalidade e para as drogas. Essa é a disputa nem tão silenciosa que se impõe. Conforme o Juiz da 3ª Vara da Infância e Adolescência, Leoberto Brancher, a ampliação do repertório de alternativas para esses jovens não se resolve com o trabalho de repressão policial. “Existe uma necessidade legítima de pertencimento à sociedade com estratégias ilegítimas para se chegar a este objetivo. Essa contradição produz o crime”, sentencia.

EDUCAÇÃO – “O que podemos observar é uma relação entre escolaridade e o conflito com a Lei. Os jovens com baixa escolaridade em geral cometem delitos associados à necessidade e ao desejo de consumo (tênis, celulares, moda, games). Há também o desejo de se sentirem respeitados, com status na localidade onde vivem e até mesmo de fazer parte de um grupo, mesmo que este grupo seja uma gangue, o crime organizado ou quadrilhas ligadas ao tráfico”, explica o sociólogo Luis Leonel. Segundo ele, todos esses componentes são importantes para entender o problema. Além disso, faltam programas nas prefeituras para quando o jovem cumpre a medida e volta para a comunidade. “A maioria dos municípios não possui esse acompanhamento e sequer trabalhos de prevenção. As comunidades agem como se esses jovens não pertencessem a elas e se isentam de ações mínimas de assistência social”, conclui.

PERFIL – O Juiz da Infância Leoberto Brancher, descreve os menores infratores como sendo oriundos de um ambiente de ausência familiar, seja pela falta real, seja pelo não-exercício do papel dos pais. “Fizemos um levantamento em uma unidade da Fase em Caxias, onde 70% não conheciam o pai. E a figura do pai, de acordo com teorias da psicanálise, é uma figura estruturante do sujeito. É a função paterna que insere o sujeito no mundo da cultura, da normatização do comportamento desde o primeiro estabelecimento de limites entre o bebê e sua mãe. De certa forma, o pai representa um princípio de realidade e acaba sendo um representante da lei simbólica na relação de formação do indivíduo”, teoriza. Essas condições são mais visíveis nas camadas de baixa renda. Para ele, nas camadas mais altas isso ocorre quando, mesmo com a existência dos pais, os papéis não são exercidos. Mas a questão da renda é um fator que leva ao crime, em primeiro lugar pela ambientação, pois a criança desde a primeira infância, nos sete primeiros anos, vive em um processo vital para a organização de sua personalidade. “Se essa criança vive em um ambiente estressor, de violência, de gritos, que não oferece segurança, estabilidade e uma rotina, ela não se organiza internamente e futuramente vai ser um jovem desorganizado socialmente. O fator renda influi no sentido de que as pessoas passam por privações materiais e emocionais por falta de condições de subsistência. Elas têm de sair para puxar carrinho na rua, em geral as habitações são muito frágeis, não é só o frio que entra, qualquer marginal pode botar a porta abaixo com um ponta-pé. Isso gera um ambiente de muito medo e de insegurança que vai contaminando a criança. Essa criança já cresce em alerta de defesa. Isso gera uma situação que facilmente se converte em violência. Existe uma visão da sociedade de que a violência gera insegurança, quando na verdade é a insegurança que gera a violência”, conclui.

A mistificação desfoca o problema

O juiz Leoberto Brancher, da 3ª Vara da Infância e da Juventude, chama a atenção para o fato de que a prática da violência, quando cometida por jovens, tem um caráter perturbador para a sociedade e acaba gerando um mito, pois é vista de forma desproporcional à sua própria realidade estatística. Ele cita o caso João Hélio, do Rio de Janeiro, em que eram cinco os infratores e um deles era menor. “No entanto toda celeuma e o debate público, que se deu principalmente na imprensa, ocorreu justamente em torno do menor envolvido no caso, mesmo que este tenha participado de forma periférica no ocorrido”. Isso mostra, conforme Brancher, uma grande “irresponsabilidade da imprensa brasileira” na hora em que elege ícones e decide o que pode render como notícia, mesmo que não represente exatamente o que é de fato.

Para ele, o outro lado desse clichê da exploração do menor criminoso no noticiário também é compreensível, porque o estranhamento que gera um crime cometido por um menor é maior. “É aquela criança que agora virou um bandido, que antes era um anjo e resolveu se enfurecer e quebra uma expectativa da sociedade. Então isso acaba sendo um fenômeno muito profundo e inconsciente, gerando essa inquietude da sociedade que passa a enxergar mais a violência no jovem do que no adulto”. Ele alerta ser este um sintoma de que o nosso modelo de relacionamento na educação dos jovens está falhando e lança algumas questões: “O que está acontecendo? Por que esse jovem se drogou, se rebelou? Esse filho é como se fosse o filho de todos. Que sociedade é esta que estamos produzindo? Então quando
esse jovem violento aparece, ele também aparece como uma denúncia de nossas falhas enquanto sociedade, gerando ainda mais tensionamento. Sendo assim, a mistificação da violência juvenil vai além da dimensão estatística, por essa perturbação que ela gera.”

Jovens da capital superlotam a Fase

Porto Alegre teve um crescimento recorde de jovens infratores nos últimos seis anos, 64% acima da média estadual. Conforme os números do departamento de Assessoria de Informação e Gestão da Fase-RS, no Juizado da Infância e da Juventude (JIJ) de Porto Alegre, no período de dezembro de 2001 a julho de 2007, houve um crescimento de 97,1% no número de adolescentes procedentes dos 25 municípios que o integram, índice bastante superior ao crescimento do total de internos na instituição nesse período (61,5%). Considerando apenas o município de Porto Alegre, houve um crescimento de 142,4% no número de adolescentes internados no período, o que, em números absolutos, significam mais 235 adolescentes em menos de seis anos, ou seja, a população de mais de cinco unidades da Fase, de acordo com o que recomenda o Sistema Nacional do Sistema Sócio-Educativo (Sinase) .

O índice é considerado “absurdo” pelos técnicos da Fase, já que o aumento no número de adolescentes procedentes de Porto Alegre não foi acompanhado pelos demais municípios que integram esse Juizado, uma vez que, nestes, o crescimento foi de 29,7%, no mesmo período, índice significativamente inferior ao de todo o estado. Assim, em julho de 2007, o município de Porto Alegre foi responsável por 73,5% dos adolescentes de todo o JIJ que estavam privados de liberdade na Fase-RS, chegando a 29,3 adolescentes internados para cada 100 mil habitantes residentes no município, enquanto a média estadual é 11,4 adolescentes internos na Fase-RS para cada 100 mil habitantes. Considerando apenas a população jovem, na faixa etária de dez a 19 anos, constata-se que do município de Porto Alegre há 172,1 adolescentes na Fase-RS para cada grupo de cem mil jovens nessa faixa de idade, ao passo que, para todo o estado, esse índice é de 61,8.

INVESTIMENTO – De acordo com Mauro Zacher, da secretaria da Juventude de Porto Alegre, há que se investir mais em políticas de Infância e Juventude. “O país não se preparou para atender as necessidades desses jovens e agora corre atrás do prejuízo. É preciso moldar o poder público a essa realidade de crescimento demográfico dos jovens e moldar os projetos para que tenham a cara do jovem”. Para o secretário, o ProJovem (que investe na capacitação para o mercado de trabalho), tem trazido resultados positivos, pois esse jovem de 18 anos já não se enquadra na escola normal. Muitos já constituíram família. Já a ação da secretaria é limitada no que diz respeito a uma maior setorização por bairros, por exemplo. “Como trabalhamos com projetos, não temos como prever um maior número de inscrições para esta ou aquela localidade. O que estamos fazendo é aumentar o número de vagas para projetos de qualificação profissional. Agora são 1,7 mil. A grande maioria dos jovens que procuram os programas de capacitação da prefeitura são de baixa renda. O zoneamento seria muito complicado, é um trabalho para as Ongs”.

São Leopoldo reduziu o número de internações de adolescentes

Conforme o estudo da Fase-RS, São Leopoldo foi o município que mais reduziu as internações. No conjunto de municípios do Juizado de Novo Hamburgo está havendo redução do número de adolescentes desde 2004, ano em que foi inaugurado o Centro de Atendimento Sócio Educativo (Case) – Novo Hamburgo, contrariamente ao que ocorria na maior parte dos Juizados, onde a implantação de uma unidade de atendimento era acompanhada de um aumento no número de adolescentes internados. Para os sociólogos da Fase-RS, a implantação da unidade pode ter representado uma melhor articulação com a rede de atendimento da região. Os dados de São Leopoldo indicam que nos últimos anos, aredução em São Leopoldo contraria a tendência do conjunto do sistema Fase-RS, com aumento de 61,5%. No caso dos adolescentes de São Leopoldo, comparando os anos de 2001 e de 2007, houve queda de 34,4% e, na comparação entre 2003 e 2007 a diminuição de adolescentes internados na Fase-RS foi de 48,1%.

A participação percentual de São Leopoldo nas estatísticas de internação na Fase de Novo Hamburgo caiu de 47,1%, em 2001, para 33,3% em julho de 2007. A redução absoluta do número de adolescentes corresponde praticamente à capacidade de um Case inteiro. O município, que chegou a ter 41 jovens privados de liberdade na Fase-RS para cada 100 mil habitantes (2003) passou, num período curto de tempo, a contar com um índice em torno de 21 jovens privados de liberdade para cada 100 mil habitantes, mais próximo da média do estado do Rio Grande do Sul (11,4).

PREFEITURA – Para Adriano Pires, responsável pela Coordenadoria Municipal da Juventude de São Leopoldo, – órgão com status de secretaria, que integra o gabinete do prefeito e abrange assistência social, esporte, cultura, lazer, trabalho e projetos sociais –, afirma que a primeira medida, em 2005, que deu efeito imediato foi a implementação de medidas sócio-educativas de meio aberto, em vez do encaminhamento direto à Fase como costumava ocorrer. “Esse jovem é atendido por Ongs de uma rede de apoio conveniada à secretaria de Assistência Social. Acredito que isso tenha reduzido em 50% a quantidade de jovens no sistema fechado. A grande maioria tem sido estimulada a permanecer na escola ou volta a estudar. Não adiantam medidas sócio-educativas se não existir política de inserção desses jovens na sociedade. E essas políticas, quando implementadas encontram respostas positivas”, completa.

Ele queria um videogame

Fábio, 15 anos, está há quatro meses e meio na Fase, cumpre medida provisória por latrocínio. A até o dia do crime cursava a 7ª série do Colégio Princesa Isabel, no Bairro Navegantes. Começou a andar armado um mês antes de ser internado na Fase, quando conheceu o parceiro de assalto. “Eu e um amigo fomos assaltar uma locadora num bairro próximo e meu amigo acabou matando o dono. A gente queria roubar uns PlayStation II (jogo eletrônico que custa R$ 700 em média). Um eu ia ficar para mim e outro era para vender. Foi meu primeiro assalto. Depois de uns dias a gente se arrependeu e se apresentou na promotoria. Meu amigo morreu na rua. Mataram ele dois dias depois. Esse meu amigo, o Leo, tinha 17, quase 18. Nesse dia a gente tava armado. Eu tava com um revólver 22 e ele com um 38. A vítima tinha uns 24 anos eu acho. Nesse tempo que eu tô aqui tenho pensado na minha vida, na vida da família da vítima, nas coisas que errei. Só penso em sair daqui”, desabafa o menor. Os planos são os de sempre: voltar para família, para a namorada e para os amigos. “Mas não para a galera pesada. Quero reencontrar de novo os amigos que me criticaram, que tentaram me avisar que eu tava entrando um lance que não era legal”, justifica. O pai de Carlos estava desempregado, a mãe é falecida, sua relação com a madrasta é ruim, praticamente não se falam. O jovem diz que o pai não é de conversar muito, mas que dá “uns conselhos bons”. “Ele fala para quando eu sair daqui não me envolver com os caras do outro lado da vila, para ficar mais em casa, porque o pessoal do outro lado é errado”. Ele garante que teve pequeno envolvimento com drogas. Basicamente maconha antes de dormir e que nunca traficou.

Cúmplice e vítima de violência

Claudete, 17 anos, proveniente dos bairros pobres de Charqueadas, já está há um ano na medida sócio-educativa e aguarda sua saída. Participou de um assalto, que resultou na morte de um motorista de táxi em Charqueadas. Conforme o relato saiu de casa com 12 anos e foi morar com um rapaz. Logo teve seu primeiro filho. Viviam bem até que o marido, após a morte acidental do segundo bebê, se envolveu com crack e acabou perdendo as poucas posses que tinham, uma casa, uma carroça e um cavalo, que serviam-lhes de sustento. O rapaz passou a ficar violento e muitas vezes batia nela. Até que um dia resolveu levá-la para uma de suas investidas, já no mundo da criminalidade. Ela testemunhou o marido assassinar a sangue frio o taxista depois que este o teria reconhecido. Foi considerada cúmplice. Claudete, apesar de estar internada mantém seu terceiro filho, com pouco mais de um ano, dentro da Fase sob sua guarda. Sua outra filha de cinco anos está na casa da madrasta, já que a mãe, alcoólatra, depois de algumas tentativas de suicídio, morreu em decorrência do alto consumo de álcool. “Nossa casa, no tempo que morava com a minha mãe, parecia um boteco, sempre tinha um monte de gente da vizinhança por lá enchendo a cara com minha mãe e meu padrasto. Eu ficava vendo as outras crianças que tinham pai e mãe e levavam uma vida normal e só pensava por que a minha vida não era assim?” – Por intermédio da Fase foi reconectada com o pai, com quem havia perdido o contato desde que este havia se separado de sua mãe há vários anos. Graças aos pães caseiros, doces e compotas que produz já tem R$ 800 reais guardados.

Matou para não assaltar

Rodrigo, 17 anos. Bairro Serraria, na capital. Internado na Fase há um ano. “O cara tinha me convidado para participar de um roubo e não aceitei. Durante um tempo o cara (a vítima) ficou me ameaçando. Então um dia, eu tava com um parceiro e encontramos o cara numa esquina com a namorada. Meu parceiro puxou a arma dele e atirou no cara aí eu atirei também. Esse cara (a vítima) queria que eu fosse motorista num assalto porque sabia que eu dirigia. Quando não aceitei ficou rolando uma pressão. Tinham tentado me matar duas vezes. Eu queria, na real, falar com o cara e deixar tudo tranqüilo, mas aí acabei matando. Agora o bairro tá mais calmo, mas ainda tem o pessoal que mete drogas. Pegam a gurizada mais nova para ficar na rua cuidando a boca. Se alguém avisar que choveu (que apareceu a polícia), os patrões se mandam e ficam só os pequenos jogando bola na rua para despistar”, relata. Rodrigo começou a andar armado com 15 anos e é o terceiro de cinco irmãos. Filho de policial aposentado, diz que a relação com a família sempre foi boa. O pai, a mãe, a namorada e os irmãos vão visitá-lo semanalmente. Pelo menos por enquanto, antes de retornar para casa, ele afirma que quer voltar para a liberdade e não para o crime, e que pretende defender os irmãos menores do envolvimento com a “vagabundagem”. Quer arranjar um emprego decente e viver bem com a família. “Converso com meu irmão de 11 anos para ele não ficar até muito tarde na rua porque a gente começa a perder assim. Não quero que ele passe pelo que eu tô passando. Minha mãe tem que tirar a roupa nas revistas quando vem me visitar, se humilhando na frente de gente estranha. A gente tá fazendo tudo para ele não entrar nessa vida que eu entrei. Uma época eu até usei maconha, mas não fazia a minha cabeça. Era só viagem. Não quero voltar para essa vida senão vou acabar morrendo ou preso”.

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