GERAL

Por um tempo maior que o agora

Por Jacira Cabral da Silveira / Publicado em 15 de novembro de 2007

“Realmente, a cada dia vêm consultar no analista pessoas que se queixam de um mal-estar difuso, de uma inapetência para viver, de uma impossibilidade de desejar e de agir”. Esse é o trecho de uma das cartas do psicanalista francês Roland Chemama, que faz parte do livro Depressão, a grande neurose contemporânea, que ele lançou na Feira do Livro de Porto Alegre deste ano. Em sua breve temporada no estado, ele também realizou uma série de palestras abordando temas como O homem dos lobos, que consta da literatura freudiana, e Depressão, os herdeiros de maio de 68, quando abordou a utopia de um mundo sem proibições e o desejo: “Desejar é se topar com dificuldades, encontrar um caminho, porque se tudo é aberto, oferecido, eu só posso me perder e me tornar deprimido”. Chamama falou ao Extra Classe sobre o sujeito contemporâneo e suas dificuldades em lidar com o desejo e de viver em um tempo maior que o agora.

Extra Classe – O que o senhor abordou em sua participação no Seminário O homem dos lobos, do relato do caso à teoria que ocorreu dia 28 de outubro, em Porto Alegre?
Roland Chamama
– Para responder a esta questão, devo situar o meu trabalho destes últimos anos como um estudo que incide sobre uma clínica bem particular que diz respeito a sujeitos que não são claramente pessoas neuróticas, nem claramente pessoas psicóticas. Elas podem apresentar fenômenos de tipos psicóticos e podem mesmo evidenciar traços perversos, mas, comumente, apresentam-se igual a cada um de nós: como neuróticos comuns. Esse tipo de complexidade, que é difícil de abordar, ostenta elementos muito interessantes para trabalhar com este tipo de dificuldade, como no caso do homem dos lobos do qual Freud fala. Certamente ele atendeu muitas pessoas, mas, particularmente, dos cinco históricos casos clínicos, o homem dos lobos é aquele que está mais próximo desse tipo de sujeito moderno que situamos com dificuldade. O meu estudo sobre o trabalho de Freud é uma retomada desse trabalho. O que tento fazer é tornar possível ir mais longe nessa clínica.

EC – O que o senhor pretende analisar quando prepara uma palestra que aproxima depressão e os “herdeiros de maio de 68”?
Chamama
– O que se passou em 68 é um fenômeno que tem muitas faces, certamente há uma revolta, principalmente da juventude, contra tudo aquilo que podia sufocar o desejo de mudança, de chegar a uma vida mais satisfatória. Mas, ao mesmo tempo, qual foi o resultado do que se passou naquele momento? Certamente há transformações positivas que não posso negligenciar. Mas também não há essa utopia a respeito da qual se chegaria a um mundo sem nenhuma proibição. O que estava escrito nos muros do Quartier Latin, em Paris, era justamente “é proibido proibir”. Ora, o sujeito humano não pode desejar uma coisa se ele tem acesso a tudo. E se ele tem acesso a tudo, tudo se confunde, nada mais tem valor particular. É, de uma certa forma, o que se passou após maio de 68. Porque se começou a considerar possível todos os gozos, da droga, como todas as formas da sexualidade, mas eu não insisto mais nesse ponto. Poderia se pensar que isso nos leva a sujeitos que estão numa situação de exaltação em relação ao gozo. Mas no que diz respeito a todas essas possibilidades, o sujeito pode facilmente se entediar e, sobretudo, se vamos mais longe, podemos afirmar que é a interdição que torna possível o desejo – que é um pouco o que acabo de dizer. Eu posso desejar uma coisa se tudo não estiver aberto, desejar é se topar com dificuldades, encontrar um caminho, porque se tudo é aberto, oferecido, eu só posso me perder e me tornar deprimido.

EC – Como relacionar a privação social de referências – como a Igreja e o Estado – com a depressão do sujeito contemporâneo?
Chamama
– Com essa questão você passa do individual ao coletivo. Quando se diz: é proibido proibir, isso certamente diz respeito ao sujeito individual, mas igualmente às instituições sociais das quais você fala, que propõem leis, simbólicas ou reais, referências, valores. Não é só a referência do sujeito individual a uma proibição que funciona no nível da família, é a questão da referência a valores comuns. Quando não há mais essa referência, nós nos encontramos frente a essa desorganização e, talvez, a essa depressão do sujeito contemporâneo.

EC – O senhor afirma que a depressão não se caracteriza por uma tristeza qualquer, o que a caracteriza então?
Chamama
– Você tem razão em colocar esta questão justamente agora, porque o que eu disse até o momento pressupunha uma resposta a esta questão. Pensa-se com freqüência que a depressão é uma perturbação do humor: o sujeito se mostra triste, se sente triste. No meu entender isso não é o essencial, porque o que pode nos deixar tristes é que, por uma razão ou por outra, nós não temos meios de sustentar nossos desejos. Para mim, as depressões são, fundamentalmente, inibições radicais do desejo e do ato. O que eu disse até o momento é que em um certo tipo de situação, por exemplo, quando se fragilizam as proibições, o desejo também se fragiliza, o humor se torna triste, e o sujeito então se torna deprimido.

EC – “O sujeito deprimido vive um tempo uniforme e monótono”, o senhor poderia explicar esta observação quanto ao verbete “ depressão” constante no Dicionário de Psicanálise, que teve a sua coordenação e foi relançado na Feira do Livro de Porto Alegre?
Chamama
– Continuo a seguir o fio da questão do desejo. O verdadeiro desejo supõe uma certa relação com o tempo. O fato de projetar qualquer coisa no futuro, de pensar o tempo presente como a forma de atingir um objetivo e de procurar no passado se há meios para realizá-lo. O próprio da depressão – e de fato foi nisso que comecei meu trabalho sobre a depressão – é de não poder representar para si o tempo nessa continuidade. Com efeito, o tempo do sujeito depressivo é um tempo circular. Ele está convencido de que as coisas poderão apenas retornar de forma circular, da forma como elas são atualmente. É um fenômeno correlato de sua relação difícil com o desejo, mas que também pode ter relação com a maneira como o mundo contemporâneo organiza nossa relação com o tempo.

EC – O que acontece efetivamente na sociedade contemporânea em relação ao tempo?
Chamama
– Cada época privilegia uma noção do tempo. O que privilegia o mundo contemporâneo certamente não é o passado. Mas também não é o futuro no sentido de uma esperança coletiva. Freqüentemente as pessoas não acreditam no futuro. O mundo contemporâneo é este que se vive o instante. Isso se vê bem no que se chama de tempo real, ou seja, a possibilidade de reagir em Porto Alegre no mesmo momento que alguma coisa ocorre em Tóquio. Isso leva o sujeito contemporâneo a não viver num tempo que tenha uma continuidade, mas que é feito de instantes separados. Por si mesma a representação contemporânea do tempo impede de pensar um projeto ou um desejo em um tempo suficientemente longo. Talvez para um plano econômico seja conveniente criar objetos que serão vendidos em três meses e depois isso não importará mais. Mas a subjetividade não deveria ser isto. E como o sujeito contemporâneo que é tomado neste tipo de concepção de tempo, e tomado em uma coisa que não lhe convém, ele não pode formar projetos nem desejos, mas ele não se dá conta desses impedimentos e a sua única maneira de testemunhar é a depressão.

EC – Como explicar esta questão do tempo nos casos de crianças e adolescentes?
Chamama
– Com efeito, é uma questão importante, porque a infância e a adolescência são períodos nos quais, para se formar, é necessário uma representação do tempo. Crianças e adolescentes têm a necessidade de dizer para si que mais tarde atingirão objetivos que não podem atingir hoje. Em nossa sociedade nós distinguimos muito mal os períodos da vida. Não sabemos dizer às crianças que tem coisas que não são possíveis hoje e que serão possíveis para eles mais tarde. Talvez porque nós mesmos não sabemos mais o que é possível e o que não é possível. Eu penso que isso não facilita as coisas para as crianças e para os adolescentes. Uma criança para a qual não se colocam limites fica angustiada, deprimida. Mas isso não se vê sempre porque eles escondem o que sentem em um comportamento de agitação, de gritos, quebram as coisas. Fala-se de criança hiperativa, mas as crianças hiperativas são freqüentemente crianças deprimidas.

EC – Qual o papel da escola e do professor neste momento?
Chamama
– Os professores têm uma responsabilidade fundamental, porque quando a criança está na escola ela tem que se dar conta que ali tem regras: deve vir no horário, não pode se colocar a gritar no meio da sala de aula, deve fazer seus temas. Por vezes, isso não se instala muito bem porque sua família não preparou esta possibilidade, e o professor não pode fazer tudo. Ele pode tentar fazer alguma coisa estabelecendo contato com os pais e a criança, encorajando-os a falar dos problemas entre si, e mesmo que procurem profissionais. Muitas vezes isto é absolutamente necessário. Mas é verdade que o professor tem um lugar decisivo atualmente, ele deve fazer a mediação entre tudo o que a nossa sociedade torna difícil e os valores que resistem. É do trabalho do professor mostrar a importância disso.

EC – Como o senhor avalia a prescrição de antidepressivos no caso de adultos e outros medicamentos para crianças com diagnóstico de hiperatividade?
Chamama
– Eu não me oponho ao uso do medicamento. Quando alguém está em análise, procurando lidar melhor com as suas dificuldades, tentando realizar alguma coisa neste sentido, ele pode se encontrar em determinado momento angustiado com essa tarefa. Nesse caso, se ele é acompanhado por um profissional e tem na análise um lugar de fala, por que não tomar um medicamento se isso pode ajudá-lo? A idéia é não tentar arrasar o problema do indivíduo por uma medicação imediata ou muito forte. O mesmo digo para os casos com crianças. Se aos seis anos ela é bombardeada com medicamentos, o que vai acontecer no seu futuro?

EC – O conceito de “afeto” no Dicionário de Psicanálise é apresentado como a primeira classificação das neuroses, segundo a forma pela qual um sujeito se comporta em relação a seus afetos. Queria que o senhor destacasse a questão do afeto e a depressão.
Chamama
– É verdade que no dicionário nós salientamos isso, porque na primeira teoria de Freud o afeto tinha uma certa importância para falar das neuroses, como a histeria e a neurose obsessiva. Certamente esse conceito perdeu logo a seguir sua importância, e você percebeu que, quando falamos da depressão, insistimos mais na questão do desejo, que é algo que está antes do que nós chamamos de significante – ou seja, as palavras que orientam a nossa vida. É o que nós chamamos de simbólico e não o afetivo. Mas eu considero a questão interessante porque talvez devêssemos fazer em relação a essa noção de depressão o que Freud fez para as outras neuroses. Ou seja, usar os meios teóricos para passar do nível do afetivo a um outro nível. O meu livro Depressão, a grande neurose contemporânea é um primeiro passo nesse caminho.

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