GERAL

Sob o céu de La Higuera

Por Daniel Cassol, da Bolívia (Textos e fotos) / Publicado em 15 de novembro de 2007

A 2,5 mil metros de altitude, a vida é um esforço. Ao largo das estradas estreitas, as roças de milho se acomodam em meio aos penhascos, para o bem das poucas vacas, que ali se contentam em mascar a terra. O mítico homem morto nesta região, em 9 de outubro de 1967, teria dito à professora da escolinha que lhe dava comida que o objetivo da guerrilha era melhorar a vida daquela gente. De certo modo, é o que acontece por estes dias.

Enquanto se discute o legado, o mito e a higiene pessoal de Che Guevara, em La Higuera, seu leito de morte, ele é mais do que um santo ou um comunista que matou bolivianos: o Comandante é uma necessidade de sobrevivência para o povo pobre desse pedaço da Bolívia.

René Villegas tinha dois anos quando mataram Che. Hoje, é diretor do Museu de La Higuera, e conta que há 20 anos realizam uma celebração no dia em que o Comandante caiu. “Celebramos um Che presente e espiritual”, ele diz, a uma pequena platéia de militantes políticos brasileiros. Embora a presença de estrangeiros movimente a precária economia da cidade, que consiste em dois armazéns e algumas pessoas dispostas a contar histórias para turistas, René relativiza a tese: “O turismo não rende muito, porque é mais ideológico do que econômico. As pessoas sempre vêm sem dinheiro, mas as recebemos de qualquer maneira”, explica.

Para Crescencia de Aguilar, 58 anos, a necessidade fala mais alto. Ela corre na porteira para convidar os que chegam a descer ao ponto onde Che Guevara foi capturado. Conta uma história confusa, sobre uma cabra que teria vendido aos barbudos e de um conselho do Che: “Dizia para não termos medo deles”. Apenas uma pedra na beira da estrada indica o nome do local onde vive: Quebrada del Churo. Com a ajuda que recebe dos visitantes, planeja erigir uma placa de madeira para que os turistas não passem reto por ali. De uma forma sincera, manifesta sua devoção a San Ernesto de La Higuera: “Quando não tenho nada, rezo para o Che e, no outro dia, chegam os turistas”. Os demais moradores da região, diz, dedicam-se a viver suas vidas: “As pessoas aqui não pensam nada. O que passou, passou”.

A vida lenta de Vallegrande

A 60 km estrada abaixo, a cidade de Vallegrande apresenta também uma certa indiferença em relação ao Che entre os seus 8 mil moradores. Ali, as horas parecem ter bem uns 80 minutos. A lentidão do movimento das camponesas, que carregam seus filhos em coloridas estolas, só é quebrada pelo bater de tênis dos turistas e jornalistas, que freneticamente acessam a Internet e fazem chamadas internacionais.

“Aqui, pensamos mais no trabalho e na família”, resume José Peña, motorista, que mantém um comércio com a esposa no centro da cidade. Ele tinha 32 anos quando chegou a Vallegrande o helicóptero do Exército, trazendo os corpos dos guerrilheiros mortos nas montanhas. Amarrado a uma maca, nos pés do helicóptero, vinha Ernesto Che Guevara, que foi lavado e exposto na lavanderia do hospital Nosso Senhor de Malta, depois enterrado em local desconhecido, até ser encontrado por pesquisadores cubanos numa cova entre o aeroporto e o cemitério, em 1997. Contam os moradores que a população formou filas por aqueles dias de outubro, há 40 anos, para observar o corpo límpido de Che, os olhos estatelados que seguiam os romeiros. Parecia com a imagem de Jesus Cristo com a qual estamos acostumados, o que alimentou as crenças que perduram até hoje, para seu José, na cabeça de gente fanática, que crê que a alma não se perde: “Depois de Jesus, ninguém mais fez milagres”.

As opiniões são muitas, explica a funcionária de escola aposentada Francisca Zurita. “Como existe gente boa, existe gente má”, resolve a questão. Ela contava com 17 anos em 1967. Em outubro daquele ano, ficou quase 30 dias sem comer nem dormir direito, com a imagem dos guerrilheiros mortos na cabeça. Sorridente, ela dá entrevistas e conversa com quem chega, sentada ao lado do marido em frente ao Mausoléu do Che. “Ele era um homem bom”.

Milagreiro e carrasco

De crença e fé vive o único brasileiro morador de Vallegrande. Moisés Rodrigues Silva, 36 anos, pernambucano de Recife, é missionário da Assembléia de Deus e há dez anos dedica a vida a ganhar almas para a igreja na Bolívia. Casado com uma boliviana e pai de uma filha, Moisés não é exatamente um admirador de Che Guevara. “Não concordo com a ideologia dele, primeiro, porque era ateu”, diz. Personagem sui generis desta história, Moisés mistura palavras em castelhano no seu sotaque nordestino, para dizer já ter ouvido comentários de curas atribuídas a Che Guevara, ao mesmo tempo em que dispara: “Aqui tem é uma indignação contra esse cara aí. Ele matou um punhado de bolivianos”

Pobres e conservadores

Fundada em 1612, Vallegrande é uma cidade de pequenos agricultores, beneficiados por uma reforma agrária realizada na década de 1950, um dos fatores que levaram a guerrilha do Che à derrota. “O povo era contrário à guerrilha, porque aqui todos têm a sua parcela de terra, e não havia necessidade de reforma agrária”, explica com simplicidade o motorista José Peña. Trata-se de um povo pobre, porém conservador, que repete como um mantra as pregações ideológicas vindas de Santa Cruz de la Sierra, centro aglutinador da elite boliviana.

O próprio prefeito não demonstra maiores admirações pelo personagem que colocou a cidade no mapa do mundo. “A coisa do Che é uma parte importante, mas não é tudo”, diz o alcalde Ignácio Moron Rojas, do Ação Democrática Nacional (ADN), no seu quarto mandato, não consecutivo.

É domingo e ele recebe os camponeses em seu gabinete. Um casal está aflito porque o terreno em que vivem teria sido vendido, com autorização do prefeito. Ele puxa o telefone, fala com alguém e resolve a questão. O casal sai satisfeito. “Instituí o trabalho aos domingos para receber a minha gente que vem à cidade”, explica.

Reclamando mais recursos e autonomia para os estados e municípios bolivianos, Rojas retira importância do turismo gerado em torno do seu visitante mais famoso, aposta no fortalecimento da fruticultura, mas revela que, com ajuda de Cuba e Venezuela, a cidade reformou o Hospital Nosso Senhor de Malta e vai melhorar o transporte coletivo.

Promessa cumprida

Quarenta anos depois de morrer, Ernesto Guevara de la Serna cumpre a promessa feita à professora da escolinha de La Higuera. Para além de levar levas de estrangeiros todo ano a Vallegrande e La Higuera, o Che representa uma tentativa de ocupação da região pela solidariedade entre Cuba, Venezuela e Bolívia, desde que Evo Morales assumiu a presidência, em 2006.

Os guerrilheiros agora usam avental branco e se chamam embaixadores da Alternativa Bolivariana para as Américas. Só médicos cubanos são 1,8 mil na Bolívia, dois deles trabalhando em La Higuera, com a ajuda de um cavalo que os leva às moradas mais distantes do centro hospitalar inaugurado em 14 de junho do ano passado, data do aniversário do Che. Ali, funcionam também a escola e o programa de alfabetização para adultos, baseados no método de Paulo Freire “Sim, eu Posso”, que já formou a primeira turma. “Era um compromisso do Che trazer assistência médica e educação gratuitas”, diz a médica cubana Adis Espinosa.

Outra vez, a gente pobre do sudeste boliviano ouve falar em revolução. A vida, porém, segue a mesma peleia cotidiana, só restando a fortuna de, um dia, Ernesto Che Guevara ter vivido sua hora definitiva sobre os céus de La Higuera.

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