O roubo do lixo já tornou-se inevitável. A ação irregular de atravessadores em caminhões que atuam em via pública afeta a própria coleta seletiva do DMLU e de cerca de 6 mil carroceiros e carrinheiros que coletam na Região Metropolitana. Das 60 toneladas/dia destinadas para triagem, mantendo 700 catadores cadastrados, boa parte já não chega em seu destino final, provocando ociosidade. Uma equação social, ambiental e de trânsito aguardam uma solução definitiva.
No início da manhã e final da tarde, a cena se repete em Porto Alegre: carroceiros em meio ao trânsito despontam por todos os lados e peregrinam pelas ruas abarrotados por sacos de lixo, na luta pela sobrevivência. Indiferença, comoção, irritação e todo tipo de sensação são manifestados sob olhares incrédulos de motoristas. A cena cotidiana insurge quase como corriqueira, se não ganhasse contornos mais inusitados: a atuação de caminhões clandestinos recolhendo o lixo reciclável das ruas.
O “filé” do resíduo doméstico separado para a coleta seletiva acaba nas mãos dos denominados “piratas do lixo”, ocasionando prejuízos para os cerca de 700 catadores – cadastrados pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) – que sobrevivem da separação nas 14 Unidades de Triagem. Cada trabalhador recebe o equivalente a R$ 450 por mês. O problema é que, pela ação dos piratas, muitas vezes as unidades ficam ociosas por falta de material para reciclar.
A ação irregular afeta a própria coleta de cerca de 6 mil carroceiros e carrinheiros que atuam na Região Metropolitana. Além disso, provoca a queda de preço do quilo do material reciclado, devido à grande oferta. Os estragos provocados pela pirataria do lixo atingem ainda o meio ambiente, com o descarte inadequado do material que não é aproveitado pelos atravessadores. Esse lixo rejeitado costuma ser jogado em locais públicos ou mesmo em áreas não-degradadas, gerando a proliferação de doenças e poluição ambiental. No ano passado, o serviço de fiscalização do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), órgão que detém a competência para coleta e destinação do lixo, aplicou nada menos que mil autuações por ocorrências diversas, sendo 12 notificações para infratores que recolheram material reciclado em veículos de grande porte.
Atravessadores comprometem a reciclagem
A suspeita de que são os atravessadores quem mais lucram com o negócio do lixo não é de hoje. Para o articulador do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR-RS), Alexandro Cardoso, a coleta seletiva com caminhão sem subsídio é inviável economicamente, pois os custos são maiores que o lucro. “Os custos da coleta seletiva em Porto Alegre não são públicos, mas avalio uma média de R$ 300 por tonelada. Assim, os caminhões recolhem para grandes geradores, mediante acerto prévio”, alerta. Segundo Cardoso, isso compromete cada vez mais a coleta. “Esta parte dificulta muito a subsistência dos catadores das Unidades de Triagem, e, mais ainda, os catadores que coletam nas ruas, tendo em vista que os grandes geradores vendem seus materiais e não os doam para os catadores organizados”, avalia.
Foto: René Cabrales
A conseqüência é a queda no volume de material para reciclo nos centros de triagem, agravada, segundo Cardoso, com a mistura de materiais não-recicláveis. “Na hora de meter a mão no lixo, aquilo que a sociedade joga fora, na hora do trabalho sujo, somos nós que fazemos. É isso que sobra para nós. Temos que lembrar qual o futuro que queremos para os nossos filhos e netos a partir daqui”, desabafa.
O atravessador que retira o rejeito antecipadamente acaba por interferir no valor do preço praticado no mercado de recicláveis. Para o coordenador da Associação dos Catadores do Movimento dos Direitos dos Moradores de Rua (ATMDMR), Ivani Cláudio Muller, além deste problema, o material nobre descartado na coleta seletiva acaba parando na mão dos clandestinos. “No caso de PPs, o que levava três dias para completar um fardo, hoje demora dez dias”, aponta.
Destinação incerta e atuação particular
sem licenciamento
É mexendo com o lixo que aparece a sujeira. Esta frase encaixa-se como luva quando as ramificações do mercado paralelo se estabelecem de forma mais agressiva neste negócio lucrativo. A voracidade do mercado clandestino chega à beira da criminalidade, e estimula o furto de fios de cobre da rede de iluminação pública e a conseqüente depredação de monumentos que contenham ferro.
Na outra ponta, mais um agravante que retarda a plena regulamentação da coleta seletiva é a retenção dos resíduos sólidos por parte de condomínios e empresas que classificam a particulares sem licença ou cadastro no DMLU. O destino da eventual sobra da separação, ninguém sabe. O mesmo ocorre para utilitários que retiram restos de comidas de restaurantes.
Na região central da capital gaúcha, dentre os 11 bairros em que ocorre a coleta seletiva, a atuação dos clandestinos do lixo é mais acirrada no horário que antecede o recolhimento, já que o material descartado tem maior valor agregado – papel branco, papelão, alumínio – provenientes de escritórios, depósitos e estabelecimentos comerciais. Por conseqüência, não é difícil encontrar caminhões particulares, normalmente com placas de outros estados para dificultar a identificação e aplicação de multas, que transitam nas ruas e avenidas em busca do lixo.
De cada quilo coletado, 700 gramas são reaproveitados
O status de pioneirismo na gestão e coleta seletiva de Porto Alegre deverá ficar comprometido diante da problemática do atravessador do lixo. Mesmo com a ampliação do recolhimento seletivo para duas vezes por semana nos bairros, no segundo semestre, a tendência também é de aumento na atuação dos intermediários. Neste sentido, as ações do DMLU intensificam-se sobre os veículos de maior porte, através de denúncias.
Em âmbito geral, das cerca de 1,2 mil toneladas de resíduos domésticos e públicos produzidos diariamente em Porto Alegre – que sãoconduzidos por 113 quilômetros até o aterro de Minas do Leão, na Região Carbonífera, para serem depositados em cavidades com expectativa de atividade até 2040 – o equivalente a 60 toneladas/dia são recolhidas pela coleta seletiva por 29 caminhões “boiadeiros” do DMLU. No fim do ano, este volume salta para 100 toneladas, com aumento de 67%. O edital de licitação para terceirização da coleta seletiva já está tramitando na Prefeitura.
Segundo o diretor da Divisão de Projetos Sociais e de Reaproveitamento e Reciclagem do DMLU, Jairo Armando dos Santos, a estimativa de produção de lixo per capita é de um quilo por habitante. Para se ter uma idéia dessa produção, basta lembrar que Porto Alegre tem 1,41milhões de habitantes, conforme dados de 2004 do IBGE. De cada quilo de lixo produzido, 700 gramas são reaproveitáveis, o que aguça a atuação de terceiros.
O diretor informa que muitos carrinheiros são ligados a galpões clandestinos, localizados na região periférica da capital, que compram de forma irregular o lixo selecionado e trabalham sem alvará de funcionamento. Assim mesmo, a fiscalização sobre carroceiros ocorre de forma mais branda em razão da questão social, com orientação de evitar descarte no passeio público. “Não podemos excluir esta classe do processo, pelo contrário, queremos incluí-los nos projetos sociais existentes nas Unidades de Triagem”, diz Santos. Duas vezes por mês são realizadas blitze pelo DMLU, de acordo com Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o Ministério Público, para coibir excessos, como a condução de carroças por crianças, por exemplo.
Mercadores de resíduos escravizam catadores
Os maus-tratos aos cavalos, o tráfego de carroças nas vias públicas e a questão de famílias de baixa renda que sobrevivem do lixo predominam nas discussões da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Porém, o atravessador na coleta do lixo começa a prevalecer como nova preocupação. Conforme o presidente da Comissão Especial dos Carroceiros, vereador Adeli Sell (PT), o intermediário privado é quem acaba ganhando a parcela mais importante no lixo seletivo. “Deveríamos recolher 400 toneladas-dia, mas estamos coletando via DMLU apenas 60 toneladas. Os galpões têm pouco resíduo, de péssima qualidade, porque o ‘lixo bom’ fica com o empreendedor privado, que escraviza o carroceiro e carrinheiro”, aponta.
Autor do Projeto de Lei para a conteinerização do lixo, Sell também defende a criação de oportunidades de emprego para as famílias que vivem da coleta de lixo. “Não cabe, em pleno século 21, termos pessoas catando lixo nas ruas, rasgando sacos para ver o que há dentro, espalhando sujeira pela cidade, quando a coleta deve ser pública, função esta do DMLU”, dispara. O vereador aponta uma brutal defasagem na coleta seletiva, com caminhões velhos e inadequados, problemas nos horários de coleta e a conseqüente perda de espaço para os carrinheiros, carroceiros e atravessadores. “A cidade está tomada de legiões de coletores de resíduos sólidos, portanto, parcelas de excluídos sociais, que deveriam ser reintegrados na atividade produtiva, através de reciclagem de mão-de-obra”, explica.
Promotoria de olho na ação dos “piratas”
Grande parte da coleta seletiva é desviada através dos carroceiros e carrinheiros, mas, ao lado destes, hoje se vê outros intermediários, de maior porte. Enquanto as unidades de reciclagem recebem quantidades cada vez menores de matéria-prima, os atravessadores ganham pelo maior volume retirado das ruas. A promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, Sandra Santos Segura, aponta que os atravessadores estão seguidamente em pauta nos diversos expedientes em tramitação. E este número é crescente. “Existem veículos e ônibus reformados trabalhando na coleta irregular de lixo seco pelo seu atrativo valor comercial”, avalia.
Do mesmo modo, diversos inquéritos são instaurados a partir de relatórios de ocorrências que chegam à Promotoria quando depósitos clandestinos são detectados. De forma ilegal, estes estabelecimentos contratam intermediários ou adquirem o material dos atravessadores. “É ali que se alimenta este comércio irregular”, aponta.
Alguns casos são tipificados no artigo 60 do Código Penal como crime ambiental – pela instalação e desenvolvimento de uma atividade potencialmente poluidora desprovida de licença ambiental. “Este recolhimento irregular acaba prejudicando todo o sistema integrado da coleta seletiva, desde a separação do lixo em domicílios até a sua destinação para as unidades de reciclagem, que garantem o ganha-pão de famílias que trabalham de forma organizada”. A promotora antecipa que, de uma maneira ou outra, não haverá unanimidade entre as pessoas que trabalham na clandestinidade em aceitar as condições de regularização da coleta e nem mesmo o poder público municipal terá condições de absorver toda esta mão-de-obra.
Carroceiros, morcegões e barões do lixo
O comércio de lixo passa pela mão de muita gente e da informalidade, e acaba sendo um negócio lucrativo. E Porto Alegre não detém exclusividade sobre o comércio paralelo de reciclados. Em proporções maiores, São Paulo – que contabiliza 45 mil catadores e mais de 150 cooperativas – já enfrenta os barões do lixo há mais tempo. A exemplo de camelôs e perueiros, os atravessadores tomaram conta do negócio em concorrência desfavorável aos carroceiros a partir da atuação dos chamados “morcegões”, caminhões velhos pertencentes a empresas irregulares, que trabalham para grandes geradores de sucata reciclável. De acordo com o Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), uma associação sem fins lucrativos mantida por empresas privadas de diversos setores, a cada R$ 4 gerados na reciclagem de lixo, apenas R$ 1 fica com os catadores. O restante vai para os atravessadores. Em alguns casos, os catadores são obrigados a pagar pedágio para a máfia do lixo, que recebe o excedente coletado – pelo qual pagam o preço mínimo – e o repassam para as indústrias recicladoras. A ação isolada da maioria dos catadores não atende às exigências das indústrias, como triturar, prensar e enfardar, além da apresentação de nota fiscal. Dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública (Abrelpe) mostram que a capital paulista desperdiça em média 3,3 milhões de toneladas de lixo domiciliar. Cálculos preliminares indicam que São Paulo poderia economizar US$ 1,2 bilhão por ano se reciclasse de forma organizada seus resíduos sólidos. Resultado: os catadores e suas carroças estão sendo expulsos das ruas. Em Porto Alegre, um projeto do vereador Sebastião Melo (PMDB) propõe a redução gradativa do número de carroças até a proibição definitiva da circulação de veículos com tração animal na capital em oito anos. “Os carroceiros sempre foram esquecidos, agora estão sendo lembrados porque a matéria-prima com que trabalham está muito valorizada”, protesta Teófilo Motta, da Associação dos Carroceiros da Grande Porto Alegre.
PASSIVO AMBIENTAL – O aumento de atravessadores no recolhimento de lixo reaproveitável poderá levar ao esgotamento e desequilíbrio no ciclo de reciclagem e excluir pequenos catadores. Na análise do contador ambiental e professor da UPF, Carlos Alexandre Gehm da Costa, as cooperativas de catadores poderão ficar desinteressadas na organização formal, porque o mercado está sendo desvalorizado por piratas. Ele acrescenta que a regulamentação e a legalização do trabalho do catador reduzirá o impacto da violência e os danos ao meio ambiente. “O passivo ambiental vai estourar lá na frente através da calamidade social ou esgotamento dos aterros”, alerta. Em seu relatório anual, a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) classifica como crítico o cenário: das 170 mil toneladas diárias de resíduos sólidos urbanos gerados no país, pouco mais de 140 mil toneladas são coletadas, das quais 60% não têm destino final adequado.