GERAL

O jornalismo na linha de combate

Por Naira Hofmeister / Publicado em 26 de abril de 2008

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Foto: Clléber Passus/Nave/Divulgação

Foto: Clléber Passus/Nave/Divulgação

Em 2008 a invasão do Iraque orquestrada pelos Estados Unidos completou cinco anos. O jornalista Jon Lee Anderson foi um dos poucos a ficar em Bagdá nos dias que antecederam o fatídico 20 de março, quando explodiram as primeiras bombas. Contrariou até seu editor, da revista New Yorker, David Remnick, que ordenou sua partida dias antes do início da guerra. O resultado dessa experiência está narrado no livro A Queda de Bagdá, que no Brasil recebeu o selo da editora Objetiva. Nos últimos cinco anos, Jon Lee Anderson voltou ao Iraque dezenas de vezes, acompanhando de perto a “ocupação americana”. O correspondente da revista New Yorker também viveu cinco anos em Cuba, justamente durante o chamado Período Especial, quando a população enfrentou uma crise sem precedentes com o fim da União Soviética. Durante sua estadia em Havana, escreveu aquela que é considerada a biografia mais completa – e honesta – de Che Guevara. A confrontação com realidades tão distintas gerou opiniões que o jornalista expôs em entrevista exclusiva ao Extra Classe, durante sua passagem por Porto Alegre, no final de 2007.

Extra Classe – Entre as causas referidas para o conflito no Iraque estão a religião, o petróleo e a justificativa dos Estados Unidos, da democratização. Como você julga esses fatores?
Jon Lee Anderson
– Essa é uma grande incógnita. O Iraque possui possivelmente as maiores reservas de petróleo do mundo: isso não é coincidência. Não teriam invadido Mali ou Paraguai, caso Saddam tivesse sido ditador nesses países. Também é verdade que George Bush Jr quis tomar as dores do papai pela Guerra do Golfo, que não foi vencida plenamente. Parece uma patologia. Primeiro eram armas de destruição massiva. Antes da invasão, a mudança de regime, e depois, a construção da democracia. Se tivessem apelado ao público internacional, reconhecendo sua responsabilidade pelo que é o Iraque hoje e assumindo que seus órgãos de inteligência não possuíam habilidades naquele terreno, creio que teria sido diferente.

EC – Você concorda com as acusações de imperialista que os EUA sofrem?
Anderson
– Tem se repetido muito que os Estados Unidos querem poder e petróleo, como se chupassem feito um Drácula. Até certo ponto sim, mas o governo americano paga pelo petróleo que extrai, não rouba. Durante a ditadura e sob a pressão do conflito iminente, os EUA estavam comprando a maioria da produção de petróleo do Iraque de Saddam através de intermediários, traficantes russos. Se um país acha que é seu direito entrar em outro território e matar sua gente para salvá-los, assume uma responsabilidade moral muito grande. Tudo o que acontecer depois é sua culpa. E isso ninguém pensou.

EC – O medo de ataques terroristas é justificativa?
Anderson
– Se Saddam conseguisse restaurar seu poder, a verdade é que seria uma ameaça. Nos 12 anos que esteve no poder desde que promoveu o golpe de Estado em 1969 até o final da Guerra do Golfo em 1991, matou um milhão de pessoas. Não só iraquianos, atacou o Irã e o Kwait. O tipo era louco: atacou todo mundo. Em 2000, perguntei ao primeiro-ministro Tariq Aziz o que havia de verdadeiro sobre as armas de destruição massiva. Ele disse que as afirmações eram exageradas, mas não negou nenhuma delas. Eu mesmo fiquei em dúvida. Quando eu estava lá, romperam o bloqueio dos aviões que durante dez anos não permitia nenhum vôo. E de repente pela fronteira passavam milhões de caminhões cheios de tudo. E os inspetores da ONU não puderam saber o que havia nesses caminhões. E todos ficaram com uma interrogação.

EC – O que você pensa da decisão de enforcar Saddam Hussein?
Anderson
– Ele merecia a morte, mas muitos anos antes. Especialmente quando os EUA o ajudavam. Ele matou muita gente. Com Saddam saíram os demônios dos sepulcros. O Iraque era um país cheio de cadáveres e isso não fica impune. É natural que a maioria xiita oprimida por Saddam vá querer o poder. É lógico também que o Irã tente arruinar o projeto norte-americano, porque Bush falou que poderia ser o próximo.

EC – E a população do Oriente Médio, como reagiu?
Anderson
– A maioria dos xiitas está feliz da vida. Para os sunitas foi uma ofensa porque houve demonstração de sentimento sectário no enforcamento. Foi uma inabilidade deixar que pessoas dentro do lugar gritassem lemas, palavras de ordem. E depois, filmar ele sendo morto. Saddam enfrentou com valentia a morte, ele não queria ser enforcado, era a única forma de morrer que temia. Mas ele enforcou muita gente. Em Abu Graib, a cada quarta-feira, havia enforcamentos coletivos de até 60 pessoas. Ele era psicopata.

EC – Atualmente, como está o Iraque?
Anderson
– Segue sendo um caldeirão de bruxas, mas as mortes estão diminuindo. Não sei se é temporário ou não. O mais preocupante era a carnificina na rua que ninguém impedia porque não havia forças de segurança suficientes. Outra coisa fundamental é que os sunitas, que antes davam abrigo à Al Qaeda, mudaram de lado e agora fazem alianças com os norte-americanos. Mas possivelmente vão utilizar essa aliança contra os xiitas, ou com a esperança de uma guerra contra o Irã. O problema é que a guerra não terminou.

EC – Algum sinal de recuperação da economia?
Anderson
– Mas que economia? O Iraque está sob ocupação americana, não há economia em guerra. É um desastre.

EC – E do que vivem as pessoas?
Anderson
– Há funcionários públicos e forças de segurança que recebem dinheiro suficiente para sobreviver. Muitos vivem em pequenos sítios, todos têm um clã ou um parente em uma granja, onde há comida. Há muito contrabando. Mais de 3 milhões de pessoas foram embora. Alguns vivem em dificuldades, outros com dinheiro minguado. Não é tão precário como, por exemplo, Bangladesh, porque o Iraque é um país rico, tem ingressos do petróleo. Aumentaram os salários recentemente, mas vivem com uma insegurança terrível.

EC – Está mais perigoso agora do que durante a invasão propriamente dita?
Anderson
– Para os jornalistas, sim. Existem terroristas que querem te seqüestrar para te degolar ao vivo num vídeo. Mais jornalistas foram mortos no Iraque do que nas duas guerras mundiais. Não há um só lugar seguro: não é que você vai a uma trincheira e ali atiram um morteiro… Uma amiga minha morreu porque um suicida viu uns mercenários australianos passar, quis arrebentar-se e levou ela junto. Ela foi queimada viva. Outro jornalista morreu quando saía de casa rumo ao New York Times. Uma milícia havia se apoderado de seu bairro e parece que sabiam que era jornalista. Atiraram nele. Ele ligou para a mãe e disse que apesar dos tiros, estava bem. Havia um carro atrás enquanto ele falava pelo celular: um homem desceu e atirou
na sua cabeça. Ele tinha 23 anos.

EC – Mas a população também vive essa insegurança?
Anderson
– No Iraque, todo dia tem um carro-bomba, para qualquer lado. Vai matar inocentes civis. Se você é ocidental, os da Al Qaeda querem te matar. Era um país sumamente controlado antes porque vivia a paz dos mortos, ninguém se atrevia a dizer nada por causa de Saddam. Durante a invasão, havia o risco das bombas americanas, mas a maioria ia a seus pontos. Algumas – muitas na verdade – erraram e mataram inocentes. Depois foi como se as portas do inferno se abrissem. Hoje ao menos percebemos uma queda das atrocidades.

EC – Você viveu em Cuba e em Bagdá. Há semelhanças entre os governos de Fidel Castro e Saddam Hussein?
Anderson
– A primeira vez que fui ao Iraque, em 2000, ainda sob Saddam, senti ressonâncias de Cuba. Mas com diferenças muito grandes, além das questões culturais. Saddam era um tipo cruel e sádico. Sua megalomania era transbordante. Acho que não havia um líder tão absoluto no mundo. O que compartilhavam Fidel e Saddam era haverem criado sociedades mais ou menos fechadas, onde eles eram líderes absolutos. No caso de Fidel, atenuado pelo fato de que não havia instaurado um reino de terror. Houve épocas duras e ele tinha capacidade de ser cruel, mas não havia fossas coletivas nem centenas de milhares de cadáveres enterrados secretamente em Cuba. Essa é a grande diferença. Dentro do mesmo espectro que é a ditadura, Fidel é light comparado ao que era Saddam.

EC – Mas há práticas parecidas?
Anderson
– Quando o Partido Comunista de Cuba anuncia uma marcha contra o Escritório de Interesses Americanos para resgatar Elián (Elián Gonzáles Cárdenas) ou contra o bloqueio, milhões vão para a rua. Porque seus patrões dizem que têm o dia livre e devem ir. E muitos vão porque lhes dão cerveja grátis ou porque há uma banda e podem dançar. No caso de Saddam, era uma coação absoluta. Mas em Cuba, as pessoas falam. No Iraque, mesmo ficando a sós contigo todos eram mudos, porque o terror era extremo. Claro: Saddam havia instaurado a amputação da língua como pena por criticar a ele ou a seus filhos.

EC – Para escrever a biografia de Che Guevara, você foi viver em Havana com a sua família justamente durante o Período Especial.
Anderson
– Sim, o pior período do Período Especial. Era difícil viver lá mesmo tendo acesso ao dólar. Mas os cubanos são muito familiares. Tive muitos dependentes porque as dificuldades eram inimagináveis. Vivíamos sem á gua, sem luz. Muitos vizinhos foram embora de balsa.

EC – Atualmente há uma classe média em Cuba, que enriqueceu através do turismo. E também corrupção, pequenas fraudes no comércio, nos serviços. Você visitou a Ilha recentemente?
Anderson
– Estive lá dois meses em 2006 e, de fato, esses problemas eram mais encobertos. Passou muito tempo e há uma geração perdida, justamente essa do Período Especial. Eles chegaram à idade consciente com uma dupla moral. Quando a necessidade era muita, havia cubanos que, na rua, eram a favor de Fidel e da revolução. Mas faziam vista grossa quando a filha saía para se prostituir e voltava com comida ou xampu.

EC – Isso é resultado da falta de identificação ideológica entre as gerações ou conseqüência natural do tempo transcorrido?
Anderson
– A revolução alfabetizou o povo, mas não necessariamente o fez culto. É uma ilha, as tensões funcionam como uma panela-de-pressão. Há muitos jovens que não podem viver só de ideologia, querem conhecer o mundo. É triste ver que os jovens não estão fazendo nada, não estão empregados. Muitos são educados, sabem muitas coisas, são criativos. São muito talentosos os cubanos. Mas passam a vida tomando trago. Os velhos não souberam como lidar com isso. Não basta cooptar todos, é preciso aceitar e abrir o suficiente para que os que querem ir. Deixá-los ir e vir. E os cubanos amam sua terra, certamente voltariam. É como um experimento social que às vezes sai bem, às vezes mal. É uma soma de tudo isso.

EC – A aposta no turismo foi equivocada?
Anderson
– Fidel Castro, por ser o árbitro absoluto do destino dos cubanos, esteve sempre experimentando. Abrindo um pouco, fechando um pouco. E criando uma sociedade com vários padrões de vida, não só uma dupla moral. Mas inclusive quando a revolução estava em sua época dourada, havia uma classe média. Muitos barbudos veteranos da Sierra Maestra viveram em casas muito boas. Outros não. É uma meritocracia socialista. Para dizer em termos formais. Mas na prática, há de tudo.

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