Lei contra carroças expõe realidade brasileira
A carroça de Teófilo Rodrigues Motta não carrega apenas restos de lixo recolhidos pela cidade. Como presidente da Associação dos Carroceiros de Porto Alegre – uma das tantas entidades que incluem os catadores de papelão, garrafas pet e latas na capital gaúcha –, Motta leva o que aparentemente passou a ser o símbolo da desumanidade: um cavalo sem raça, sem porte, sem mordomias. Para uma parte da população e dos vereadores que estiveram na Câmara Municipal no dia 16 de junho, quando foi votada a Lei das Carroças, carroceiros como Motta são uma afronta aos direitos dos animais e das crianças, às vezes, carregadas junto com o lixo, além de serem um entrave ao trânsito e um problema social a ser “solucionado” e tirado da vista. Pela nova lei – que ainda deverá ser aprovada pelo Executivo – , as carroças deverão desaparecer das ruas de Porto Alegre em oito anos e os seus usuários serão encaminhados para outros projetos de geração de renda.
A polêmica proposta aprovada na Câmara Municipal vai mexer com a vida de pelo menos 50 mil pessoas, direta e indiretamente, segundo cálculos feitos pelas associações de carroceiros e catadores. Travestido de preocupação social, o projeto de lei encobre uma questão econômica sobre o valor do lixo que é jogado fora todos os dias pela população A mais privilegiada. A crítica de Motta e de outras organizações de catadores é que o projeto, do jeito que foi aprovado, não garante nada. Ele compara com a situação anterior da Ilha Grande dos Marinheiros. “A Prefeitura mandou acabar com a criação dos porcos, disse que ia dar emprego, não deu. Quem não tinha o que fazer, se voltou para a reciclagem, que hoje vale muito, pelo preço da matériaprima. Quantos milhões se tira atualmente do lixo”?, pergunta. “Queremos organizar os carroceiros. Em todo lugar existem os maus elementos – não tem uma CPI do governo? Para os maus carroceiros, que se aplique a lei”.
As discussões sobre o fim do tráfego de carroças se arrastam há pelo menos três anos e, neste tempo, pouco foi feito para garantir mudanças visíveis na perspectiva de vida destas pessoas. A diferença é que agora os debates ganharam uma roupagem moderna com a adição de blogs e sites em defesa dos animais pela Internet.
O cavalo que puxa a carroça de Motta está em melhores condições que muitos donos de carroça e até que alguns carrinheiros – pessoas que puxam carrinhos com a força do corpo (incluídos, por emenda, no mesmo projeto de lei). Em uma ação prática, veterinários e estagiários de Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), estiveram na vila Ilha Grande dos Marinheiros, no dia 14 de junho, para avaliar a situação de saúde dos cavalos que servem aos carroceiros da região e constataram que a situação dos animais avaliados não era tão ruim. A veterinária Luciana Paula Merini deu instruções sobre o uso de vermífugos e fez o exame clínico. O Projeto Carroceiros existe há dois anos, mas inicialmente era preciso que os proprietários levassem os animais ao hospital da faculdade. A iniciativa de ir até a vila deve se repetir mensalmente, aos sábados, e facilitar a atenção redobrada.
Excluídos da reciclagem e expulsos da cena urbana
A discussão dividiu a cidade, como se a lei, sozinha, pudesse resolver o problema social. Alex Cardoso, coordenador do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, rebate os argumentos mais usados. “Conforme informações da EPTC, as carroças não são o principal responsável pelos transtornos do trânsito, mas sim o excesso de automóveis, e a solução seria otimizar a circulação dos carros”, analisa. Maus-tratos a animais são exceção, não regra, completa. De acordo com Cardoso, os galpões de reciclagem não conseguem atender todos os catadores e não adianta transferi-los para outras atividades precarizadas e superexploradas, como a construção civil, sem discutir antes com a categoria.
“Defendemos a inclusão dos catadores de rua através da campanha de coleta seletiva solidária e com subsídio público, incluindo os que historicamente já fazem esse serviço, valorizando essa mão-de-obra e impedindo a privatização do serviço de coleta”, afirma, em nota aberta à população, o movimento que Cardoso representa. No mesmo documento, rechaça a proposta da Prefeitura de construção da Central de Materiais Recicláveis (Cemar) por não atender às necessidades dos catadores e por sequer existir orçamento aprovado.
“Quando o PT estava na Prefeitura iniciou um trabalho de inclusão que não teve continuidade. Criamos 14 galpões de reciclagem, colocamos placas nas carroças e cadastramos os carroceiros”, argumentou a vereadora do PT Margarete Moraes, autora de uma emenda que acabou nãos sendo aprovada. A proposição determinava que o Executivo apresentasse em 60 dias, numa audiência pública, um Programa Municipal de Reciclagem de Resíduos Sólidos e Orgânicos elaborado com planejamento participativo de todos os segmentos envolvidos e um Plano de Investimentos na geração de renda e de qualificação profissional para os catadores. “Não adianta pretender tirar as carroças e não estabelecer a garantia de investimentos no orçamento, que cabe ao Executivo”, lembra. Outra emenda rejeitada era do vereador Professor Garcia, do PMDB, mesmo partido do autor do projeto. Garcia queria condicionar a vigência da lei à implantação de alternativas de renda e sobrevivência econômica dos carroceiros, mas foi derrotado. “Como legisladores, estamos dando uma sinalização de oito anos. Se vai ser cumprido? Quem descumpre a lei tem responsabilidade sobre isso”, responde Sebastião Melo, autor do projeto atual.
A secretária Clênia Maranhão, da Secretaria Municipal de Coordenação Política e Governança Local de Porto Alegre, informa que três novos galpões de reciclagem estão sendo entregues nessa gestão e que se criou uma verba de R$ 2,7 mil para garantir a manutenção dos equipamentos. Quanto ao Cemar, a Prefeitura já adquiriu o terreno de 2 mil metros quadrados onde serão construídos os galpões de reciclagem. A idéia é que ali funcione uma cooperativa, creche, cozinha comunitária e cursos profissionalizantes, num projeto em conjunto com o DMLU. “Na primeira fase, deverá beneficiar 500 carroceiros da região”, explica. A assessoria do DMLU informou porém que, apesar da negociação com o BNDES, ainda não há verba garantida para dar andamento às obras, orçadas em torno de R$ 1,5 milhão.
Em defesa dos animais maltratados
As maiores campanhas contra as carroças vieram de entidades de defesa dos animais. “A gente não vê só o lado dos cavalos”, garante Denise Furtado, da ONG Gatos e Amigos Associação de Proteção aos Animais, que esteve na Câmara acompanhando a votação do projeto. “A idéia é construir galpões de reciclagem onde as pessoas possam ter outra alternativa de trabalho, cursos, porque não agüento mais ver cavalos caídos, crianças dirigindo carroças – a cidade não suporta mais carroças, é só ver o trânsito”, diz ela, chocada. A professora Claudia Garcia diz que também está sensibilizada. “Pressionar para acabar com as carroças significa tensionar o poder público para absorver esta população na formalidade, porque são pessoas que estão à margem, o trabalho é insalubre e eles agridem os animais”, aponta. Para Claudia, “ou se propõe a estatização do lixo com os carroceiros trabalhando no sistema formal, ou se mantém a vergonha de Porto Alegre ser conhecida como Capital das Carroças”.
A vergonha pode se transformar em orgulho, dependendo da perspectiva e das alternativas que se oferecem. Aos 86 anos de idade, o ambientalista Augusto Carneiro é morador de Porto Alegre desde os tempos em que ser carroceiro era uma profissão tão digna e respeitada quanto qualquer outra. Um dos fundadores da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), ele apóia a manutenção das carroças. “Se tratam mal os animais é porque o DMLU deixa que errem e não abre diálogo com eles quando devia”, argumenta. “Além disso, os galpões de reciclagem não dão conta do trabalho e a coleta seletiva é mal feita pelas donas de casa em seus apartamentos. Os carroceiros representam, portanto, uma economia para a cidade, e não um atraso”, contrapõe.
Mas manter os carroceiros nas ruas significa também ter de encarar o valor do trabalho destas pessoas e garantir condições dignas para que eles possam exercê-lo. É o que vêm fazendo as prefeituras de 70 cidades francesas que decidiram substituir os veículos motorizados por carroças puxadas por cavalos para realizar serviços como coleta de lixo, transporte de pessoas e manutenção de praças, na contramão da proposta aprovada pelos vereadores de Porto Alegre (leia matéria nesta página).
O império do lixo
Durante a votação do projeto de lei que prevê o fim da circulação de carroças, uma parte da população que estava nas galerias acusou os vereadores de estarem contribuindo com a “Máfia do Lixo”. Reportagem publicada pelo Jornal Extra Classe (edição nº 122) em abril deste ano já revelava o motivo da revolta. Lixo, hoje, é sinônimo de dinheiro. Mais do que uma preocupação ambiental sobre o destino final das milhares de latas de refrigerantes, garrafas pet e papel recolhidos das ruas, é o valor econômico de tudo isso que está em jogo quando se fala em tirar do caminho as carroças puxadas por cavalos ou por homens. Na reportagem “O Império do Lixo”, o Extra Classe mostrou que os chamados “piratas do lixo” se organizam para chegar ao material reciclável antes dos caminhões do DMLU, trazendo prejuízos para os cerca de 700 catadores cadastrados pelo órgão municipal que sobrevivem da separação nas 14 Unidades de Triagem.
Cada trabalhador recebe o equivalente a R$ 480 por mês. A principal queixa dos catadores cadastrados é que o lixo mais valioso é retirado antes por uma rede que abastece os atravessadores. A grande oferta e a competição fazem baixar o preço. Quem sai ganhando são as empresas que usam este material para reciclar sua matériaprima.
Em reportagem anterior, em outubro de 2000, o Extra Classe mostrou como a sucata passa por até dois atravessadores antes de chegar ao destino final. E como as empresas de plástico, lata ferrosa e papel lucram. Primeiro, no processo de produção, porque o custo de energia para processamento do material coletado é muito menor do que o valor que seria gasto com a produção de um novo produto: “Wilson Khols, coordenador de matéria-prima da Vidraria Santa Marina (Subrasa), em Canoas, diz que a margem de economia é de 5% no que se refere ao custo por tonelada e 25% no consumo de energia para o processamento do material”, revela a matéria. Segundo, pagando cerca de 50% do valor real da sucata para os atravessadores – dinheiro este que não reverte de nenhuma forma para a população de catadores, de carrinheiros ou de carroceiros.
A vida em cima de uma carroça
O cavalo Teimoso, que passou pelo exame da veterinária da Ufrgs na Ilha dos Marinheiros, estava mais gordo que o dono. É o oitavo cavalo que acompanha Diego da Rosa, 24 anos. “Os outros foram se desgastando”. A falta de emprego levou Rosa a subir na carroça pela primeira vez aos 12 anos de idade, junto com outros dois irmãos de uma família de oito crianças.
Todas as tardes, Rosa coleta lixo reciclado nos edifícios da avenida Protásio Alves, corta a cidade para chegar ao bairro Menino Deus e depois voltar para a Ilha, cruzando a ponte sobre o Guaíba, onde já foi atropelado mais de uma vez. Os três filhos estão na escola – o mais novo, numa creche – e, se tudo der certo, devem ultrapassar a sexta série na qual o pai parou de estudar.
Rosa tentou se inscrever para trabalhar nos galpões da Prefeitura, mas diz que não foi aceito porque tinha carroça. Trabalhou em lavagem de carros, não deu certo. Hoje sua renda é de, no máximo, R$ 300 mensais – destes, R$ 50 vão para manter o animal. Acredita que é a única opção. Tanto assim que nem sonhos mais ele consegue ter. “Que eu possa continuar na carroça”?, arrisca, enfim, depois de muita insistência para descobrir um desejo no meio de tanta realidade.
Sua mulher, Maria Solange Gonçalves da Silveira, 34 anos, é quem faz a separação do material coletado. Começa às sete da manhã e não tem hora para terminar. A filha de 16 anos ajuda durante o dia, vai para a escola à noite. A montanha de sacos de lixo empilhados na carroça e no pátio e a casa da família quase se confundem no Beco dos Oito, ao qual se chega seguindo por uma estrada embarrada. Maria trabalhou um tempo num dos galpões de reciclagem da Ilha, mas não se adaptou: “Pagam por quinzena, não por semana, era muito difícil”, lembra.
A vizinha Elisiane Beatriz Souza, mulher de Teófilo Rodrigues Motta, no entanto, não se conforma. “Tu gostaria de viver num lugar assim? É horrível, uma desumanidade”. E enumera soluções: “tinha que ter mais creche, mais escolas, uma cozinha comunitária”, diz, lembrando que muitas crianças vivem na rua, usando drogas, sem os pais para controlar. Os dela, não. “Só sobem em carroça para buscar capim, porque gostam, não são obrigados a buscar lixo, como muitos”.
Elisiane e Motta não viviam “do lixo” antes. Os dois moravam em Guaíba, tinham uma casa boa, até carro. Quando um dos filhos tinha poucos meses de vida, constataram um problema de coração no bebê. Precisaram se deslocar a Porto Alegre com freqüência para consultar o médico. A viagem estava ficando cara, por isso, optaram por permanecer de vez na capital. Motta, que já foi jóquei e que havia trabalhado como guia de turismo, é sobrevivente de outra tragédia: sofreu um grave acidente de trânsito. Saiu do coma para a realidade e virou líder dos carroceiros. Agora, quer implantar um projeto de Mudas Nativas na Ilha dos Marinheiros onde vive. “Tenho que trabalhar para que as crianças não sejam carroceiras. Porque, se vier um projeto tribom, daqui a pouco um filho de carroceiro está ganhando uma medalha no esporte e vira um incentivo para nós”, pondera.
De sonhos ainda se alimenta também o carrinheiro Edevandro Silva de Moraes. Aos 26 anos, trabalhando direto com o lixo há três, é do seu corpo que tira a força para puxar o carrinho e catar o material que permite sustentar seis enteados e a filha de cinco anos. Ele já aprendeu a reciclar papéis na Escola Porto Alegre (escola aberta para jovens em situação de rua) e sonha em ser jardineiro. Ter feito só a primeira série é um impeditivo sempre que tenta se inscrever para algum curso ou trabalho em outras condições. “Sonho em trabalhar com carteira assinada. Só isso”.
Com o corpo enroscado no puxador do carrinho, Nilton Wenceslau Shaefer, 37 anos, não tem documentos, nem tempo para escola. Deixa as três crianças em casa, com a mulher, e tem um medo: “Se tirar o carrinho de nós, vamos passar fome”, preocupa-se. Morador da Avenida A. J. Renner, ele só sabe que o trabalho e a esperança se sustentam hoje sobre as suas pernas, suas costas, e duas pequenas rodas.
Na França, as carroças são bem-vindas
Olivier Linot é secretário-geral da prefeitura de Trouville-sur-Mer, cidade na Normandia que utiliza as carroças para recolher garrafas recicláveis em restaurantes, coletar lixo, fazer a manutenção de jardins e praças e transportar crianças para escolas. Ele informa que o preço dos cavalos é mais acessível e o tempo de trabalho do animal é superior à vida útil dos carros. Mas, mais do que a economia, é o argumento ambiental que tem convencido os prefeitos de 70 cidades francesas: as carroças contribuem para diminuir o aquecimento global, porque não emitem, como os carros, gases C02, causadores do efeito estufa. Linot foi entrevistado pelo Extra Classe e enviou fotos para mostrar como funciona o sistema de carroças em sua cidade:
Extra Classe – Quais são as vantagens de usar carroças puxadas por cavalos na coleta de lixo e para o transporte?
Olivier Linot – As vantagens são econômicas e ambientais para grandes trabalhos, em pequenas viagens. Por exemplo, para a manutenção de jardins no centro da cidade. Trouville-sur-Mer tem uma população de 10 mil pessoas, mas, como é uma cidade de mar, nos feriados chega a ter 40 mil pessoas. Os visitantes ficam felizes quando vêem os cavalos. Começamos esta ação no ano 2000, e em oito anos não tivemos nenhum problema. Minha equipe gosta muito e a população acha bom para a saúde do planeta.
EC – Muitos podem argumentar que a cidade fica suja por conta dos cavalos. Como vocês resolveram este problema?
Olivier Linot – Usamos pequenos saquinhos que ficam acoplados atrás dos cavalos.
EC – Como é a aceitação do sistema de carroças?
Olivier Linot – Muitos prefeitos mais velhos já conhecem o sistema porque seus pais o usavam. No início, quando explicávamos, achavam que era uma idéia antiga. Quando testamos e mostramos como funciona, eles admitiram: é uma idéia moderna, porque atende às novas necessidades.
EC – E não atrapalha o trânsito? Se for usado numa cidade com
maior população, por exemplo, e mais carros?
Olivier Linot – O petróleo está muito caro. Há sistemas de carroças nos arredores de Paris (para molhar as plantas e tirar o lixo das praças), e estamos conversando com pessoas da Suécia, Grã-Bretanha, Canadá, Suíça… Minha cidade é pequena, mas em Lyon, com uma população de 1 milhão de pessoas, também usam… Não há problema. Quando um carro que tem uma criança dentro vê uma carroça, ele até diminui a velocidade para a criança ver melhor a carroça.